Entrevistas Beatriz Kushnir fala sobre o livro "Cães de Guarda"
Por Jornal Unidade, do
Sindicato dos Jornalistas de São Paulo
"Lançado
pela editora Boitempo o livro que, certamente, tomará de assalto as rodas de
discussão dentro das redações. É a edição da tese de doutorado da historiadora
Beatriz Kushnir, ‘Cães de Guarda: Jornalistas e Censores do AI-5 à Constituição
de 1988’.
Até agora, a imprensa ignorou por completo o trabalho, fruto de tese já
defendida com sucesso no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Beatriz é mestre em História pela Universidade Federal Fluminense e sua tese
pesquisou a postura colaboracionista de jornalistas e órgãos de imprensa
durante a ditadura militar pós-68.
Em sua tese, Beatriz mostra a estreita relação que houve naquele período entre
jornalistas e policiais, como também investiga os estratagemas da direção das
empresas de comunicação, ao aceitarem praticar a autocensura, como ‘sugeria’ o
governo militar.
O estudo focaliza a relação dos jornalistas com os censores no Brasil de 1968 a 1988. Ela demonstra,
com todas as tintas, a existência de jornalistas que foram censores federais, e
que também foram policiais enquanto jornalistas nas redações. Escrevendo nos
jornais, ou riscando o que não poderia ser dito ou impresso, colaboraram com o
sistema autoritário daquele período. Ela relata: ‘Assim como nem todas as
redações eram de esquerda, nem todos os jornalistas fizeram do ofício um ato de
resistência ao arbítrio’.
Para realizar seu trabalho acadêmico, privilegiou o período do AI-5 à
Constituição de 1988. Recuou a março de 64 e à legislação censória no período
republicano. Ela focou sua pesquisa nos jornalistas de formação e atuação, que trocaram as
redações pela burocracia e fizeram parte do DCDP (Departamento de Censura de
Diversões Públicas), órgão subordinado ao Ministério da Justiça, cargo de
Técnicos de Censura. Outro foco da pesquisa foram os policiais de carreira que
atuaram como jornalistas, colaborando com o sistema repressivo e censor do
pós-64. Para encontrar esse grupo, Beatriz pesquisou a trajetória do jornal
Folha da Tarde, do Grupo Folha da Manhã, de 1967 a 1984.
Ela teve acesso
ao Banco de Dados da Folha, ao DEDOC da Editora Abril, aos arquivos pessoais do
jornalista José Silveira (Jornal do Brasil) e da jornalista Ana Maria Machado
(Rádio JB). Entrevistou 19 jornalistas que passaram pela FT, onze censores - só
dois autorizaram a divulgação de seus nomes, e um grupo de 26 jornalistas, entre
eles Bernardo Kucinski, Mino Carta e Jorge Miranda Jordão.
Dez jornalistas, dez censores
A historiadora conta, em uma passagem da tese, que os dez primeiros censores
que estiveram em Brasília, quando da mudança da Capital, eram jornalistas. Eram
profissionais que foram transferidos para as redações de Brasília e lá
acumularam cargos na burocracia do Estado, situação comum à época. Mas eles
preferiram ficar com apenas uma atividade. Dez jornalistas optaram pelo
trabalho no Departamento de Censura, onde se ganhava mais. Dois deles
escreveram um livro explicando aos censores como se deve censurar e quais os
artigos que se deve cortar.
O caso Folha da Tarde
Um dos episódios destacados pela tese de Beatriz Kushnir narra a trajetória da
Folha da Tarde. Segundo a tese, o jornal foi o reduto, entre 1967 e 1984, de um
grupo de jornalistas colaboracionistas, os chamados ‘cães de guarda’, que
dirigiram a redação como uma delegacia de polícia. Na epóca, a FT era chamada
no meio jornalístico como o jornal de maior ‘tiragem’, uma ironia à grande
presença de ‘tiras’ na redação.
