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Entrevistas
O Brasil é um país governado pelo latifúndio, afirma Carlos Walter Porto

Fonte: Comissão Pastoral da Terra
21.05.09


Estudioso da questão agrária no Brasil e colaborador da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em especial nos Cadernos de Conflitos no Campo, Carlos Walter Porto Gonçalves nos fala sobre a concentração de terras no país, comenta o aumento assustador da violência no meio rural e aponta perspectivas para os/as trabalhadores/as e comunidades tradicionais. Para ele, é o poder invisível do latifúndio que mantém a estrutura desigual da sociedade brasileira.

Confira a entrevista com professor Carlos Walter Porto, da Universidade Federal Fluminense (UFF):



CPT: Dados atuais divulgados pela CPT mostram que nos últimos anos aumentou o número de mortes ocasionadas por conflito no campo. Qual sua análise sobre a situação atual do campo brasileiro, e quais as perspectivas para os/as trabalhadores/as rurais?

Carlos Walter: Bom, na verdade estamos diante de um momento que confirma uma história que sempre esteve marcada por violência: que é a história do campo brasileiro. Sobretudo, porque a sociedade brasileira tem a sua estrutura de poder ancorada, fincada sobre a concentração do poder da terra. Não só desde o período colonial, com a concessão das sesmarias, mas mesmo depois da Independência, do período republicano. Ou seja, em todas as diferentes fases que temos tido em nossa história. Inclusive, a fase atual. Apesar do Lula ter uma trajetória política vinda dos movimentos sociais e que chegou a dizer que achava um absurdo um Presidente da República não fazer a Reforma Agrária, o fato concreto é que ele também não fez. Isso só reafirma o poder de certa forma invisível, um poder que não é eleito, afinal ninguém elegeu o latifúndio para governar o Brasil, mas na verdade é o latifúndio que governa o Brasil. E isso acaba sendo a razão de toda a violência.

 
O que tem acontecido nos últimos anos, sobretudo se tomarmos os anos 70 como referência a partir da construção da Transamazônica, que foi um momento de grande debate no país, em função dos conflitos que se deram, é que esse padrão de conflitos permanece, em função da construção de grandes obras, seja de hidrelétricas (para a geração de energias, sobretudo para as grandes empresas e indústrias), estradas (geralmente ligadas a portos, para vincular a economia brasileira à exportação, característica que também vem desde o período colonial). E nos últimos anos temos tido, na época do Governo FHC, o Avança Brasil; no Governo Lula, o PAC; tudo isso tem acentuado o avanço sobre as terras. Isso, em minha opinião, tem mantido esse caráter de estrutura violenta que marca a história do campo brasileiro.

Então, acho que há razões históricas que permanecem e razões atuais em função dessas obras de infra-estrutura que aparecem. Por exemplo, o que é uma estrada? Uma estrada acaba proporcionando o acesso a novas terras. Terras que estavam fora do mercado, quando você abre a estrada você dá acessibilidade, dá acesso a essas terras. E o Governo não aproveita essas estradas para fazer a reforma agrária, ao contrário, os grandes acabam avançando sobre essas áreas. E isso que poderia ser considerado uma coisa moderna acaba ligando a uma das coisas mais tradicionais da história do Brasil que são os cartórios, onde essas empresas modernas usam as velhas práticas de grilagem de terras. Então, é a modernização tomando terras, a partir do avanço das rodovias, ferrovias, dos portos, na perspectiva de “ah, vamos exportar!”, e infelizmente esse processo avança quase sempre com uma agricultura empresarial, que faz grandes plantações de monoculturas (girassol, dendê, cana, soja), geralmente voltados para a exportação.

Ou seja, as infra-estruturas estão sendo montadas não para servir ao próprio povo brasileiro, que acaba perdendo suas terras e indo para as cidades. E aí hoje em dia as indústrias não empregam tanto como empregavam há 40 anos, pelo próprio desenvolvimento tecnológico. Então vivemos um quadro como se fosse uma bomba-relógio, embora já esteja explodindo em vários pontos, que são esses conflitos e essas mortes que você apontou.

 

CPT: Grande parte desses mega-projetos para o campo brasileiro prevê a expulsão de comunidades tradicionais de suas terras. Que estratégias essas comunidades precisam desenvolver para assegurar os seus territórios?
Carlos Walter:
Primeiro, é preciso se organizar e se mobilizar. No Pantanal Mato-Grossense, há um dito popular que diz que jacaré parado vira bolsa, acaba sendo morto. Então, é preciso se organizar. Até porque a legislação brasileira prevê direitos a essas populações, então elas resistirem na terra estão fazendo na resistência com que se respeite um direito que está constitucionalmente garantido a elas.

As estruturas de poder no Brasil nem sempre cumprem a lei, ou cumprem na medida em que lhes favoreça. O que essas comunidades precisam primeiro saber é que o fato delas ocuparem essas terras há muitos anos lhes dá direito para isso. No caso das comunidades remanescentes de quilombos, ainda tem uma legislação específica que ainda se agregaria àquela velha legislação sobre o usucapião que as comunidades têm o direito de permanecer nessas terras.

Então, se organizar para defender as suas terras é se organizar para defender um direito que está constitucionalizado. E aí tem vários movimentos sociais que têm experiência nisso e outros têm se organizado de outras maneiras, sobretudo os quilombolas, que antes era fugindo para áreas um pouco acidentadas, áreas de difícil acesso, áreas estratégias. Os quilombos nunca tiveram dissociados do resto do Brasil, embora estivessem sempre escondidos.


