Duas
grandes surpresas – uma no início, outra no final – marcaram a primeira
audiência pública para a reformulação das diretrizes curriculares de
Jornalismo, na sexta-feira (20/3), no Palácio Capanema, sede da
representação do MEC no Rio de Janeiro. A primeira foi notada por todos
e dizia respeito ao tema central da reunião. A segunda, aparentemente,
passou despercebida da maioria, mas é talvez mais relevante, pois
revela uma concepção constrangedoramente simplória do sentido da
expansão dos cursos superiores no Brasil.
Ao apresentar os
objetivos da audiência, o representante do Ministério da Educação,
Paulo Roberto Wollinger, diretor de Regulação e Supervisão da Educação
Superior do MEC, provocou um burburinho na platéia ao afirmar que o
pomo da discórdia da comunidade acadêmica do setor não estava em pauta:
"Em momento algum pensamos em separar o Jornalismo da Comunicação
Social". Disse isso a título de esclarecimento, mas só poderia causar
confusão, uma vez que a iniciativa de revisão das diretrizes provocou o
recrudescimento desse debate e levou integrantes da própria comissão de
especialistas a se manifestar a favor da autonomia para Jornalismo. No
entanto, talvez a frase tivesse outro sentido, porque logo em seguida
Wollinger diria algo ainda mais surpreendente: "Não existe curso de
Comunicação Social; o que existe é essa grande área da Comunicação, da
qual o jornalismo é uma das especialidades".
Era uma afirmação
contra toda evidência, a começar pelo nome do curso que vem gravado ano
após ano nos diplomas de quem se forma na habilitação em Jornalismo. Porém, se interpretada de outra forma, a declaração inicial faria sentido: afinal, como o que existe de fato
são jornalistas, publicitários, relações públicas – e não esse
"comunicador" genérico –, seria ocioso discutir se o "curso de
Jornalismo" deve ser autônomo, porque esta já seria sua condição
inevitável. Assim, não se destacaria da "grande área" da Comunicação –
porque, afinal, é Comunicação –, mas obedeceria a diretrizes
curriculares próprias, sem qualquer relação com as das outras
especialidades do setor. Na prática, portanto, seria já um curso
autônomo.
O que, naturalmente, não resolve nada, porque o
problema original persiste: quais serão as bases para uma adequada
formação de jornalistas? E aqui retornamos à velha questão que divide
duas correntes substancialmente distintas, cristalizadas na oposição
entre "academicistas" e "tecnicistas", "comunicólogos" e "jornalistas",
numa simplificação que jamais ajudou qualquer debate. E que não chegou
a ser enfrentada na primeira audiência pública para discutir as
diretrizes curriculares.
Polêmica antiga
Os cursos
de Comunicação Social são contestados desde que foram criados. Seria
excessivo tentar resumir aqui essa história, mesmo porque muita coisa
mudou nas duas últimas décadas: basta dizer que até meados dos anos
1980 praticamente não havia jornalistas ou professores com essa
experiência profissional dando aula de jornalismo, as escolas não eram
dotadas de um mínimo de estrutura laboratorial e a pesquisa específica
praticamente inexistia. Tudo isso contribuía para que os cursos se
fechassem em torno de teorizações distanciadas da realidade que o
futuro jornalista deveria enfrentar e fossem, portanto, desdenhados
pelos profissionais formados "na prática" e pelos próprios estudantes.
Hoje
ainda estamos longe do ideal – e mais ainda de um consenso sobre o que
deva ser esse ideal –, mas a situação é radicalmente distinta. Apesar
disso, frequentemente repetem-se os argumentos daqueles velhos tempos.
Foi o que ocorreu há 10 anos, quando se iniciou o processo de avaliação
das condições de oferta da habilitação em Jornalismo dos cursos de
Comunicação Social. A avaliação exclusiva desta habilitação era uma
tentativa de forçar a criação de um curso específico, desligado da
"geléia geral" da Comunicação.
