Entrevistas Gilberto Maringoni: apesar da crise, uma melhoria de vida para a população da Venezuela
A Revolução
venezuelana é o título do mais recente livro de Gilberto Maringoni.
Nele, o jornalista apresenta um histórico político deste país e contextualiza o atual momento, com suas possibilidades e limites, do governo de Hugo
Chávez. Maringoni debateu,
nesta entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line, algumas
questões que tratou na obra e que são levantadas tanto em função da campanha midiática
que se faz contra Chávez quanto com a chegada da crise financeira mundial e suas consequências para a economia
petroleira do país.
Por isso, Maringoni analisa as opções que Chávez tem dado
aos venezuelanos, a capacidade de desenvolvimento que esse novo modelo trouxe
para o país e, ainda, que pontos precisam ainda de mais ação governamental para
se sustentarem. “A imagem de Chávez para a população é de um tempo de melhoria
de vida”, define.
Gilberto Maringoni é doutor em História Social,
pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é pesquisador do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor de jornalismo da Faculdade
Cásper Líbero. Também é editor de política e repórter especial da Agência Carta Maior.
Confira a entrevista.
Diante da história política da Venezuela, como o senhor vê as
opções que o governo Chávez tem dado ao país?
Gilberto Maringoni – Nós completamos a primeira década de uma experiência que era tida no início como algo exótico na
América Latina. Isso se deve ao fato de que, naquela época, o continente era
governado pela corrente neoliberal, ou seja, Fujimori [1], Menem [2], Fernando Henrique Cardoso [3] etc.
E Chávez surgiu como uma exceção, o que era exaltado pelo verbo
cortante e pela maneira pouco ortodoxa de como se comportava na
presidência. Dez anos depois, a exceção é quase regra no continente, pois o
eleitorado tem se manifestado em vários países (notadamente na Bolívia, no Equador,
na Argentina, no Paraguai e mesmo no Uruguai e Brasil, que têm governos mais
moderados) contra aquele tipo de governante que privatizou e fez das relações
estreitas com os Estados Unidos o mote do seu governo. Esse é o traço
continental principal. Internamente, as políticas implementadas pelo governo da
Venezuela dão conta de uma orientação de fortalecer o Estado,
principalmente na segunda metade do seu governo, de 2004 para cá.
No ano de 2004, se fez o referendo revogatório que confirmou o mandato do
Chávez no poder até as eleições de 2006. A partir daquele ano, o governo pôde
implementar uma série de medidas internas. O ano de 2004 também foi
marcado pelo fato de os preços internacionais do petróleo conhecerem um crescimento vertiginoso, o que fez com que o governo tivesse muito dinheiro para
implementar suas políticas na área de infraestrutura, de serviços públicos
(saúde e educação, especialmente) e uma política externa muito ousada,
fortalecendo laços com países do sul do mundo. É um balanço positivo que se
faz. Embora a ação governamental seja pautada por um pragmatismo extremo, não
existe um plano muito definido dos passos que Chávez dá adiante.
Esses são sempre marcados pelas conjunções do momento.
A imagem de Chávez para a população é de um tempo de melhoria de vida, de aumento do
crédito. O ingresso da renda petroleira inundou o país de dinheiro e as pessoas
puderam investir em consumo pessoal – comprar carro, aparelhos eletrônicos,
casa. É uma melhoria tipicamente capitalista. Ao mesmo tempo, os serviços
públicos melhoraram em
termos. Chávez conformou uma série de características ao
Estado, criando quase que um Estado paralelo. Então, se a educação pública não
teve uma melhoria significativa, houve um plano de alfabetização que eliminou o
analfabetismo na Venezuela. Na área da saúde, os hospitais públicos continuam
com sérios problemas. A máquina pública está emperrada, hospitais têm sérias
carências de pessoal e equipamento, mas o atendimento básico ambulatorial foi
feito bairro adentro, ou seja, os médicos adentram os bairros e atendem a
população. Isso fez com que houvesse uma mudança substantiva no atendimento à
população.
Essas ações emergenciais também se deram no abastecimento, com
caminhões do exército que se colocam em locais estratégicos para vender
produtos de primeira necessidade a partir de estoques do governo. No
entanto, a inflação na Venezuela continua muito alta. Ou seja, Chávez
conseguiu, com uma série de ações, mostrar à população que o atendimento do
Estado mudou, mas a sua estrutura continua muito semelhante ao que era antes.
O senhor aponta que houve, com o governo Chávez, elevação dos
padrões de vida da população e a geração de empregos. Como está dividida,
social e economicamente, a sociedade venezuelana hoje?