No Brasil, a história dessas comunidades é uma história muito bonita que a sociedade brasileira precisa se orgulhar dela. Porque do outro lado dessa história do latifúndio, da monocultura, da escravidão, enfim dessa injustiça social que marcou a própria formação do Brasil e do território brasileiro, essas comunidades foram constituir espaços de liberdade. Então, o Brasil tem uma geografia da liberdade e que a sociedade brasileira deveria conhecer.

Hoje, há uma entrada de grandes capitalistas estrangeiros que no momento de crise estão procurando comprar terras de valor. Por que isso me preocupa? Preocupa por duas razões: a primeira é que o avanço da cana em São Paulo está sendo célere sobre áreas de pastagem. Quando você entra com a cana sobre a pastagem, você pergunta para onde é que vai o gado? O gado está indo para o Cerrado da Bahia, o gado está invadindo as áreas de fronteira da Amazônia, então está havendo um avanço devastador da pecuária que vai atingindo comunidades e aí essas estradas que eu falei antes vão proporcionando a chegada desses capitalistas que pressionam as comunidades indígenas, quilombolas, geraiseiros, vazanteiros, entre outras.

 
E o outro lado dessa história, tão perverso quanto o primeiro, é o fator que atrai essas empresas para o Brasil. Se o Brasil tivesse as suas terras democraticamente distribuídas, 30 ha, 50 ha distribuídos para a população, dificilmente um capitalista desses que está procurando lugar para aplicar o seu dinheiro, iria comprar tantas terras. Mas, ele chega aqui e compra 50 mil ha, 20 mil ha de uma só vez. Porque a estrutura agrária do Brasil é tão concentradora de terras na mão de poucos que atrai o capital estrangeiro que pode comprar de uma vez só muita terra. E o pior que sabemos que a maioria dessas terras é de titularidade falsa, formalmente legalizadas, mas que se você entrar num processo de discriminatória grande parte dessas terras são públicas.

 
CPT: Então, a discriminatória das terras públicas deve ser, hoje, a principal estratégia dos movimentos de luta pela terra?
Carlos Walter:
Se o Ministério Público existe, foi criado na Constituição de 88, para defender a sociedade, o cumprimento da lei, eu acredito que o MP também poderia ser acusado de prevaricar se não convocar o Poder Público a discriminar essas terras. Isso me parece que é uma necessidade do país inteiro e que em torno dessa questão se configura no Brasil uma coisa chamada patrimonialismo. Ou seja, são os interesses promíscuos das grandes oligarquias com o poder do Estado. É esse Estado que não fiscaliza, mas não fiscaliza quando é da sua conveniência.

Então, a discriminatória das terras é uma bandeira de interesse de toda a sociedade brasileira contra meia dúzia de latifundiários que monopolizam a terra. E essa é a razão de ser desse poder concentrado de terras, que ainda atrai o grande capital, que acabou consagrando, agora aliadíssimo ao capital internacional, uma estrutura de poder concentradora de terra e concentradora de poder.



Qual a importância de ampliação do debate de terra para território dentro da questão agrária no Brasil?
Primeiro quando se falava de terra, que era uma questão clássica no debate da reforma agrária, se estava pensando a terra enquanto meio de produção. O que percebemos hoje? A terra não é só um lugar de produção, ela é uma extensão da natureza, tem água, tem biodiversidade e tem povos ocupando. Então, a questão do território diz respeito a exatamente isso. Mais do que terra, há povos com culturas diferentes, que precisariam ser apoiadas na sua cultura para que elas pudessem ter uma vida digna a partir da sua própria matriz cultural e que pudéssemos, por exemplo, viajar pelo interior e usufruir dessa diversidade cultural. São populações que sempre tiveram uma relação com a natureza e não contra a natureza. O que elas precisam é de um Poder Público que reconheça o próprio Brasil na sua diversidade de culturas, na sua diversidade de territórios.

Então, o próprio movimento social acaba dando um salto de qualidade, pensando a qualidade de vida das pessoas, de não viver miseravelmente, e viver com dignidade com a diferença cultural que elas têm. E isso é um patrimônio do povo brasileiro e eu diria também da humanidade. Quando você tem um catingueiro com a sua cultura, por que ele tem que se miserável? Porque ele não tem política pública, porque tem um poder latifundiário cercando ele. Mas, ele tem sua cultura, uma relação riquíssima com a caatinga, por que isso não pode ser objeto de apoio do poder público para que ele possa viver com dignidade e poder desenvolver a sua cultura e produzir coisas que são fantásticas, o seu regime alimentar, a sua medicina? Essas comunidades têm muito a nos ensinar.

No Brasil, devemos nos orgulhar de termos essa diversidade de culturas, vivendo em seus territórios. O que precisamos é assegurar a garantia da territorialidade e fazer do Brasil um país rico nessa diversidade.

O modelo civilizatório que o capitalismo nos ofereceu não tem a menor chance de ser o futuro da humanidade. Esse modelo está, rigorosamente, no fim. E por quê? Porque é um modelo que pretendeu colonizar o mundo inteiro com seu modelo desenvolvimentista. Hoje já se sabe que isso não é possível e que não foi capaz nem de incorporar as pessoas sequer com salário digno.

Então, estamos diante de uma oportunidade histórica e necessária, que é barrar esse modelo de desenvolvimento que o capitalismo prometeu e não pode cumprir. O capitalismo é o atraso, por mais que ele se fantasie de moderno, ele não tem futuro. E essas populações que, paradoxalmente, apareciam como sendo o atraso são portadoras de conhecimento que se juntarmos com o conhecimento que a humanidade construiu mesmo sob o capitalismo, elas poderão viver em harmonia com a natureza e com a tecnologia.


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