Entrevistas Com Gilney Viana, anistiado político: A Folha deveria ver as fotos dos assassinados sob tortura
Por Raquel Junia
“A
Folha deveria ver as fotos dos assassinados sob tortura” afirma Gilney
Viana
Militante
do Partido Comunista Brasileiro e da Ação Libertadora Nacional (ALN), Gilney
Amorim Viana foi expulso do curso de medicina da UFMG pelo decreto 477. Ele foi
preso em março de 1970 e permaneceu encarcerado por quase dez anos, respondendo
a dez processos. Só em 1985 terminou sua condenação. Gilney foi um dos 21
anistiados políticos no último dia 27 de fevereiro, no Rio de Janeiro. “Pego as fotos de centenas de companheiros que foram mortos sob
tortura, e vou jogar lá no editor para ele saber se a dita foi branda ou foi
dura”, disse, se referindo a recente editorial da Folha de S. Paulo que
chamou a ditadura brasileira de “ditabranda”.
Boletim
NPC - O que representa para o senhor essa anistia política que recebeu hoje?
Eu era estudante de medicina, fui atingido pelo
477, impedido de estudar durante três anos e isso me valeu mais quinze anos
porque eu caí na clandestinidade. Depois peguei dez anos de prisão. Isso ocorreu
em 69, mas só voltei a estudar em 80, quando a escola de medicina da
Universidade Federal de Minas Gerais me restituiu o direito à matrícula. Este
julgamento por parte da Comissão de Anistia encerra um ciclo da minha vida, que
foi injusto e me restitui meus direitos plenos de cidadão, após ter respondido
a dez processos na justiça militar.
Tudo
aquilo que passamos está incorporado em nosso modo de ser, de ver as
coisas e nós não queremos esquecer. Isso faz de mim um homem renovado também,
que passou por tudo isso e tem capacidade de amar as pessoas, de não cultivar o
ódio, não ser revanchista e, ao mesmo tempo, ter perspectivas de que o mundo
pode mudar. Eu estou na mesma linha que estava na minha juventude. Eu acredito
que nós podemos mudar o mundo, então, eu estou bem.
Boletim
NPC - Como o senhor avalia a política do atual governo federal com relação aos
crimes da ditadura?
Em
relação à anistia, avançou. No reconhecimento dos mortos e desaparecidos, que é
uma outra comissão, também. Dando mais publicidade aos dados, politizando o
debate, mostrando que é um dever do Estado reconhecer o erro em relação aos que
foram atingidos, perseguidos, torturados e os mortos sob tortura. E avançou
também no debate em relação ao alcance da anistia. Estou entre aqueles que
acham que foi muito importante a Comissão de Anistia, a Secretaria de Direitos
Humanos, o Ministério da Justiça levantar a tese de que a Lei da Anistia não
abrange os crimes contra a humanidade, como torturas, seqüestro, assassinato de
prisioneiros sob a guarda do Estado. Isso quer dizer que os torturadores não
podem ser e não foram anistiados. Acho isso muito importante.
Não
houve avanço é na abertura dos arquivos das forças armadas e na descoberta dos
restos mortais de muitas companheiras e companheiros que foram assassinados
sabidamente pelos órgãos do Estado. Ainda há uma resistência muito forte em
alguns setores das forças armadas, que impede o governo de dar esse passo. Por
outro lado também o próprio governo e o presidente Lula tem tido uma atitude
muito tímida em relação a esses setores que, infelizmente, ainda se arvoram em
falar em nome das forças armadas e impedem que esse entulho autoritário, essa
seqüela da ditadura militar seja superada para que nós possamos viver em paz,
para que não tenhamos um Coronel Brilhante Ulstra da vida fazendo palestras,
defendendo a tortura ou fugindo das suas responsabilidades. Ou um capitão Gomes
Carneiro, que chefiou a tortura contra mim, almoçando nos restaurantes de
Brasília como se fosse um herói da pátria.
Boletim
NPC - O senhor foi preso em Brasília?
Não,
fui preso no Rio de Janeiro. Fui torturado aqui no quartel do 1º Batalhão da
Polícia do Exército, na Tijuca. Esses cidadãos tem que ser julgados,
processados, eventualmente condenados se a justiça assim entender. E eu
acredito que assim entenderá porque as provas são robustas contra eles e que
paguem por seus crimes. E não me venha com essa conversa fiada de que nós é que
éramos terroristas para desqualificar nossa luta de resistência armada. Nós fomos
presos, torturados, condenados, cumprimos nossa pena, fomos perseguidos até o
último dia da ditadura militar. Agora, quero o seguinte. Se não posso processar
o torturador, quero que o Estado reconheça os danos que me causou, danos morais
principalmente, políticos, familiares e, eventualmente, os danos financeiros.
Todos esses danos jamais serão pagos porque são muitos anos de cadeia e
sofrimento. E isso não tem preço.
Boletim
NPC - Quando o jornal Folha de S.Paulo chama a ditadura instaurada no
Brasil com o golpe de 64 de “ditabranda” em um editorial, o que o senhor sente?
Olha,
eu sinto vontade de pegar as fotos dos assassinados sob tortura, não sob
combate, porque nós estávamos numa guerra e é uma lei da guerra se morrer em
combate, como ser preso também. Então, isso eu não reclamaria, mas eu pego as
fotos do Mario Alves, do Nelson José de Almeida, da Aurora [Nascimento
Furtado], pego as fotos de centenas de companheiros que foram mortos sob
tortura, e vou jogar lá no editor para ele saber se a dita foi branda ou foi
dura. Que ele veja lá, que se fosse o filho dele, se fosse o pai dele, a mãe
dele que sofreu aquelas torturas e foi assassinado sob tortura pelos agentes do
Estado, se ele faria essa classificação sobre o regime militar.
Eu
acho que é uma forma do grupo Folha, dos Frias, fazer uma média com essa onda
conservadora que ainda tem força na sociedade brasileira. Eu sou leitor e
assinante da Folha e realmente me deu vontade de rasgá-la, mas como eu
acho também que nós precisamos ouvir os vários lados da questão, com esse
espírito democrático, estou com tolerância para dialogar. Quem sabe se nós
jogarmos na cara do editor essas fotos eles possam mudar o ponto de vista deles
e falar que a ditadura foi tão sangrenta quanto as outras. Pode não ter matado
tanto quanto as outras, mas torturou tanto ou mais do que a chilena e a
argentina. Essa forma de qualificar e comparar é na verdade uma forma política
de conciliação com aqueles que já foram superados historicamente, mas teimam em
ainda ter um papel negativo na realidade brasileira atual.