Em 1967, a
FT renasce sob o comando de Miranda Jordão - que hoje dirige a redação de O
Dia, no Rio de Janeiro - para fazer frente ao Jornal da Tarde. Sua redação se
caracteriza por abrigar bons jornalistas, muitos deles simpatizantes da
esquerda. Essa fase não foi longa. Finalmente, com o AI-5, Miranda Jordão é
demitido e assume a redação Antonio Pimenta Neves e, posteriormente, Antonio
Aggio Jr., hoje assessor de imprensa do senador Romeu Tuma. Aggio vinha do
jornal Cidade de Santos.
Segundo a tese, durante uma década e meia o jornal ficou sob o comando da
direita e muitos dos seus jornalistas tinham cargos na Secretaria de Segurança
Pública do Estado de São Paulo.
Durante esse período, alguns fatos marcaram a redação. A prisão de Frei Betto,
em 11 de novembro de 1969, foi minimizada pelo jornal, que não citou uma
importante passagem em sua biografia: Frei Betto foi chefe de reportagem da
Folha da Tarde.
No episódio Vladimir Herzog, assassinado nos porões da OBAN (Operação
Bandeirante) em 25 de outubro de 1975, a FT ignorou por completo a missa
ecumênica realizada na Catedral da Sé, alguns dias depois da sua morte.
Outra prática, que se estendeu a outros órgãos de imprensa, mas foi exemplar na
FT, foi a de transmitir integralmente a versão do Estado para desaparecimentos
e assassinatos, como no caso de uma manchete de abril de 1971 que anunciava a
morte do guerrilheiro Roque, em confronto com a polícia de São Paulo. Roque era
o codinome do metalúrgico Joaquim Seixas, que havia sido preso com o filho Ivan
Seixas, hoje jornalista. Os dois eram militantes do MRT (Movimento
Revolucionário Tiradentes), e tinham sido acusados de matar o industrial Enning
Boilesen, um dos financiadores da OBAN. Foram presos e torturados.
Num certo dia, Ivan foi levado pelos policiais para um ‘passeio’ fora da OBAN e
leu em uma banca de jornal a notícia da morte do pai. Quando voltou do
‘passeio’ ainda encontrou seu pai vivo. Joaquim Seixas viria a morrer horas
depois. Os jornais do dia seguinte reproduziram friamente a nota oficial dos
órgãos de repressão, mas a FT havia publicado a notícia um dia antes, com
detalhes. Muitos atribuem à FT a legalização de mortes em tortura.
Além do caso FT, a tese mostra como redações, entre 1972 e 1975, ‘acatavam’ os
bilhetinhos do Sigab (Serviço de Informação do Gabinete), que notificavam
diariamente os jornais sobre o que se podia e o que não se podia publicar. Beatriz cita o professor Bernardo Kucinski, que lembra: ‘A maior parte da
grande imprensa brasileira aceitou, ou se submeteu a esse pacto. Para Médici,
era melhor que o próprio jornalista se autocensurasse’.
As empresas escolheram então os seus ‘quadros de confiança’. Por abrigar
jornalistas colaboracionistas algumas redações ficaram conhecidas como ‘ninhos
de gansos’. Os jornalistas de confinça que cobriam o Deops, por exemplo, não
passavam pela revista e seguiam direto por uma entrada lateral, reservada aos
policiais, apelidada ‘passagem dos gansos’.
"A censura para mim é sempre política"
UNIDADE - Qual a
intenção inicial de sua pesquisa? Beatriz - Eu tinha
planejado fazer uma tese sobre a apreensão de imprensa clandestina pelo
aparelho do DOPS. Comecei a trabalhar com essa documentação em Brasília, há
toda a documentação do Departamento de Censura de Diversões Públicas. Mas a
partir daí, percebi que eu podia pensar a censura diferentemente do que havia
sido trabalhado. Não como os jornalistas receberam os censores na redação, mas
quem eram esses censores, que tipo de trabalho eles faziam, ou seja, a censura
contando a sua própria história. É o que faço nos três primeiros capítulos da
tese.
