Entrevistas Eric Hobsbawn: “Se a humanidade não mudar sua convivência mútua e com o planeta, o futuro nos preserva maus agouros”
Por Verena Glass
Para a Revista Sem Terra 1.06.09
Em entrevista exclusiva à Revista Sem Terra, o historiador Eric Hobsbawm apresenta ao leitor
sua avaliação das origens, efeitos e desdobramentos da crise mundial. Desde que sua grandeza se fez sentir, com seus capítulos
ambiental, climático, energético, alimentar e, por fim, econômico, acadêmicos,
sociólogos, economistas, políticos e lideranças sociais procuram entender e
explicar suas causas, e analisar e prever suas conseqüências.
Muitos têm
buscado respostas e soluções apenas no próprio universo econômico. Outros
concluíram que vivemos uma crise civilizatória, e que o capitalismo implodiu
por seus próprios desmandos. Mas ninguém parece ter respostas definitivas sobre
o que nos prepara o futuro. Assim também Hobsbawm, o maior historiador marxista
da atualidade. Aos 92 anos, o autor de algumas das mais importantes obras
acerca da história recente da humanidade, como A Era das Revoluções (sobre o
período de 1789 a
1848), A Era do Capital (1848-1875), A Era dos Impérios (1875-1914) e A Era dos Extremos –
O Breve Século 20,
lançado em 1994, não arrisca previsões sobre como será o mundo pós-crise.
Nesta entrevista, concedida por e-mail de Paris, porém, Hobsbawm
apresenta suas opiniões como contribuição ao debate. De certezas, apenas a de
que, se a humanidade não mudar os rumos da sua convivência mútua e com o planeta,
o futuro nos preserva maus agouros. Cético e ao mesmo tempo esperançoso, não
acredita que uma nova ordem mundial surgirá das cinzas do pós-crise, mas acha que
ainda existem forças capazes de propor novas formas de organização e cultura
políticas e sociais, como o MST.
Revista Sem Terra - O planeta vive hoje uma crise que
abalou as estruturas
do capitalismo mundial, atinge indiscriminadamente atores
em nada responsáveis pela sua eclosão, e que talvez seja um dos mais importantes
“feitos” da moderna globalização. Na sua avaliação, quais foram os fatores e
mecanismos que levaram a esta situação?
Eric Hobsbawm – Nos
últimos quarenta anos, a globalização, viabilizada pela extraordinária
revolução nos transportes e, sobretudo, nas comunicações, esteve combinada com a
hegemonia de políticas de Estado neoliberais, favorecendo um mercado global
irrestrito para o capital em busca de lucros. No setor financeiro,isto ocorreu de forma absoluta, o que explica porque a
crise do desenvolvimento capitalista ocorreu ali.
Apesar do fato de que o
capitalismo sempre — e por natureza — opera por meio de uma sucessão de
expansões geradoras de crises, isto criou uma crise maior e potencialmente
ameaçadora para o sistema, comparável à Grande Depressão que se seguiu a 1929,
mesmo que seja cedo para avaliarmos todo o seu impacto. Um problema maior tem
sido que a tendência de declínio das margens de lucro, típico do capitalismo,
tem sido particularmente dramática porque os operadores financeiros,
acostumados a enormes ganhos com investimentos especulativos em épocas de
crescimento econômico, têm buscado mantê-los a níveis insustentáveis, atirando-se
em investimentos inseguros e de alto risco, a exemplo dos financiamentos
imobiliários “subprime” nos EUA. Uma enorme dívida, pelo menos quarenta vezes
maiordo que a sua base econômica atual foi
assim criada, e o destino disso era mesmo o colapso.
Como resposta à crise econômica, governos e
instituições financeiras estão concentrados em salvar os sistemas bancário e financeiro,
opção que tem sido considerada uma tentativa de cura do próprio vetor
causador do mal. No que deve resultar este movimento?
