Entrevistas
Sin Permiso, uma revista de esquerda na Colômbia
"A disciplina sem generosidade é uma ilusão farisaica, e a generosidade sem disciplina, uma ilusão filistina”. Antoni Domènech
Entrevista a Myriam Bautista, para o jornal El Tiempo, de Bogotá 23.06.09
Antoni Domènech, editor geral da Sin Permiso
Um
grupo de intelectuais criou uma revista digital e impressa, com um
conselho editorial formado por líderes da esquerda, dos anos setenta,
de três continentes.
A imagem poderia ser de um conto de Julio
Cortázar: um grupo de homens e mulheres de duas gerações, com muito em
comum mas, talvez o mais importante, politicamente derrotados,
reunem-se para criar uma revista, com três núcleos de redação, em
Barcelona, Buenos Aires e México, e cada um com os pés em distintas
cidades, tantas como amigos de velhas lutas, dispersados pelo mundo.
Essas
pessoas, quase todas acadêmicas, chegaram a seus orientandos, que os
convenceram de que a revista em papel, com tiragem de quatro mil
númeos, tão volumosa como um livro, era importante, mas muito mais
importante era construir um site na internet para alcançar de imediato
um público mais amplo. Houve consenso. Velhos, mais jovens e jovens,
sem cobrar um só peso, puseram mãos à obra. Passaram três anos e SinPermiso
é já uma referência de leitura obrigatória, a cada oito dias, para 21
mil pessoas dos cinco continentes, inscritas gratuitamente em sua
edição eletrônica, na qual se publicam 15 artigos. Cada dia uns 25 mil
leitores acessam a página. A Colômbia ocupa a nona posição em acessos.
Maria
Julia Bertomeu e Carlos Abel Suárez em Buenos Aires, Adolfo Gilly no
México e Daniel Raventós em Barcelona são alguns dos membros do
Conselho Editorial. Na redação, entre muitos, destaca-se a colaboração
da militante histórica e mítica do Partido Comunista italiano. Rossana
Rossanda, desde Milão, com seus 85 anos e recém casada, escreve
permanentemente sobre a atualidade de seu país e do mundo.
O
editor geral, Antoni Domènech, desde muito jovem militou na resistência
clandestina antifranquista nas filas do Partido Comunista e estudou
filosofia e direito na Universidade de Barcelona. Desde 1994 é
catedrátido de Filosofia na Faculdade de Ciências Econômicas dessa
Universidade.
Domènech esteve em Bogotá, como expositor
principal num seminário sobre o filósofo político norte-americano John
Rawls e para apresentar a revista, no claustro de Santo Agostinho, a
conhecedores e profanos que não deixaram de acompanhar sua sisuda e
emotiva exposição.
Myriam Bautista - Na Apresentação da SinPermiso, onde aparece seu nome, termina com uma citação de Marx. Por que escolheu-a? Antoni Domènech
– Porque nessa citação se declara que, em todas as épocas, quem não tem
meios próprios de vida tem de pedir permissão a outros para viver, e
por isso não é livre. Liberdade não é ter que pedir permissão a outro
para sobreviver: é uma idéia velha que vem do antigo Mediterrâneo, dos
atenienses. É muito notável que na Crítica do Programa de Gotha, onde
está essa citação, Marx tenha se servido explicitamente dessa velha
idéia para ilustrar o que eram a democracia revolucionária (a da I
República Francesa de 1793) e o socialismo industrial modernos:
programas políticos de universalização da liberdade republicana. Que
ninguém tenha necessidade de ter de pedir permissão a outro para
sobreviver, que ninguém seja escravo de outro (de Aristóteles, Marx
tomou a idéia de que o trabalho assalariado era “escravidão em tempo
parcial”), essa é a idéia.
E converter essa citação de Marx no
título da revista implica ainda outra coisa: equivale a uma declaração
de princípios radicalmente laicos: nós não somos marxistas sectários,
religiosos. Sectário é quem acredita em mito fundador, segundo o qual a
origem de sua tradição moral ou política começa do zero, sem
antecedentes, como novidade absolutamente radical. Assim são todas as
religiões, sem exceção. Mas a democracia republicana e o socialismo
modernos se encontram numa larga tradição milenar de luta pela
liberdade republicana e por sua universalização, uma tradição ou um
conjunto de tradições de combate político que fincam suas mais velhas
raízes conhecidas nas lutas populares das velhas sociedades agrárias do
mediterrâneo antigo, e também, ainda mais profundamente, num anseio
humano universalmente reconhecível.
MB - SinPermiso não recebe anúncios publicitários, não recebe subvenções. Como funciona? Domènech
–– Nisso estamos voluntariamente inscritos na tradição publicista do
movimento operário internacional: antes da II Guerra Mundial, nenhum
periódico socialista (no amplo sentido do termo, que abarca desde o
trabalhismo britânico e as socialdemocracias continentais européias até
o anarcossindicalismo, passando pelos distintos comunismos) admitia
publicidade comercial, nem recebia subvenções públicas ou privadas.
