Publicado em Afasta de Mim Este Calese Julho de 2008
Em
uma nublada manhã de sexta-feira, a equipe do Afasta
de mim este Cale-se encontra Ivo Lesbaupin, o ex frei Ivo,
companheiro de Frei Betto na luta contra a ditadura militar e também personagem
do filme Batismo de Sangue.
Na resistência à ditadura, Ivo ajudava militantes de esquerda a que buscassem
asilo no exterior. Com o amigo Oswaldo, mais tarde com frei Fernando, mantinha
constantes encontros estratégicos com Carlos Marighella, importante dirigente
da esquerda brasileira no período. Foi preso junto com Fernando pelo delegado
Fleury e torturado até que falasse como se comunicava com Marighella e o local
dos encontros – uma culpa que carregou por muitos anos, só superada após sete
anos de terapia.
Ivo Lebauspin é sociólogo e ficou conhecido
nacionalmente com o sucesso de Batismo de Sangue. Deixou a Ordem dos Dominicanos em 1977, quando então fez o
mestrado em Teologia na PUC- Rio. Foi entre os pilotis do campus da Gávea que
conheceu a mulher com quem tem filhos. O doutorado foi na França, onde morou
por quatro anos.
Ao voltar foi ser professor da Universidade Federal do Rio
de Janeiro na área de Educação, depois mudou para a Escola de Serviço Social,
onde ficou até se aposentar. Atualmente, assessora os movimentos sociais no
ISER e tem livros publicados nessa aérea. Também coordena um núcleo de pesquisa
na UFRJ sobre prefeituras democráticas populares.
Em entrevista para a equipe do Afasta de mim
este Cale-se, o sociólogo analisou a conjuntura em
que o país vive, falou sobre o governo Lula, o papel da Igreja hoje e na época
da ditadura, relembrou as situações que passou na prisão, falou sobre os
companheiros e sobre o filme.
BRASIL DE HOJE
Marighela dizia que os problemas do Brasil eram os
problemas das reformas de estrutura, o senhor concorda com isso? Acha que o
país ainda sofre disso?
Esse ainda é problema do país. Esse tema hoje está tão desgastado. Atualmente a
hegemonia neoliberal tomou pra si o tema das reformas. Todos os políticos
neoliberais concordam com a necessidade de reformas, mas as que eles querem
fazer na verdade são contra-reformas. Por exemplo: Reforma da Previdência é pra
reduzir a previdência, o caráter público vai passar para o privado. Reforma
universitária para tirar o caráter público e passar pro privado.
Então, só vale falar das reformas estruturais no sentido que era usado no
início dos anos 60, como a reforma agrária que é a única que os neoliberais
não falam, pois ainda mantém o sentido de distribuição de terra, dar condições
para os que não têm trabalhar essa terra, dar crédito para esses trabalhadores
plantarem e assim por diante. Evidentemente o Brasil precisa das reformas
agrária e urbana. Eu acho que a principal reforma junto com a reforma agrária
seria a tributária, mas não a proposta pelo presidente. Eu diria que o nosso
sistema tributário é o principal fator de geração de desigualdade porque retira
recursos dos mais pobres e transfere para os mais ricos.
Mas não apenas reformas: precisamos mudar a política econômica, que é voltada
para os interesses dos banqueiros, dos que investem em capital financeiro, dos
que vivem de renda. É necessário reverter toda essa política. Deveria se
investir no desenvolvimento do país para gerar mais indústria, comércio,
produção. Eu não chamaria isso de reforma, mas sim de uma mudança de modelo
econômico.
Na época, Marighela queria reordenar o país, ele queria uma revolução. Hoje a
gente acha que pode fazer isso sem o processo revolucionário, que prevê a luta
armada. Mas tem que redirecionar. Será com a pressão dos movimentos sociais, da
sociedade civil. A impressão é que as coisas estão melhorando, que as pessoas
estão tendo um pouco mais de emprego, de salário, mas não está sendo mudado o
fundamental, que é a estrutura social, geradora de cada vez mais desigualdade.
O que precisa é romper com o modelo neoliberal, mas é muito difícil pois a
mídia toda é favorável a esse sistema. Mesmo a mídia que é contra o Governo Lula
é a favor desse modelo. Ela não quer mexer nisso, ela quer aumentar isso.
Por que a mídia aprova esse modelo? É medo da democratização dos meios
de comunicação?
Na verdade nós vivemos numa ditadura na imprensa. Nós temos sete famílias que a
controlam. Gente da classe dominante, que expressa os interesses dessa classe.
Tem algumas exceções como Carta Capital, Caros Amigos, mas não são veículos de
massa, é uma pequena elite que lê, que tem acesso a esses meios, tem recursos
para pagar essas revistas.
Isso não é novidade: os meios de comunicação sempre foram de
um pequeno grupo liderado por uma classe dominante. A diferença é que no
período neoliberal todos entraram com o mesmo pensamento. Antes havia veículos
com jornalistas mais de esquerda, com opiniões contrárias aos editoriais. Hoje
só tem a defesa de um interesse, não há debates. Por exemplo: quando se discute
a reforma da previdência só se mostra a opinião do governo, não mostram outras
propostas. Essa dominação atual não é só um problema no Brasil,é internacional.