Um sistema de
crédito operante é essencial para qualquer país desenvolvido, e a crise atual demonstra
que isso não é possível se o sistema bancário deixa de funcionar. Nesse sentido, as medidas nacionais para restaurá-lo são
necessárias. Mas o que é preciso também é uma reestruturação do Estado por exemplo,
através das nacionalizações, a “desfinanceirização” do sistema e a restauração
de uma relação realista entre ativos e passivos econômicos. Isso não pode ser
feito simplesmente combinando vastos subsídios para os bancos com uma regulação
futura mais restrita. De toda forma, a depressão econômica não pode ser
resolvida apenas via restauração do crédito. São essenciais medidas concretas
para gerar emprego e renda para a população, de quem depende, em última
instância, a prosperidade da economia global.
Antes de se aprofundar o caos econômico, o mundo
começou a sofrer uma sucessão de abalos sociais e ambientais, como a falta
global de alimentos, as mudanças climáticas, a crise energética, as crises humanitárias
decorrentes das guerras, entre outros. Como você avalia estes fatores na
perspectiva do paradigma civilizatório e de desenvolvimento do capitalismo
moderno?
Vivemos meio
século de um crescimento exponencial da população global, e os impactos da
tecnologia e do crescimento econômico no ambiente planetário estão colocando em
risco o futuro da humanidade, assim como ela existe hoje. Este é o desafio central
que enfrentamos no século 21. Vamos ter que abandonar a velha crença — imposta
não apenas pelos capitalistas — em um futuro de crescimento econômico ilimitado
na base da exaustão dos recursos do planeta.
Isto significa que a fórmula da
organização econômica mundial não pode ser determinada pelo capitalismo de mercado
que, repito, é um sistema impulsionado pelo crescimento ilimitado. Como esta
transição ocorrerá ainda não está claro, mas se não ocorrer, haverá uma
catástrofe.
O capitalismo tem adquirido, cada vez mais, uma
força hegemônica na agricultura com o crescimento do agronegócio. Muitos
defendem que a Reforma Agrária não cabe mais na agenda mundial. Como vê este
debate e a luta pela terra de movimentos sociais como o MST e a Via Campesina?
A produção
agrícola necessária para alimentar os seis bilhões de seres humanos do planeta
pode ser fornecida por uma pequena fração da população mundial, se compararmos
com o que era no passado. Isso levou tanto a um declínio dramático das
populações rurais desde 1950, quanto a uma vasta migração do campo para as cidades.
Também levou a um crescente domínio da agricultura por parte não tanto do
grande agronegócio, mas principalmente de empreendimentos capitalistas que hoje
controlam o mercado desta produção. Da mesma forma, têm aumentado os conflitos
entre agricultores e iniciativas empresariais na disputa pela terra para
propósitos não agrícolas (indústrias, mineração, especulação imobiliária,
transporte etc.), bem como pela sua posse e pela exploração dos recursos
naturais.
A Reforma Agrária sem dúvida não é mais tão importante para a
política como foi há 40 anos, pelo menos Insustentável: crescimento econômico e
da população colocam em risco o futuro da amizade na América Latina, mas
claramente permanece uma questão central em muitos outros países. Na minha
opinião, a crise atual reforça a importância da luta de movimentos como o MST,
que é mais social do que econômica. Em tempos de vacas gordas é muito mais
fácil ganhar a vida na cidade. Em tempos de depressão, a terra, a propriedade
familiar e a comunidade garantem a segurança social e a solidariedade que o capitalismo
neoliberal de mercado tão claramente nega aos migrantes rurais desempregados.
Na virada do século, um novo movimento global de
resistência social tomou corpo através do que ficou conhecido como
altermundialismo. Surgiu o Fórum Social Mundial, e grandes manifestações contra
a guerra e instituições multilaterais, como a OMC, o G8 e a ALCA, na América
Latina, ganharam as ruas. Na sua avaliação, o que resultou destes movimentos? E
hoje, como vê estas iniciativas?
