Na
última quarta-feira (8), o escritório regional da Agência Nacional de
Telecomunicação (Anatel) em São Paulo, com o suporte logístico e
político da Prefeitura Municipal, destruiu cerca de oito toneladas de
equipamentos apreendidos em operações de fiscalização de emissoras de
rádio não autorizadas. Ao todo, 17 mil discos e CDs, 750 transmissores,
70 antenas e dezenas de computadores e aparelhos de som se
transformaram em sucata no hangar da Vasp, no aeroporto de Congonhas.
Segundo
a Anatel, todos os equipamentos encontravam-se sem homologação pelas
autoridades responsáveis e provocavam interferências no controle de
tráfego aéreo e nas transmissões de emissoras comerciais. Eles teriam
sido apreendidos em cinco anos de operações da Agência no estado e
correspondiam a dois mil processos concluídos pela Justiça, que teria
autorizado sua destruição.
”Este é um ato
simbólico do combate à ilegalidade em São Paulo. Aqui tem lei e ela
será respeitada”, disse o prefeito Gilberto Kassab (DEM), que fez
questão de subir no rolo-compressor e posar para os flashes da grande
imprensa comercial, que prestigiou em massa o acontecimento. “É
fundamental que o material seja destruído, para mostrar que não teremos
tolerância com quem faz isso. Nosso objetivo é fechar todas as rádios
piratas e ilegais, que trazem riscos à vida das pessoas. Se é
clandestina, tem que ser eliminada”, sentenciou Kassab.
Além
do prefeito e dos veículos comerciais tradicionais, o ato de destruição
contou com a presença de policiais federais, militares, civis, de
diversos secretários do governo municipal e da cúpula do escritório
regional da Anatel em São Paulo. Para Everaldo Gomes Ferreira, gerente
regional da agência, “uma rádio clandestina é um caminhão na contramão”
do espectro.
Estas emissoras, acrescentou, aparentam ter um
“fascínio pela ilegalidade”. “Temos que respeitar a lei e a lei não se
respeita. Todas essas rádios nunca buscaram a legalização. Até onde sei
– porque sou da Anatel e não do Ministério das Comunicações –, o
Ministério faz exigências, tenta localizar os responsáveis, manda
correspondência para mandar documentação e essas pessoas não são
localizadas”, alegou.
Um relatório da subcomissão criada para
avaliar os processos de outorga de concessões de rádio e TV da Comissão
de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara
dos Deputados revelou, no entanto, que os processos para obtenção da
autorização de operação para uma rádio comunitária podem levar até 3,6
anos. O governo federal já reconheceu o problema ao ter instalado dois
grupos de trabalho, um em 2003 e outro em 2005, para tentar resolver o
acúmulo de processos. Apesar de ambos terem produzido recomendações e
relatórios finais, as medidas sugeridas nunca foram implantadas pelo
Ministério das Comunicações e por outros órgãos do Executivo Federal.
Ilegalidade na destruição
A
Anatel justificou a destruição dos equipamentos dizendo se tratarem de
provas materiais de crimes. “É igual a uma arma”, disse Everaldo
Ferreira. Garantiu que a agência tem como uma de suas prerrogativas a
destruição de equipamentos e alegou que não faria sentido doar as 8
toneladas que ali estavam porque “hoje o custo de aquisição de
materiais como estes é cada vez mais barato, sem contar que são de
origem duvidosa”.
No entanto, segundo o juiz federal aposentado
Paulo Fernando Silveira, consultado pelo Observatório do Direito à
Comunicação, a absoluta maioria dos equipamentos apresentados na
operação da Anatel e da Prefeitura de São Paulo não poderia ser
inutilizada. Ao contrário da apreensão de drogas, por exemplo, os
transmissores, antenas, computadores, mesas de som e CDs não são
produtos proibidos pela lei, não sendo, portanto, passíveis de
destruição. Ao serem adquiridos no mercado interno de forma lícita, são
propriedade permanente daqueles que o compraram, mesmo que sejam
considerados pela Justiça provas materiais de um crime.