Este Observatório
refletiu e estimulou a intensa polêmica durante meses seguidos. Então,
como agora, prevalecia o pragmatismo entre os partidários do curso
autônomo. Na época, um dos argumentos mais exuberantes nesse sentido
valorizava a formação de profissionais comparados à excelência de um
i-Mac: era "só ligar na tomada e começar a trabalhar". Hoje, talvez em
decorrência da preocupação com a inserção mais imediata do estudante
num mercado de trabalho ao mesmo tempo tão diversificado e precário,
defende-se um perfil de prestador de serviços. Num caso e noutro, o que
prevalece é a concepção de universidade operacional.
O consenso sobre o óbvio
Na
reunião com a comissão de especialistas, passou-se ao largo dessa
questão. Nós, da Universidade Federal Fluminense, apresentamos um
documento sintético, de quatro páginas, defendendo o jornalismo como
"um `campo de saber´ do abrangente campo de conhecimento da
Comunicação", que exige a articulação entre uma sólida base humanística
e uma oferta ampliada de opções para a formação profissional
específica, de modo que o aluno possa "direcionar seus estudos para as
áreas de atuação com as quais melhor se identifica, ampliando as
alternativas de conhecimento e de prática profissional". Mas a ênfase é
na formação ética do jornalista e na conscientização sobre as
dificuldades e as responsabilidades envolvidas no desempenho de seu
papel de mediador.
Uma decorrência lógica dessa concepção é o
entendimento de que a universidade não está aí para formar prestadores
de serviço, mas sujeitos dotados de autonomia intelectual, capazes de
exercer competentemente a profissão que escolheram. Mas essa questão
central não foi discutida e as discordâncias praticamente não
apareceram, a ponto de uma professora enaltecer o consenso em torno da
melhoria da qualidade dos cursos.
Além de óbvio, tratava-se de
um consenso prévio. Evidentemente, ninguém pode ser contra a qualidade:
o problema é saber o que cada um entende por isso. Porém um ponto
essencial foi levantado pelo presidente do Fórum Nacional de
Professores do Jornalismo, Edson Spenthof: a necessidade de se
responder à pergunta sobre "o que é jornalismo" para uma definição mais
clara das novas diretrizes. Imagine-se o grau de controvérsia que esse
debate há de gerar, especialmente nesses tempos de enaltecimento da
figura do "jornalista-cidadão".
Spenthof também fez uma
observação conceitual relevante sobre as recorrentes demandas pela
formação "multimídia", normalmente associada à simultaneidade: não era
disso que se tratava, mas sim do desenvolvimento de habilidades
diversificadas. Desempenhar várias funções ao mesmo tempo representaria
a tentativa, previamente frustrada, de assoviar e chupar cana, uma
impossibilidade física que – acrescento eu – resulta na precariedade
sistematicamente verificada no noticiário cotidiano.
A universidade redentora
As
divergências certamente aparecerão nas propostas a serem enviadas
diretamente à comissão até o fim do mês. Ali, no Salão Portinari do
Palácio Capanema, ícone da arquitetura modernista brasileira no Centro
do Rio, preservou-se o ambiente ameno. Mas, já perto do encerramento da
audiência, um comentário mais geral do representante da Executiva
Nacional dos Estudantes em Comunicação, Felipe Melo, sobre as
diferenças entre cursos privados e públicos e sobre a política de
expansão do ensino superior, provocou a segunda grande surpresa do dia.
Ao responder à crítica, o representante do MEC defendeu enfaticamente a
criação de mais cursos, "se possível um em cada esquina", para sanar o
déficit no contingente de brasileiros com formação universitária.
Se
ficasse por aí, poderíamos apenas condenar o estímulo à proliferação de
franquias no melhor estilo McDonald´s e o empenho na fabricação de
números, que nos faz recordar o saudoso ministro Paulo Renato Souza.
Mas Paulo Wollinger completou, com a fé dos justos: "Cada curso que se
abre é um ponto de drogas que se fecha".
Pena que pouca gente
notou, ou não percebeu esse detalhe – justamente o detalhe, que é onde
mora o diabo. Pois, salvo melhor juízo, essa justificativa para a
abertura de novos cursos superiores é inédita. Mais que isso: é
simplesmente inacreditável.