O
capitalismo? "É compreensível que as pessoas não acreditem mais
nele", confessa Tony Blair em pessoa (1). Quando se deixa de acreditar no inacreditável,
uma crise de legitimidade, ideológica e moral se soma à crise social, e acaba
por estremecer a ordem política. A crise atual não é uma crise a mais,
equiparável a dos mercados asiáticos ou a da bolha da Internet.
Uma
crise de fé
Trata-se, na
realidade, de uma crise histórica - econômica, social, ecológica - da lei do
valor, uma crise de medição e de excesso. A medição de tudo através do tempo de
trabalho abstrato passou a ser - como anunciava Marx nos Manuscritos de 1857 -
uma forma "miserável" de medir as relações sociais. "As crises
econômica e planetária têm um ponto em comum", constata Nicholas Stern,
autor em 2008 de um informe sobre a economia das mudanças climáticas.
"Ambas são conseqüência de um sistema que não considera os riscos que seu
funcionamento gera, que não leva em conta o fato de que pode conduzir a uma
destruição superior ao benefício imediato que procura, e que subestima a
interdependência entre os atores" (2). A lógica da corrida atrás do lucro,
pelo "benefício imediato" é, com efeito, uma lógica a curto prazo, E
a "concorrência não falsificada", por sua parte, é cega à
"interdependência" sistemática. Um novo Brenton Woods? Um sistema de
governo mundial?
O problema é que a União Européia nem sequer tem sido capaz de
criar uma agência de controle dos mercados financeiros em escala continental,
ou de promover uma definição comum de paraísos fiscais! Desde outubro de 2008,
Laurence Parisot tem se encarregado de deixar claro que o estado deve
desempenhar seu papel nos socorro das finanças, mas que deve retirar-se, quando
os negócios recuperem seu curso lucrativo. Dito de maneira mais direta: que
deve socializar as perdas para logo reprivatizar os lucros. Por trás de ter
admitido que o Estado é o único capaz, de forma imediata, de "salvar a
economia e os bancos", Jean-Marie Messier, ressuscitado do purgatório, não
se esquece de explicar que "o guarda-chuva deverá fechar uma vez que a
tempestade tenha passado". O Estado não deveria, assim, ser mais do que
"um passageiro em meio à chuva" (3).
O plano de
recuperação governamental descarrega o custo sobre os trabalhadores e os
contribuintes. Por detrás do congresso de Reims, Martine Aubry pretendia
descobrir que "torna-se inoperante atacar aos que se utilizaram do
sistema, sem atacar o próprio sistema" (4). Contudo, o Partido Socialista
se contenta em oferecer um contra-plano "equilibrado", de medidas
supostamente sociais, mas em nenhum momento radicais, no sentido de que
suponham uma nova redistribuição de riquezas em benefício do trabalho. Nada se
falou sobre a nacionalização do sistema bancário e a criação de um serviço
público para tratar do crédito, nada sobre uma reforma fiscal radical, nada
sobre a necessidade de reorientar a construção européia. "Atacar o próprio
sistema" seria atacar o poder absoluto do mercado, a propriedade dos
grandes meios de produção e troca, a concorrência de todos contra todos. Até o
liberal Nicolas Baverez define a banca como um "bem público da
mundialização": "pelas suas características, tem a natureza de um bem
público" (5). Seria de esperar, na verdade, que dada esta
"natureza", este bem público fosse submetido a gestão pública sob o
controle público. Para Baverez, pelo contrário, o Estado deveria assegurar aos
bancos uma "imunidade ilimitada" por suas perdas, e assumir os riscos
ligados a seus lucros.
Atacar o coração
do sistema suporia adotar-se uma blindagem social que proteja os trabalhadores
das conseqüências da crise. Para isso, dever-se-ia romper os grilhões dos
critérios de Maastricht e do Pacto da Estabilidade, restabelecer os controles
políticos sobre o Banco Central europeu, abolir o Tratado de Lisboa, reorientar
de maneira radical a construção européia, começando pela harmonização social e
fiscal, e iniciar um processo constituinte de verdade. No mínimo, exigir a
revogação do artigo 56 do Tratado de Lisboa que proíbe qualquer restrição aos
movimentos do capital financeiro, assim como da "liberdade de
estabelecimento", reconhecida no artigo 48, uma liberdade que permite ao
capital mudar de lugar, para aonde as condições lhe sejam mais favoráveis, e às
instituições financeiras encontrar asilo onde lhes agrade.
