“Cá estou”. É assim que se inicia a narrativa do português José Cardoso Pires, em seu livro O Delfim. O Autor-personagem resolve ir até o interior, em uma aldeia chamada Gafeira, e escrever a história dos Palma Bravo, uma família nobre do local. O narrador descobre, então, que Tomás Manuel, o último da aristocracia, está envolvido em uma história de crime, que permanece sem solução.
A apresentação de provas contraditórias, o recolhimento de opiniões dos moradores da Gafeira e as próprias lembranças do narrador são um pretexto. O principal tema deste livro, na verdade, é um processo de Revolução ocorrido na aldeia, quando os moradores montam uma cooperativa de controle da Lagoa, onde portugueses de diversas regiões do país costumavam caçar. Após a tomada do poder pelo povo, não seria mais preciso pedir a autorização de Tomás Manuel. O local deixa de ser propriedade privada, e torna-se coletivo.
O verdadeiro protagonista em O Delfim é, portanto, o próprio povo da região da Gafeira. E o romance se encerra com um grande arraial, refletindo a alegria dos moradores. É essa imagem que interessa ao Escritor: de um povo alegre, que sai às ruelas de sua aldeia comemorando a tomada de poder. A lagartixa, que no romance simboliza o tempo português, “sacudiu-se no seu sonho de pedra”. Ou seja: saiu de sua imobilidade.
Para trabalhar a relação entre literatura e revolução, a PUC-RJ realizou nos dias 5 e 6 de maio um Colóquio em comemoração aos 35 anos do 25 de Abril. E O Delfim foi exatamente tema de reflexão, pois a transformação social e o poder popular são o mote da narrativa do português José Cardoso Pires. O livro foi escrito em 1968, portanto seis anos antes da Revolução dos Cravos.
Como definiu a professora Izabel Margato, da PUC-Rio, a literatura tem vantagem sobre a vida, porque permite elaborar rascunhos. “E Cardoso Pires ensaiou a revolução socialista em um rascunho que seria passado a limpo seis anos depois”, disse referindo-se à Revolução dos Cravos, de Abril de 1974.
O escritor português, entretanto, veria seu sonho de verdadeiras transformações ruir com os rumos que Portugal tomou. Maria Luiza Scher, professora da UFJF, disse que Cardoso Pires, em obras posteriores, mostrou seu desencanto com a Revolução dos Cravos. Cardoso Pires teve uma importante atuação civil contra o Salazarismo, e usou sua arte como convocação à mudança e à superação da dominação.