Direitos Humanos Artigo da FSP mostra situação precária dos cortadores de cana no interior de São Paulo
Por Mário Magalhães e Joel Silva Publicado na Folha de S.Paulo em 25/08/08
Pontualmente às 4h42, a
canavieira Ilma Francisca de Souza parte para o trabalho com sua marmita
fornida de arroz coberto por uma lingüiça cortadinha. Em outro bairro de
Serrana, ainda antes de o sol nascer, Rosimira Lopes sai para o canavial
levando arroz com um só acompanhamento: feijão.
Durante o dia, elas vão dar conta da comida, que já terá esfriado. A despeito
do notável progresso que ergue usinas de etanol com tecnologia assombrosa, o
Brasil segue sem servir refeições quentes aos lavradores da cana-de-açúcar.
A bóia continua fria.
Durante dois meses, a Folha investigou as condições de vida e trabalho dos
cortadores de cana no Estado que detém 60% da produção do país que é o
principal produtor do planeta. Gente como Ilma e Rosimira.
Em uma das etapas de apuração da reportagem, por 15 dias percorreram-se 3.810 quilômetros
de carro, o equivalente a nove trajetos São Paulo-Rio de Janeiro. Pela primeira vez em cinco séculos, desde que as mudas pioneiras foram trazidas
pelos portugueses, em 2008 ao menos metade da cana de São Paulo não será
colhida por mãos, mas por máquinas. É o que anunciam os usineiros.
Como na virada do século 16 para o 17, quando o país era o líder do fabrico de
açúcar, a cana oferece imensas oportunidades ao Brasil, em torno do álcool
combustível do qual ela é matéria-prima. O etanol pode se transformar em
commodity, com cotação no mercado internacional. As usinas geram energia
elétrica.
A riqueza do setor sucroalcooleiro, que movimentará neste ano R$ 40 bilhões,
não atingiu os lavradores. Em 1985, um cortador em São Paulo ganhava em média R$ 32,70 por dia
(valor atualizado). Em 2007, recebeu R$ 28,90. A remuneração caiu, mas as
exigências no trabalho aumentaram. Em 1985, o trabalhador cortava 5 toneladas
diárias de cana. Na safra atual, 9,3.
Em 19 cidades do interior -na capital foi ouvido um representante dos
empresários- , os repórteres procuraram entender por que, entre nove culturas
agrícolas, a da cana reúne os trabalhadores mais jovens.
Exige alto esforço físico uma atividade em que é preciso dar 3.792 golpes com o
facão e fazer 3.994 flexões de coluna para colher 11,5 toneladas no dia. Nos
últimos anos, mortes de canavieiros foram associadas ao excesso de trabalho.
Conta-se a seguir o caso de um bóia-fria que morreu semanas após colher 16,5
toneladas. Não há paralelo em qualquer região com tamanho rendimento.
Na estrada, flagraram-se ônibus deteriorados, ausência de equipamentos de
segurança no campo, moradias sem higiene e pagamento de salário inferior ao
mínimo.
Conheceram-se comunidades de canavieiros que dependem do Bolsa Família,
migrantes que tentam a sorte e lavradores que querem se livrar do crack e de
outras drogas.
Descobriram-se documentos que comprovam a existência de fraudes no peso da
cana, lesando os lavradores.
Escravidão
No auge e na decadência do ciclo da cana-de-açúcar, os escravos cuidaram da
lavoura e puseram os engenhos para funcionar. A arrancada do etanol brasileiro
foi dada por lavradores na maioria negros.
Assim como os escravos sumiram de certa historiografia, os cortadores são uma
espécie invisível nas publicações do setor. Exibem-se usinas high-tech, mas
oculta-se a mão-de-obra da roça.
Impressiona na viagem ao mundo e ao submundo da cana a semelhança de símbolos
da lavoura atual com a era pré-Abolição. O fiscal das usinas é chamado de
feitor.
Acumulam-se denúncias de trabalho escravo. É um erro supor que as acusações de
degradação passem longe do Estado mais rico do país e se limitem ao
"Brasil profundo". Uma delas é narrada adiante. Em São Paulo, localiza-se
Ribeirão Preto, centro canavieiro tratado como a nossa "Califórnia".
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem minimizado os relatos sobre trabalho
penoso nos canaviais. No ano passado, ele disse que os usineiros "estão
virando heróis nacionais e mundiais porque todo mundo está de olho no
álcool".
O medo de retaliações é grande entre os canavieiros. Nenhum nome foi mudado nos
textos, mas algumas pessoas, a pedido, são identificadas apenas pelo prenome ou
nem isso. As entrevistas foram gravadas com consentimento.
São muitos esses anti-heróis: segundo os usineiros, há 335 mil cortadores de
cana no Brasil, incluindo os 135 mil de São Paulo. No Estado, prevê-se a
extinção do corte manual para 2015, junto com as queimadas que facilitam a
colheita.
Ilma e Rosimira compõem uma espécie em extinção. Por meio milênio, os cortadores,
escravos ou assalariados, viveram tempos difíceis. Nos próximos anos, não será
diferente: com baixa qualificação, eles terão de procurar outros meios de
sobrevivência.
Não há sindicato que não constate queda nas contratações.
O canavial não está tão longe quanto parece: ao encher o tanque com 49 litros de álcool,
consome-se uma tonelada de cana; quando se adoça com açúcar o café da manhã,
milhares de brasileiros já estão na lavoura de facão na mão.