O movimento
global de resistência altermundialista merece o crédito de duas grandes
conquistas: na política, ressuscitou a rejeição sistemática e a crítica ao
capitalismo que os velhos partidos de esquerda deixaram atrofiar. Também foi
pioneiro na criação de um modo de ação política global sem
precedentes, que superou fronteiras nacionais nas manifestações de Seattle e
nas que se seguiram. Grosso modo, logrou formular e mobilizar uma poderosa
opinião pública que seriamente pôs em cheque a ordem mundial neoliberal, mesmo
antes da implosão econômica.
Seu programa propositivo, porém, tem sido menos
efetivo, em função, talvez, do grande número de componentes ideologicamente e
emocionalmente diversos dos movimentos, unificados apenas em aspirações muito generalistas
ou ações pontuais em ocasiões específicas.
Principalmente na América Latina, os anos 2000
trouxeram uma série de mudanças políticas para a região com a eleição de
governadores mais progressistas. A sociedade civil organizada ganhou espaço nos
debates políticos, mas os avanços na garantia dos direitos sociais ainda
esperam por uma maior concretização. Como analisa este fenômeno?
O fator mais
positivo para a América Latina é a diminuição efetiva da influência política e
ideológica — e, na América do Sul, também econômica — dos EUA. Um segundo fator
muito importante é o surgimento de governos progressistas — novamente mais
fortes na América do Sul — , inspirados pela grande tradição da igualdade,
fraternidade e liberdade, que comprovadamente está mais viva aí do que em
outras regiões do mundo neste momento.
Estes novos regimes têm se beneficiado
de um período de altos preços de seus bens de exportação. Quão profundamente
serão afetados pela crise econômica, principalmente o Brasil e a Venezuela, ainda
não está claro. Suas políticas têm logrado algumas melhorias sociais genuínas,
mas até agora não reduziram significativamente as enormes desigualdades
econômicas e sociais de seus países. Esta redução deve permanecer a maior
prioridade de governos e movimentos progressistas.
Haveria, em sua opinião, a possibilidade real da construção de um novo
socialismo, uma nova forma de lidar com o planeta e sua gente, capaz de
enfrentar a hegemonia bélica,
econômica e política do neoliberalismo?
Eu não
acredito que exista uma oposição binária simples entre “um novo socialismo” e a
“hegemonia do capitalismo”. Não existe apenas uma forma de capitalismo. A
tentativa de aplicar um modelo único, o “fundamentalismo de mercado” global
anglo-americano, é uma aberração histórica, que potencialmente colapsou agora e
não pode ser reconstruída. Por outro lado, o mesmo ocorre com a tentativa de identificar
o socialismo unicamente com a economia centralizada planejada pelo Estado dos
períodos soviético e maoísta. Esta também já era (exceto talvez se nosso século
for reviver os períodos temporários de guerra total do século 20).
Depois da
atual crise, o capitalismo não vai desaparecer. Vai se ajustar a uma nova era
de economias que combinarão atividades econômicas públicas e privadas. Mas o
novo tipo de sistemas mistos tem que ir além das várias formas de “capitalismo
de bem estar” que dominou as economias desenvolvidas nos trinta anos que se
seguiram à Segunda Guerra Mundial. Deve ser uma economia que priorize a justiça social, uma
vida digna para todos e a realização do que Amaratya Sen chama de
potencialidades inerentes aos seres humanos. Deve estar organizada para
realizar o que está além das habilidades do mercado dos caçadores-de-lucro,
principalmente para confrontar o grande desafio da humanidade neste século 21:
a crise ambiental global.
