"Muitos jornais,
revistas, emissoras de rádio e de TV atuam
como cães de guarda
ou como partidos das classes dominantes".
Controlada
majoritariamente pelas elites das classes dominantes, e organizada como empresa
comercial com objetivo de lucro, a imprensa brasileira incorpora e
reproduz, na sua atividade jornalística, de um lado, os mesmos componentes
históricos, culturais e políticos formadores dessas elites e, de outro lado, as
características expressas no capitalismo periférico e submisso ao centro do
imperialismo.
Portanto, não há qualquer contradição no fato de a imprensa brasileira
ter sido gerada na corte do império e ter herdado, primeiro, os cacoetes da
realeza e, segundo, as posturas dos senhores de engenho, dos barões do café e
dos capitães da indústria. Nasceu, assim, pelas mãos dos poderosos para servir
aos interesses dos poderosos, muito mais para controlar o povo do que para
libertar.
O desenvolvimento capitalista acrescentou ao sistema de comunicação o
modo operacional baseado na contínua modernização tecnológica, na disputa do
mercado, na concentração empresarial, na oligopolização do setor e na
exploração da mão de obra – todos no sentido de proporcionar a maior e a mais
rápida acumulação do capital, a disseminação de padrões de consumo – essencial
para a economia de larga escala e para a globalização dos mercados – e a
hegemonia do pensamento liberal.
A consolidação desse modelo foi possível porque funciona em perfeita
sintonia com o poder político do Estado, o qual, de um lado, tem sido também
poder concedente e fiscalizador do sistema de radiodifusão, e, de outro, tem
sido o “parceiro” que fornece os mais variados tipos de sustentação, desde
empréstimos nos bancos públicos, isenções para a aquisição de equipamentos e
papéis, até veiculação publicitária com forte injeção de dinheiro público
nessas empresas privadas.
Ao longo de mais de um século, o Estado brasileiro e o sistema privado
de comunicação – dentro do qual estão inseridos a imprensa e a atividade
jornalística – atuam de forma unificada na defesa dos interesses das classes
dominantes, prioritariamente para a preservação dos privilégios de suas elites
e do capitalismo. A imprensa funciona, escreveu o professor francês Serge
Halimi, como os novos cães de guarda do sistema.
Isso explica porque a imprensa – a chamada “grande imprensa”, que é
constituída pelos principais jornais, revistas, emissoras de rádio e de
televisão que operam comercialmente – tem sido, ao longo de anos, tão hostil aos
movimentos sociais formados pelas camadas populares e pelos trabalhadores do
campo e da cidade. Na verdade, ela reproduz fielmente a visão das elites, que
sempre consideraram “perigosas” as pessoas oriundas do povo.
Isso explica também porque essa imprensa tem sido hermética em fornecer
espaço editorial para setores subalternos, excluídos e marginalizados da
sociedade, e também aos grupos políticos, aos partidos e aos movimentos que se
propõem a defender ou a representar esses setores localizados na base da
pirâmide econômica e social. Para o professor Perseu Abramo, alguns veículos da
imprensa brasileira se constituem como partidos da burguesia, com programa
próprio e com inserção direta na luta de classes.
Nesse sentido, a violência praticada pela imprensa se configura na
ausência de efetiva prática democrática na cobertura jornalística dos fatos da
sociedade e, também, na imposição de uma visão de mundo única e exclusiva
daqueles que tudo têm e tudo podem, pois controlam a economia, a política, o
aparelho de Estado e demais instrumentos de pressão disponíveis na sociedade,
em especial o sistema de comunicação social.
Embora se esforcem em demonstrar que o País vive uma democracia, que
existe liberdade de expressão garantida na Constituição Federal, que o
jornalismo praticado pelos principais veículos de comunicação seguem normas de
isenção, imparcialidade e preceitos éticos iguais para todos, os donos da
imprensa não conseguem esconder as suas posições de classe, os seus interesses
econômicos e políticos, as suas preferências e os seus enfoques editoriais
particulares.
Qualquer leitura mais atenta dos jornais e revistas, e qualquer
pesquisa nos arquivos de qualquer veículo da chamada “grande imprensa”, vão
comprovar que a manipulação e a distorção funcionam como regra permanente, e
não como uma exceção. Ou seja, a exclusão, o preconceito, a crítica deliberada
e o tratamento que atendem melhor o interesse dominante, fazem parte do processo
de produção do jornalismo, desde a seleção da pauta, a escolha das fontes, até
a edição final do material. No caso específico da televisão, o universo de
manipulação abrange também o tempo de exposição, a imagem e o som utilizados em
cada matéria jornalística.
A voz das classes dominantes – de seus representantes nas mais
diferentes atividades profissionais e humanas – e de todos aqueles que se
pautam pelo pensamento neoliberal, é sempre determinante na maioria dos
veículos, embora expresse apenas o que interessa para a minoria da população
brasileira. A maioria do povo brasileiro não consegue colocar a sua voz nesses
veículos do sistema comercial-burguês, apesar de ser maioria.