Na França de uns vinte anos atrás circulavam dois jornais de
centro-esquerda, e os jornais de direita. Hoje esses jornais tornaram-se de
centro-direita. Então não há mais debate. Tem alguns temas que ainda se
encontram discussões, mas quando tema é política econômica, o dominante é o
pensamento único neoliberal. O livro Os novos cães de guarda analisa a mídia
francesa e mostra como ela se retro-alimenta. Você tem a impressão de que há um
debate e na verdade é uma auto propaganda.
Qual avaliação e posição o senhor tem do governo Lula?
A eleição do Lula em 2002 foi um momento extremamente significativo na história
do país. Pela primeira vez, o Brasil conseguiu eleger um trabalhador, um líder
sindical. O povo conseguiu romper com os veículos de comunicação e eleger um
líder que tinha um programa de mudanças. Eu acreditei que ele estava sendo
eleito por seu programa de mudanças. Não deixei de ficar com uma pulga atrás da
orelha com tudo isso, pensando como a mídia deixou passar. Como a Globo deixou
o Lula ganhar? Aí tudo foi comprovado com o que ele acabou fazendo.
O governo pôs em prática o que vinha denunciado como uma política que devia ser
interrompida. Durante os oito anos do Fernando Henrique eu escrevi dois livros
para criticar e denunciar o que se fazia, o que estava errado. Nessas análises,
chegou a conclusão de que o problema era modelo adotado. E o governo Lula
manteve o modelo.
Sobre uma possível reeleição?
Até o momento, eu não acredito. O Lula não precisa disso, ele está muito bem. Pode
fazer um sucessor, seja Aécio Neves, Serra. Dá um descanso e em 2014 volta. São
hipóteses. O mais grave que estou vendo é que não há mais oposição a essa
polícia econômica.
Se o Brasil continuar seguindo essa política neoliberal, como o país
estará daqui 10 anos?
Eu espero que essa sua hipótese não se concretize. (risos). Porque a situação
só piora. O governo Lula é neoliberal e traz uma pitada do social. O Bolsa
Família atinge 11 milhões de famílias, só que é um programa assistencial, ele
não oferece trabalho. O governo está dando o sustento às pessoas, o que só
seria bom se fosse acompanhado por um programa de geração de empregos. Pois
pouco a pouco as pessoas iam saindo do Bolsa Família. Como isso não aconteceu,
tornou-se um grande programa eleitoral, que tira as pessoas da miséria, mas
mantém a situação.
Qualquer governo que entrar agora não vai parar com o programa, pois isso dá
voto. Se comparado ao que ganham os banqueiros, a quantia é ridícula. Em 2006,
foram mais ou menos R$8 milhões pro Bolsa Família e R$275 milhões para juros,
dívidas e tal. Se esse processo continuar, aumenta a desigualdade social, eu
acho que tem que manter esses programas emergenciais mas também colocar em
práticas os verdadeiros programas de mudanças e de geração de desenvolvimento.
É possível brigar com o Fundo Monetário Internacional, a Argentina conseguiu.
Aqui a opção foi estar bem com o FMI para essa cúpula receber mais deles, ter
mais vantagens. Eles estão recebendo mais, o povo não.
DITADURA Hoje, como o senhor avalia a participação e contribuição dos
dominicanos na luta contra a ditadura militar?
Naquela época a Ordem dos Dominicanos era pequena: éramos 80 em todo o país.
Mantínhamos uma posição mais crítica, mais de esquerda. Havia uma preocupação
acadêmica, reflexiva. Os dominicanos tinham um peso grande, era uma ordem
religiosa de esquerda. Hoje você encontra isso de forma mais difusa. O senhor não é mais um frade. O que o levou a sair do convento dos
dominicanos?
Porque na época não podia casar. Até hoje não pode (risos). Aí comecei a chegar
a conclusão que não ia dar. Tentei segurar, mas em 1977 eu saí. Fiquei 12 anos
na ordem.
O que senhor acha do celibato?
Eu não discuto essa questão com os celibatários que eu conheço, a não ser que o
assunto entre na conversa. Aí lanço mão de toda a argumentação contrária. Eu
acho que é uma vocação muito especial, eu acho desnecessário esse esforço. Você
tem que deixar de viver uma série de coisas que não têm nada de errado. A
maioria que escolheu ser padre não escolheu ser celibatário. Eu acho que a
grande maioria deveria estar casada, e muito bem. Leva a um sofrimento muito
ruim, você acaba se desequilibrando. Você pode fazer a mesma coisa só que
casado, como os pastores protestantes.