Se este novo sistema se comprometer com os dois
objetivos, poderá ser aceitável para os socialistas, independente do nome que
lhe dermos. O maior obstáculo no caminho não é a falta de clareza e
concordância entre as esquerdas, mas o fato de que a crise econômica global
coincide com uma situação internacional muito perigosa, instável e incerta, que
provavelmente não estabelecerá uma nova estabilidade por algum tempo. Entrementes,
não há consenso ou ações comuns entre os Estados, cujas políticas são dominadas
por interesses nacionais possivelmente incompatíveis com os interesses globais.
Conceitos como solidariedade, cooperação,
tolerância, justiça social, sustentabilidade ambiental, responsabilidade do
consumidor, desenvolvimento sustentável, entre outros, têm encontrado eco,
mesmo de forma ainda frágil, na opinião pública. Acredita que estes princípios
poderão, no futuro, ganhar força e influenciar a ordem mundial? Vê algum
caminho que possa aproximar a humanidade a uma coabitação harmoniosa?
Os conceitos
listados estão mais para slogans do que para programas. Eles ou ainda precisam ser
transformados em ações e agendas (como a redução de gases de efeito estufa,
encorajada ou imposta pelos governos, por exemplo), ou são subprodutos de
situações sociais mais complexas (como “tolerância”, que existe efetivamente
apenas em sociedades que a aceitam ou que estão impedidas de manter a
intolerância).
Eu preferiria pensar na “cooperação” não apenas como um ideal
generalista, mas como uma forma de conduzir as questões humanas, como as
atividades econômicas e de bem estar social. Me entristece que a cooperação e a
organização mútua, que eram um elemento tão importante no socialismo do século
19, desapareceram quase que completamente do horizonte socialista do século 20
– mas felizmente não da agenda do MST. Espero que esta lista de conceitos
continue conquistando o apoio e mobilize a opinião pública para pressionar efetivamente
os governos.
Não acredito que a humanidade alcançará um estado de “coabitação
harmoniosa” num futuro próximo. Mas mesmo se nossos ideais atualmente são apenas utopias, é
essencial que homens e mulheres lutem por elas.
O senhor, que estudou com profundidade a história
do mundo e as relações humanas nos últimos séculos, o que espera do futuro?
Se a crise
ambiental global não for controlada, e o crescimento populacional estabilizado,
as perspectivas são sombrias. Mesmo se os efeitos das mudanças climáticas
possam ser estabilizados, produzirão enormes problemas que já são sentidos,
como a crescente competição por recursos hídricos, a desertificação nas zonas tropicais
e subtropicais, e a necessidade de projetos caros de controle de inundações em
regiões costeiras. Também mudarão o equilíbrio internacional em favor do
hemisfério Norte, que tem largas extensões de terras árticas e subárticas
passíveis de serem cultivadas e industrializadas.
Do ponto de vista econômico,
o centro de gravidade do mundo continuará a se mover do Oeste (América do Norte
e Europa) para o Sul e o Leste asiático, mas o acúmulo de riquezas ainda
possibilitará às populações das velhas regiões capitalistas um padrão de vida
muito superior às dos emergentes gigantes asiáticos. A atual crise econômica
global vai terminar, mas tenho dúvidas se terminará em termos sustentáveis para
além de algumas décadas.
Politicamente, o mundo vive uma transição desde o fim
da Guerra Fria. Se tornou mais instável e perigoso, especialmente na região entre
Marrocos e Índia. Um novo equilíbrio internacional entre as potências — os EUA,
China, a União Européia, Índia e Brasil — presumivelmente ocorrerá, o que
poderá garantir um período de relativa estabilidade econômica e política, mas
isto não é para já. O que não pode ser previsto é a natureza social e política
dos regimes que emergirão depois da crise. Aqui as experiências do passado não
podem ser aplicadas. O historiador pode falar apenas das circunstâncias
herdadas do passado. Como diz Karl Marx: ahumanidade faz a sua própria história. Como a fará e com que resultados,
muitas vezes inesperados, são questões que ultrapassam o poder de previsão do
historiador.