Exclusão histórica
As principais manifestações populares e os principais movimentos
sociais sempre ficaram de fora ou foram maltratados pela “grande imprensa”
comercial-burguesa. Da mesma forma que a história oficial procurou esconder e
distorcer os movimentos de Canudos, Caldeirão, Contestado, Porecatu e tantos
outros, a imprensa tem escondido manifestações populares que pipocam pelo
Brasil afora, normalmente de contestação aos poderes das forças dominantes.
Um exemplo bem específico é o movimento desencadeado pelos metalúrgicos
da Scania, em 1978, em
São Bernardo do Campo, no ABC paulista, com desdobramentos
nos anos seguintes e que rompeu o cerco da ditadura militar no sindicalismo,
derrubou a política de arrocho salarial, mobilizou multidões, articulou a
solidariedade das classes trabalhadoras, contribuiu para o fortalecimento das
lutas pelos direitos e liberdades do povo, e que projetou inúmeras lideranças
operárias, inclusive o atual presidente da República, Luiz Inácio Lula da
Silva.
Durante o período das greves do ABC, a imprensa paulista e do Brasil
fez o que pode para distorcer o movimento, principalmente porque tinha a
desculpa de estar sob a mira da ditadura; as notícias dos jornais, diariamente,
tratavam as lutas dos trabalhadores como lutas subversivas, comandadas por
“perigosos comunistas” ou então como atitudes provocativas para estimular o endurecimento
do regime. A TV Globo, na época, gravava horas de imagens nas assembléias dos
metalúrgicos e pouco colocava no ar, mas as fitas eram passadas para o 2º
Exército identificar os “agitadores” do ABC.
O papel da imprensa comercial-burguesa ao longo dos anos 80 e 90 se
restringiu a ridicularizar, intrigar, desmoralizar e acusar os movimentos de
trabalhadores da cidade e do campo que se articularam em torno da CUT, do MST,
do PT e de inúmeras organizações locais e regionais. Quantas vezes a imprensa
não instigou os governos e as forças policiais do sistema a reprimir greves de
funcionários públicos e de operários, ou as ocupações de sem-terra na luta pela
reforma agrária? Alguém ainda se lembra da violenta repressão do governo FHC
contra os petroleiros, estimulada pelos editoriais dos principais veículos de
comunicação do País?
Nos últimos anos, o alvo principal da “grande imprensa” tem sido o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), especialmente depois que o
movimento demonstrou uma grande capacidade de articulação, nacional e
internacional, diante do massacre de Eldorado de Carajás, em 1996, e com a
marcha de abril de 1997, que culminou com uma grande concentração na Esplanada
dos Ministérios, em Brasília.
Desde então, os veículos mais conservadores, geralmente ligados ao capital
internacional, ao agronegócio e ao latifúndio (mesmo porque muitos veículos
pertencem a famílias oriundas da oligarquia rural), têm atacado
sistematicamente as ações e as lideranças do MST. Tentam, através dos mais
diferentes recursos e argumentos, criminalizar um movimento que organiza as
famílias no campo e estimula a construção de um País mais justo e mais
igualitário.
O Estadão chegou a manter correspondentes específicos para
produzir matérias distorcidas sobre ocupações de terra, acampamentos e assentamentos.
As TVs Globo, Record e Bandeirantes adoram produzir matérias parciais,
preconceituosas e, às vezes sórdidas, sobre o MST, geralmente com comentários
maliciosos e maldosos dos apresentadores dos telejornais.
A revista Veja, da Editora Abril,dedicou várias
reportagens de capa ao MST, entre as mais famosas as que ostentavam as
manchetes “A marcha dos radicais” e “A tática da baderna”. Sobre essa última, o
coordenador nacional do MST João Pedro Stedile, ofendido e caluniado no
material jornalístico, ganhou ação na justiça contra a revista, que foi
condenada a uma indenização de 200 salários mínimos. Ficou provado que a
revista havia manipulado deliberadamente para denegrir a imagem pública do
líder do movimento.
A violência praticada pela imprensa é o tipo de violência que não
atinge apenas os alvos escolhidos e as vítimas diretas, pois ela contamina
e corrói o conjunto da sociedade, na medida em que sonega a compreensão
da realidade e alimenta uma visão distorcida, dissemina a intriga, a calúnia e
o preconceito, não respeita a verdade dos fatos. A luta contra a violência e
contra a impunidade implica, também, na defesa de um sistema de comunicação
efetivamente democrático, que mostre o Brasil sem restrições e que garanta ao
povo o direito de expressar livremente a sua opinião – sem manipulação.
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*Hamilton Octavio de Souza é jornalista, articulista
do jornal Brasil de Fato e da revista Caros Amigos, e professor
da PUC-SP, chefe do Departamento de Jornalismo.
** Esse artigo foi publicado originalmente na Revista
PUCViva de abril de 2005.
***Halimi, Serge. Os
novos cães de guarda. Petrópolis – Editora Vozes, 1998.
**** Abramo, Perseu. Padrões de manipulação na grande imprensa. São Paulo – Editora
Fundação Perseu Abramo, 2003.