Uma
crise duradoura
Porque se trata de
uma crise sistêmica,que anuncia o fim de um modo de acumulação, as medidas de
recuperação conjuntural terão um efeito limitado. Uma saída para a crise que
conduza à emergência de uma nova ordem produtiva e de um novo regime de
acumulação, não depende somente da economia. Exige uma nova correlação de
forças, novas relações geopolíticas, novos dispositivos institucionais e
políticos.
Se a crise de 1929
foi a da "emergência estadunidense", que emergência prefigura a crise
atual? A chinesa? A de uma organização multipolar de espaços continentais? A de
um sistema de governo mundial?
Em um tempo em que
se invocam a necessidade de uma nova ordem monetária internacional e respostas
globais, o próprio Giscard d’Estaing reconhece que "a gestão econômica da
crise se tornou, na Europa, mais nacional durante a crise do que antes do seu
início", e que "os instrumentos de intervenção são essencialmente
nacionais" (6). A crise agudiza, na verdade, as diferenças nacionais e
libera tendências centrífugas. Em nome de uma "correspondência necessária
entre os espaços econômicos e sociais", Emmanuel Todd se arvora em
paladino de um "protecionismo europeu" (7) que crie "as
condições para a recuperação dos salários" e uma oferta que gere sua
própria demanda. A questão não é doutrinária ou de princípios. Proteger? Sim,
mas quem, contra quem e como? Se a Europa começasse em adotar critérios sociais
de convergência em matéria de emprego, renda, proteção social, direito do
trabalho e harmonização fiscal, poderia, legitimamente, adotar medidas de
proteção, não as dos interesses egoístas de seus empresários e financistas, mas
a dos direitos e conquistas sociais. Poderia fazê-lo de maneira seletiva e
pontual, adotando como contrapartida acordos de desenvolvimento solidário com
os países do Sul em questões migratórias, de cooperação técnica, de comércio
equitativo, sem ceder a um protecionismo de ricos, cujo efeito principal fosse
disseminar os estragos da crise entre os países mais pobres.
Imaginar que uma
medida de proteção alfandegária implicaria de forma mecânica em melhora nas
condições sociais européias, como se pudesse ser tecnicamente neutra no
contexto de uma luta de classes exacerbada pela crise, é uma enorme
ingenuidade. Os trabalhadores acabariam afetados pelas travas burocráticas e
fronteiriças, sem obter as respectivas vantagens sociais. Um protecionismo
desta índole não resistiria muito tempo em razão de sua impopularidade, ou não
tardaria em derivar para uma "preferência nacional" (ou européia) de
corte chauvinista.
Refundar
o capitalismo ou combatê-lo
Todos os
governantes, de ontem e de hoje, de direita e de esquerda, acabaram por
denunciar a loucura sistêmica dos mercados. Contudo, sua desregulação não tem
sido fruto da famosa mão invisível, mas de decisões políticas e de medidas
legislativas concretas. Foi a partir de 1985, quando era ministro da Economia o
socialista Pierre Bérégovoy, que se concebeu a grande desregulamentação dos
mercados financeiros e da bolsa de valores na França. Foi um governo socialista
que, em 1989, liberalizou os movimentos do capital, antecipando-se a uma
decisão européia. Foi o governo de Jospin que, ao privatizar mais do que os
governos de Balladur e Juppé juntos, assentou as bases para que o capitalismo
francês pudesse acolher fundos de investimentos especulativos. Foi um ministro
das finanças socialista, Dominique Strauss-Khan, que propôs uma forte "desfiscalização"
das célebres stock-options, e foi outro ministro socialista, Laurent Fabius,
quem a pôs em prática.