Fazer boa propaganda política, fundada em análises intelectualmente
honradas e destinada a persuadir por uma mudança radical com bons
argumentos pública e racionalmente debatíveis é incompatível com a
dependência de publicidade mercenária - “mercenário” tem a mesma raiz
etimológica que “mercado” e “meretriz” -; é incompatível com ter que
pedir permissão a empresas privadas ou a governos para existir.
SinPermiso se faz de gratis et amore, com a disciplina e com a
generosidade dos velhos combatentes socialistas: de nossos maiores
anarcossindicalistas aprendemos que a disciplina sem generosidade é uma
ilusão farisaica; e de nossos maiores marxistas, que a generosidade sem
disciplina é uma ilusão filistina.
MB - Além de autores socialistas, que outros autores publicam em SinPermiso? Domènech – Às vezes publicamos liberais de esquerda inteligentes. Os prêmios Nobel Krugman e Stiglitz, por exemplo. Os enfants terribles do establishment
são interessantes, também porque conhecem por dentro as entranhas do
sistema. Michael Hudson, por exemplo, que sempre traduzimos e
publicamos com gosto em função da soberba qualidade analítica de seus
textos, e que é algo mais que um liberal de esquerda (um republicano
quase socialista), esteve 30 anos trabalhando em Wall Street antes de
romper com o sistema.
MB - Quando da apresentação de
SinPermiso aqui [em Bogotá] disse-se que a Revista vem publicando desde
pelo menos 2006 artigos premonitórios da atual crise econômica e
financeira mundial. Como foi isso? Domènech – É
verdade. E aí há que se dizer que os economistas que anteciparam o que
estava por vir não são acadêmicos do stablishment, nem sequer liberais
de esquerda críticos do sistema (como os mencionados Krugman e
Stiglitz), mas pessoas que, ou tinham rompido radicalmente com o que se
passou nos anos 90 – como o também mencionado Michael Hudson – ou
economistas de formação marxista analiticamente sólida, como meu amigo
berlinense Michael Krätke (membro do Conselho Editorial de SinPermiso),
atualmente na Universidade de Lancaster, no Reino Unido que, além de
ser de ser um dos editores da nova edição crítica internacional das
obras completas de Marx e Engels, é um reconhecido especialista em
mercados financeiros. Ou o historiador da Universidade da Califórnia
Los Angeles, Robert Brenner, também membro do Conselho Editorial de
SinPermiso. Também temos publicado peças analiticamente interessanes e
premonitórias do economista filipino Walden Bello, um “prêmio Nobel
Alternativo”.
MB - Como SinPermiso vê a situação atual? Domènech
– O momento atual é muito grave e complicado. Os três componentes da
chamada “globalização” posta em marcha desde meados dos anos 70
(primeiro, remundialização do capitalismo; segundo, neoliberalismo
entendido como saque privatizador do patrimônio público, inclusive do
patrimônio natural e, terceiro, financeirização da economia)
fracassaram, revelando ilusórias todas as aparências de prosperidade
grotescamente celebradas nas últimas décadas por intelectuais e
periodistas do sistema. Porém, a isso há que se somar, ao menos, a
crise energética – o esgotamento dos combustíveis fósseis que têm
estado na base da economia mundial nos últimos cem anos -, assim como a
crise ecológica derivada da destruição de vínculos ecossistêmicos
globais, cuja manifestação mais visível é a catastrófica mudança
climática em curso.
As três crises – econômica, energética e ecológica
– já estavam no horizonte nos anos 70: esta Guerra dos Trinta Anos em
que as forças da reação triunfaram, do obscurantismo e da
irresponsabilidade sobre as forças democráticas e populares em escala
planetária também significou perder 30 anos na resolução de problemas
gravíssimos e urgentes que estavam claramente apresentados já nos anos
70. E o que temos agora são, por um lado, forças muito apequenadas, as
da esquerda, que sofreu uma derrota espantosa logo após 68 e, por
outro, umas elites que, postas diante da evidência do fracasso
clamoroso de todas as suas políticas nas últimas três décadas, estão
desnorteadas, desconcertadas diante da magnitude de alguns problemas
que, vítimas de suas próprias mentiras e ideologemas, nem sequer
parecem capazes de compreender, para não falar em enfrentar.
MB - Conte-nos de seu último livro. Domènech
– É uma pesquisa acadêmica – demorei 10 anos para completar a
investigação que me permitiu escrevê-lo – sobre O Eclipse da
Fraternidade. Dos três valores emblemáticos da democracia republicana
moderna – liberdade, igualdade, fraternidade -, o da fraternidade não
só é hoje o mais enigmático, mas é o menos estudado. O que me propus
foi a estudar seu significado, como metáfora e como programa político,
para a ala plebéia da Revolução Francesa, assimo como seu problemático
legado para o socialismo industrial operário dos séculos XIX e XX. Daí
o subtítulo: “Uma revisão republicana da tradição socialista” que, como
observou um dia um dos críticos mais inteligentes de minha obra, também
poderia ter sido, ao contrário, “Uma revisão socialista da tradição
republicana”.
Núcleo
Piratininga
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