A possibilidade de isso acabar será uma batalha. Os que dirigem a Igreja são
muito conservadores. A Igreja tem defeitos lamentáveis. Por sua estrutura
pesada, ela tende a demolir carismas, pessoas excepcionais. Isso não impede de
eu ser da Igreja, eu tenho uma fé muito particular. O que eu acho besteira, eu
deixo de lado. Como foi sua aproximação com Marighella? Como se envolveu nessa luta?
Quem fez o primeiro contato com o Marighella foi o Betto e o Oswaldo. O que
ficou acordado foi que a gente ia ajudar pessoas procuradas a sair do país. Não
tinha regularidade nos contatos. Quem os fazia era o Oswaldo, que não dirigia.
A cada uns dois meses tinha um encontro, eu ficava rodando de carro. Quando o
Oswaldo foi para a França, o Fernando o substituiu e eu continuei fazendo esse
papel.
Como você ficou quando a polícia os pegou e vocês acabaram presenciando
a morte do Marighella?
Na época foi uma sensação terrível. Para nós, Marighella era um líder, foi uma
sensação de fim de mundo. Como se tudo tivesse acabado.
Como foi ser torturado?
Fomos presos por volta das três horas da tarde, e ficamos sendo torturados até
a noite, não sei que horas eles pararam. Foi mais ou menos que nem no filme. No
meu caso eu tive um limite, teve uma hora que eu não agüentei mais e acabei
falando. O pior foi que fomos torturados ao mesmo tempo. Só que em salas
diferentes. Isso facilitou, enormemente, a tarefa deles.
Como o senhor enfrentou os traumas das torturas?
Eu fiz sete anos de terapia. A tortura física foi um dia, a psicológica foi um
mês. Quando fomos para o Presídio Tiradentes, ficamos em celas coletivas, com
até 50 presos. Eu lembro que os dois primeiros meses que ficamos lá a gente não
conseguia ler direito. A partir do terceiro mês começamos fazer grupo de
estudo. Passava o dia inteiro jogando carta e conversando. Um contava pro outro
espontaneamente como tinha sido torturado. Esse processo de contar e recontar
foi uma espécie de catarse. Na minha interpretação é por isso que saímos
inteiros disso. Antes do Tiradentes, ainda lá no DOPS não deu para fazer isso,
pois a qualquer momento poderíamos ser torturados novamente. Eu soube de
pessoas que foram presas por engano e depois foram soltas imediatamente e
ficaram muito mal e não conseguiram se recuperar. A minha terapia de sete anos
foi mais para trabalhar a culpa de ter falado sobre o Marighella. Porque pra
nós era uma questão de honra não falar.
Como analisa o suicídio do frei Tito?
Na primeira vez que ele foi torturado no DOPS não foi tão terrível. Mas a que
ele passou na Operação Bandeirantes com três equipes diferentes acabou com ele,
atingiu lá dentro. Quando ele morreu em 1974 eu não conhecia outro caso que
tivesse morrido depois de ser libertado. Pra mim todo mundo poderia se
recuperar se fizesse o tratamento. Dois anos depois da morte dele, na Alemanha,
uma brasileira se suicidou por causa da tortura. Quer dizer que existem
situações que não conseguem se reverter. Ou não encontrou o tratamento adequado
a tempo. A terapia me ajudou a aceitar que eu tenho limitações, que não sou super-homem.
Que você pode não agüentar a tortura... Aceitar isso é complicado.
OS AMIGOS E O FILME
O que o senhor achou do filme Batismo de Sangue? A
história foi bem contada ou houve conturbações?
Basicamente eu acho que sim. Em relação à morte do Marighella foi muito bem. É
que tentar colocar em 1h30 um livro é complicado. Tem algumas coisas que
modificaram. Numa cena tem uma celebração no DOPS que na verdade foram feitas
no presídio Tiradentes. Um ou outro elemento eles acabaram juntando. Numa das
cenas mostra o Tito encontrando o Marighella. Pelo que eu lembro, os dois não
se encontraram nenhuma vez. Tem algumas coisas que foram sintetizadas.
Falsidade não tem não. O diretor passou pra nós quatro o roteiro pra ler. O personagem que o representou fez um bom trabalho?
Na verdade nós quatro fizemos um workshop com os atores e eles ficaram fazendo
perguntas durante três horas. Foi o único contato que ele teve comigo. O
pessoal que me conhece há mais tempo disse que ele pegou meus trejeitos. Então
esse ator era muito bom. O pessoal ficou muito impressionado como ele me
representou.
Você acha que o filme é uma homenagem ao frei Tito?
Com certeza. Continua a amizade com o frei Betto e o frei Fernando?
A gente continua muito ligado. O Oswaldo veio em maio aqui pra minha festa de
aniversário. A história dele é bem diferente. O Oswaldo saiu da ordem, casou
viveu casado uns 10 anos, acabou se separando, não teve filhos. Ele estava há
uns 20 anos na França, onde trabalhou numa livraria de esquerda e depois no
Ministério da Cultura. E em uma das vezes que o Betto foi visitá-lo ele
perguntou se poderia voltar para a ordem. Aí o conselho se reuniu e aceitaram a
volta dele.