Gilberto Maringoni – A Venezuela é um país pequeno que só tem o petróleo como
polo dinâmico de sua economia. Uma facilidade é o ingresso de dólares
quando o preço do petróleo está alto. Isso é muito bom. Agora, essa abundância
de capitais que entra na Venezuela não é capaz de promover o desenvolvimento
por si só. Por vários fatores: o primeiro deles é que o petróleo tende a inibir
a diversificação de outras atividades econômicas. Além disso, o petróleo
provoca um fenômeno que já tinha sido detectado nos anos 1950, por um estudo
pioneiro que foi feito por Celso
Furtado [4] na Venezuela, que é a sobrevalorização da moeda
nacional. Entra muito dólar, as reservas crescem muito, a moeda nacional se
valoriza, as importações ficam muito baratas e a exportações, caras. Os custos
de produção do petróleo quando a moeda está valorizada ficam muito altos e os
produtos ficam muito caros. O terceiro aspecto é que o
petróleo emprega pouca gente, pois não tem uma característica de se
capilarizar da economia petroleira e não se espalha pela sociedade como um polo
dinâmico e agregador. Fora isso, as disparidades salariais do pessoal que
trabalha e do pessoal que não trabalha com petróleo são enormes. A população
economicamente ativa da Venezuela é de 7 a 8 milhões de pessoas, e 40 mil trabalham
com petróleo. Essa economia funciona como uma economia de exportação e a
riqueza só pode se espalhar pela economia com ajuda do Estado. Por isso, o
neoliberalismo da Venezuela tem efeitos daninhos muito piores do que teve
em países não petroleiros.
E como a crise financeira mundial chegou até o país?
Gilberto Maringoni – Especialmente com a queda do preço do petróleo, que
chegou a 140 dólares em julho de 2008, vem caindo e chegou a 37 dólares em
janeiro de 2009. Ele volta a subir agora: nesta semana, o barril está por volta
de 60 dólares. O petróleo venezuelano é de qualidade inferior, apesar de o país
ser um dos maiores produtores mundiais. Por isso o preço sempre fica 100%
abaixo do petróleo leve, que é o que vemos na cotação dos jornais. Em todo o
primeiro semestre deste início do ano se deu abaixo do que o governo
venezuelano previa para o período. Ele previa, vendo a crise chegar, um
preço de 90 dólares o barril, depois revisou para 60 dólares, mas o valor, em
2009, chegou a 37 dólares. As contas públicas entraram numa situação bastante
difícil. Foram necessários vários cortes. Agora se espera que o petróleo suba
até um patamar de 90 dólares, para que o governo volte a ter uma folga. As
perspectivas, no momento, são bastante complicadas, pois os compromissos que o
país assumiu (sociais e de metas da diplomacia) podem não ser cumpridos.
O governo, portanto, lida com três
frentes de novidades: uma baixa de dinheiro para o governo via petróleo;
uma mudança do perfil da oposição que abandonou a tática de tentar uma saída
fora da institucionalidade, do golpe – então, o governo precisa ser mais
político; e com a mudança no ambiente internacional do governo estadunidense,
que se pauta muito mais pela articulação política do que pela agressão. Embora
os Estados Unidos não mudem sua pretensão de serem hegemônicos, mudam o
caminho para atingir esse objetivo.
A onda antiliberal parece que perdura porque tivemos agora as eleições em El Salvador e a Frente Farabundo Martí [5]
foi vitoriosa. A situação interna da Venezuela depende muito desse quadro
político latino-americano que eu, particularmente, espero que siga dando
vantagem para esses governos de centro e de esquerda.
Existe, em toda a América Latina, uma forte campanha midiática
antichavista. O apoio popular que Chávez possui hoje teve influência dessa
campanha?
Gilberto Maringoni – Chávez tem sido vítima dessa campanha midiática que
ora o retrata como um ditador, ora como um presidente folclórico. Eu não acho
que todas as ações de Chávez no terreno político mereçam aplauso. Penso
que ele alterna momentos de grande habilidade e de inabilidade. A cada tropeço que
o governo tem, isso é amplificado de maneira exponencial. Se Chávez resolve não
renovar a concessão de canais de televisão golpistas, na mídia isso é colocado
como se ele estivesse perseguindo a liberdade de imprensa. Quando ele tem ações
positivas, como a de eliminar o analfabetismo na Venezuela, é totalmente
ignorado pela grande mídia. A manifestação mais clara é na campanha midiática
interna que se faz no Brasil contra o ingresso da Venezuela no Mercosul. Essa é
uma atitude descabida porque o comércio entre a Venezuela e Brasil aumentou
exponencialmente entre 2002 e 2009. Hoje, o Brasil tem um saldo comercial de
quase cinco bilhões de dólares com a Venezuela, por exemplo.
E quem, além da imprensa, se coloca contra?