Foi um Conselho Europeu com maioria social-democrata, que
decidiu em 2002, em Barcelona, liberalizar o mercado de energia e o conjunto de
serviços públicos, aumentar em 5 anos a idade de aposentadoria e sustentar os
fundos de pensão. Foi a maioria do Partido Socialista que aprovou a
sacralização da concorrência gravada no projeto do Tratado constitucional
europeu de 2005. Foi seu voto, uma vez mais, que permitiu a adoção do Tratado
de Lisboa, confirmando assim a lógica liberal da construção européia.
Para os salvadores
do Titanic capitalista, a tarefa se anuncia dura. Um novo New Deal? Um retorno
ao Estado social? Seria esquecer muito rápido que a desregulação liberal não
foi um capricho doutrinário de Thatcher ou de Reagan. Foi a resposta à baixa
das taxas de lucros, provocada pelas conquistas sociais do pós-guerra. Depois
de 1973, "a incapacidade das políticas keynesianas para recuperar a atividade
produtiva deixa o campo aberto a uma surpreendente contra-revolução
conservadora", recorda Robert Boyer (8). Voltar ao ponto de partida seria
reencontrar-se com as mesmas contradições. Como comenta ironicamente Jean-Marie
Harribey: "regular sem transformar não é regular".
Por trás da crise
de 1929, para redistribuir as cartas da riqueza e do poder e para anunciar uma
nova onda expansiva, fez-se necessário nada menos do que uma guerra mundial. A
colocação em marcha de um novo modelo de acumulação, e o, eventual, impulso de
uma nova grande onda de crescimento, envolverão o surgimento de novas
hierarquias planetárias de dominação, uma re-acomodação de nações e
continentes, novas condições para a valorização do capital, uma transição da
matriz energética. Tal mudança não pode ser resolvida através da amabilidade
diplomática, nos tapetes verdes das chancelarias, mas no campo de batalha,
através de lutas sociais. A crise, como bem escreveu Marx, supõe "o
estabelecimento por força da unidade entre momentos (produção e consumo)
impulsionados de forma autônoma".
Na
realidade, não é mais do que um começo
"A crise
financeira - insistia Nicolás Sarkozy em seu discurso de Toulon - não é a crise
do capitalismo. É a crise de um sistema afastado dos valores fundamentais do
capitalismo, dos que - de certo modo - o traíram. Quero deixar claro aos
franceses: o anticapitalismo não oferece nenhuma solução para a crise
atual". A mensagem é clara: o inimigo não é o capitalismo, mas o
anticapitalismo.
O presidente
retornou à questão na sua intervenção no colóquio sobre a refundação do
capitalismo, organizado, por sua iniciativa, em 8 de janeiro de 2009, pela
Secretaria de Estado: "A crise do capitalismo financeiro não supõe a do
capitalismo como tal. Não é um chamamento a sua destruição, o que seria uma
catástrofe, mas a sua moralização". Suas palavras receberam um vigoroso
respaldo de Michel Rocard: "Devemos começar por aí: nosso propósito é
salvar o capitalismo". Estas declarações de guerra social traçam uma linha
forte entre dois campos. É preciso eleger: ou discutir com os proprietários
como refundar, reinventar, moralizar o capitalismo, ou lutar junto com os
explorados e despossuídos para derrotá-lo.
Ninguém poderia
predizer como serão as revoluções futuras. O que temos, unicamente, é um fio
condutor. Trata-se de duas lógicas de classe que se enfrentam. A do lucro a
qualquer preço, do cálculo egoísta, da propriedade privada, da desigualdade, da
concorrência de todos contra todos, e a do serviço público, dos bens comuns da
humanidade, da apropriação social, da igualdade e da solidariedade.
Notas:
(1) Le Journal du
Dimanche, 14 de dezembro de 2008.
(2) Le Monde, 15 de dezembro de 2008.
(3) La Tribune,
15 de janeiro de 2009.
(4) Journal du Dimanche, 5 de outubro de 2008.
(5) Le Monde, 26 de novembro de 2008.
(6) Le Monde, 13 de janeiro de 2008.
(7) Emmanuel Todd, Après la démocratie, París, Gallimard, 2008.
(8) Libération, 29 de dezembro de 2008.
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Professor de filosofia na Universidade de Paris VIII