“Mesmo
um revólver, se estiver registrado no nome de alguém, deve ser
devolvido pela Justiça após o término de um processo, independentemente
se a pessoa foi condenada ou não, porque o bem não é ilícito. Se o
processo terminou e ninguém requereu os bens, a União não se torna
proprietária automaticamente. Teria que devolvê-los. Portanto, se a
Anatel destruiu esses equipamentos, o fez ilegalmente e terá que
indenizar essas pessoas. Mesmo se havia ordem judicial para isso, ela
era abusiva e ilegal. Todos os proprietários devem entrar com ação de
perdas e danos, porque o juiz mandou destruir algo que é seu, de sua
propriedade”, afirma Silveira.
A Associação Brasileira de
Radiodifusão Comunitária (Abraço) questiona a existência de decisão
judicial para a destruição dos equipamentos. “Se há um processo
judicial, quem provocou a Justiça a se pronunciar sobre isso? Talvez
nem processo exista”, analisa Jerry Oliveira, diretor da associação em
Campinas.
Para Paulo Silveira, o
direito à comunicação está garantido na Constituição Federal como um
direito individual e coletivo, e o Estado não pode, portanto, aboli-lo.
“Sua função é apenas de gestor do espectro; é uma função
administrativa. O dono do espectro é o povo, de modo que o exercício de
um direito individual não pode ser considerado crime”, acredita o juiz
federal. “A lei que criminaliza a radiodifusão não autorizada é que é
inconstitucional – e não a conduta que é criminosa”, completa.
Descriminalização na pauta do Congresso Neste
momento, estão em tramitação no Congresso Nacional dois projetos de lei
que descriminalizam o exercício não autorizado da radiodifusão
comunitária. Ou seja, em vez de abordar a prática a partir de uma
perspectiva penal, propõem fazê-lo mediante infrações administrativas.
“Se
aprovarmos a lei da descriminalização e a anistia dos processados,
esses atos judiciais se tornarão sem efeito. Como é então que as rádios
vão ter acesso a esses equipamentos, que foram destruídos?”, questiona
José Sóter, coordenador-geral da Abraço. “No mínimo, foi uma
prevaricação da Anatel, que deveria ter ouvido todos os lados da
questão antes de destruir os equipamentos”, afirma.
Ação orquestrada Por
pressão dos grandes radiodifusores, o projeto de lei que anistia as
rádios comunitárias (que já havia sido aprovado na CCTCI e estava sob
avaliação da Comissão de Constituição e Justiça) foi remetido pelo
deputado Raul Julgmann (PPS-PE) à Comissão de Combate ao Crime
Organizado. A manobra se coaduna com a operação da Anatel realizada
esta semana, em São Paulo, que tratou a destruição dos equipamentos
como uma ação de combate ao crime.
”Como eles mesmo disseram,
foi um ato simbólico, orquestrado pelos setores que são contrários à
descriminalização das emissoras comunitárias, para reforçar a idéia dos
radiodifusores comerciais de que rádio comunitária derruba avião. Por
outro lado, vivemos o processo de convocação da Conferência Nacional de
Comunicação. Ao sinalizar que está defendendo o interesse dos meios
comerciais, a Anatel atende à necessidade da grande mídia de ganhar a
opinião pública para as teses que ela defende, e que serão tema da
Conferência. Ou seja, uma atividade midiática e pirotécnica como essa
responde a dois objetivos dos meios comerciais”, avalia Sóter.
Na
tarde dessa quinta-feira (9), o Fórum Nacional pela Democratização da
Comunicação divulgou nota pública condenando o vandalismo da Anatel em
relação a um patrimônio coletivo e de inestimável valor social para as
comunidades. Para o FNDC, a destruição de equipamentos de rádios
comunitárias constitui um ato de prepotência, representa uma atitude
deliberada contra a democratização da comunicação e deixas às claras os
temores de setores empresariais frente à Conferência Nacional de
Comunicação.
“A destruição dos equipamentos
também representa uma cabal demonstração de ignorância sobre o papel
fundamental da comunicação para a consolidação da democracia, o
fortalecimento da sua pluralidade e dos laços culturais da nação
brasileira”, diz a nota, que conclui cobrando da Anatel explicações ao
povo brasileiro. Do contrário, entidades que lutam pela democratização
da comunicação poderão fazê-lo através de uma ação judicial, que já
está sendo avaliada nacionalmente.
* Colaborou Lucas Krauss |