Gilberto Maringoni – O presidente do Senado, José Sarney, que diz que
Chávez é antidemocrático e aprendiz de ditador. Engraçada é a figura de Sarney,
que foi presidente do partido da ditadura, governador biônico no Maranhão, se
colocou contra as eleições diretas e hoje vem falar, sem autoridade alguma, que
a Venezuela vive um regime ditatorial. Justiça seja feita: a mídia brasileira
não está sozinha nisso. Ela é acompanhada pela mídia conservadora dos Estados
Unidos, da França, da Espanha, da Itália e de outros países. Não podemos
aplaudir tudo o que Chávez faz, ou seja, não podemos perder o senso
crítico. De qualquer modo, também não podemos perder de vista o balanço desses
dez anos de administração
de Hugo Chávez na Venezuela.
E quais são os limites da Venezuela?
Gilberto Maringoni – O primeiro limite é estrutural, em função do fato
de ser um país não industrializado. Foram feitas várias tentativas de
se diversificar a matriz produtiva da Venezuela, antes mesmo de Chávez, mas a
dependência do petróleo acaba dificultando. A Venezuela tem um mercado interno
muito reduzido para a instalação de uma indústria extensiva, de largo
porte. Uma indústria automobilística, para dar certo na Venezuela, não pode
atender só ao mercado interno, mas sim a um mercado regional. O mesmo acontece
com a indústria de outros produtos, ou seja, só se viabiliza numa economia de
escala. Com a crise, isso está mostrando seu lado perverso. Caiu o preço do
petróleo e a Venezuela cai junto. É muito diferente da economia brasileira.
A segunda dificuldade da
Venezuela é a baixa organização popular. Embora isso tenha melhorado, os
partidos têm pouca representatividade social. Vendo isso, o governo tentou
criar, de cima para baixo, a central sindical, partido e etc., mas com
dificuldade, porque são criações artificiais. Por isso, se houvesse um atentado
contra Chávez, o processo político venezuelano estaria em xeque, porque depende
quase de uma pessoa só.
Além disso, a Venezuela é um país pequeno, embora tenha tido um papel decisivo
no apoio a Cuba e aos países mais pobres da América Central. Agora, essa
política está em xeque, se o preço do petróleo não subir.
Notas:
[1]
Alberto Kenya Fujimori é um engenheiro agrônomo e político nipo-peruano
que ocupou a presidência do Peru durante dez anos. A Fujimori se credita ter
logrado restaurar a estabilidade macroeconômica do Peru e restaurar a paz e
seguridade interna depois do colapso do último governo. Durante os últimos
meses do ano de 2000, Fujimori foi encurralado por uma serie de escândalos em
seu governo. Durante esses fatos, saiu do Peru na qualidade de presidente para
assistir à convenção da APEC, em Brunei, de onde depois viajou ao Japão, onde
renunciou à presidência e pediu asilo político.
[2] Carlos Saúl Menem Akil foi presidente da Argentina durante dez anos.
Foi muito criticado por um governo de corrupção, o seu perdão a ex-ditadores, o
fracasso das suas políticas econômicas que levaram à taxa de desemprego de mais
de 20% e uma das piores recessões que a Argentina já teve.
[3] Fernando Henrique Cardoso é um sociólogo que foi presidente do
Brasil por oito anos. Atualmente, é copresidente do Inter-American Dialogue. É
membro dos Conselhos Consultivos do Institute for Advanced Study, da
Universidade de Princeton, e da Fundação Rockefeller, em Nova Iorque.
[4] Celso Monteiro Furtado foi um importante economista brasileiro e um
dos mais destacados intelectuais do país ao longo do século XX. Suas ideias
sobre o desenvolvimento e o subdesenvolvimento divergiram das doutrinas
econômicas dominantes em sua época e estimularam a adoção de políticas
intervencionistas sobre o funcionamento da economia.
[5] A Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional é um partido
político socialista de El Salvador. Foi fundada como um grupo guerrilheiro
em 1980 a
partir da fusão das outras cinco organizações políticas. Em março de 1980, o
assassinato do arcebispo de San Salvador, Oscar Romero, defensor dos Direitos
Humanos, marca o começo da guerra civil no país. No mesmo ano, em dezembro, o
cristão-democrata, José Napoleón Duarte, membro da junta civil-militar que
havia tomado o poder em 1979, através de um golpe de estado, assume o poder,
tornando-se presidente. As ações da guerrilha, capitaneadas pelo partido,
desestruturaram vários serviços do país, como transporte, energia e
comunicações, fazendo com que o mesmo termine a década de 1980 dominando ¼ do
território salvadorenho. Em novembro de 1989, a FMLN chegou a dominar partes de San
Salvador, mas falhou na tentativa de derrubar o governo central. Em abril de
1991, as negociações com o governo para a assinatura de um acordo de paz foram
retomadas. Em março de 2009,
a FMLN conseguiu eleger Mauricio Funes presidente no
primeiro turno com 51,32% dos votos.