UNIDADE - Como surgiu
o interesse pelo caso Folha da Tarde? Beatriz - Num
determinado momento Maurício Maia, filho do Carlito, me contou como os órgãos
de imprensa publicavam notícias falsas de mortes de militantes, e me chegou a
história do Ivan Seixas, que era um militante político do MRT (Movimento
Revolucionário Tiradentes), um braço da ALN (Aliança Libertadora Nacional). Ele
é preso com o pai, são levados para a OBAN (Operação Bandeirante) e são
torturados. O Ivan é levado para dar ‘uma volta’ e fora da prisão recebe uma
informação de que o pai morreu, noticiada pela Folha da Tarde. Quando ele volta
à OBAN o pai ainda está vivo, só morreria horas depois.
A FT foi considerada o
diário oficial da OBAN. A Folha da Tarde é um jornal que renasce em 1967, com o
Miranda Jordão, para ser um jornal de oposição ao Jornal da Tarde. Depois do
AI-5, ela se torna cada vez mais à direita. O Miranda foge pela fronteira, o
Frei Betto, que integrava a equipe do jornal, também sai. Aí assume Antonio
Ággio Jr.
Tento mostrar como é falsa essa imagem de que a imprensa combateu
arduamente a censura. Isso é uma coisa muito delicada para os jornalistas. É
delicado perceber que havia autocensura nas redações. A Folha da Tarde se
prestava muito para se perceber isso. Se você perceber realmente quando os
jornais tiveram censores dentro da redação, então você nota que a autocensura
funcionou muito mais do que o censor. Você tem poucos censores nas redações da
grande imprensa. Eles estavam na imprensa alternativa.
Gosto muito de uma matéria do Jânio de Freitas, sobre os 30 anos do AI-5,
quando ele diz que 30 anos depois são de novo os mesmos jornalistas que estão
contando a sua história, e 30 anos depois eles contam a história que eles
querem.
UNIDADE - Você
quantificou o número de jornalistas que poderiam ter se envolvido com o
colaboracionismo? Ou se deteve mais no caso da FT? Beatriz - Eu não tive
essa preocupação de quantificar. A Folha da Tarde é um estudo de caso nos dois
últimos capítulos da tese. Mas o que acontece naquela redação? Durante um ano e
pouco ela é uma redação de esquerda e durante quinze anos ela vai se tornar uma
redação extremamente de direita. Existiam nos anos 70 uns casos que se chamavam
desbundes, que eram presos políticos que são presos e depois colocados na
televisão para fazer um mea culpa. Alguns desses mea culpa vão se tornar
jornalistas da Folha da Tarde, mostrando um pouco dessa relação tão permissiva.
UNIDADE - Conte o que
aconteceu com a Folha de S. Paulo e Frias em 1977. Beatriz - Em 1977, o
Boris Casoy assume a redação da Folha. São tirados todos os nomes dos Frias do
expediente, que só vão ser recolocados no jornal em 1984, na época das Diretas.
É toda uma jogada de marketing da Folha. Se você repensar hoje o Projeto Folha,
ele está muito longe de qualquer análise que diga: ali tínhamos uma redação
neutra. Mas as pessoas continuam lendo o projeto Folha como isso. Como um
momento em que a Folha vai sair de tudo isso como se nada desse passado tivesse
a ver com a família Frias, e vai entrar limpa para a história, nesse momento
redemocrático do País (as Diretas), o que não é verdade.
UNIDADE - Como os
jornalistas que já leram a sua tese a receberam? Beatriz - A tese fez
muita gente pular. Muitos jornalistas não aguentam ver. Por mais que sejam
críticos, preferem dizer: o historiador errou na sua análise.
UNIDADE - Durante a
elaboração da tese, foi difícil a relação historiadora-jornalistas? Beatriz - Num primeiro
capítulo eu faço uma longa discussão entre jornalistas e historiadores. Como
nós dois estamos fazendo uma história do tempo presente. Só que às vezes o
jornalista não percebe que ele é nossa fonte, ele não faz uma reflexão. Vocês
fazem a história do imediato e a gente faz o que se chama uma história do tempo
presente, que é uma reflexão do tempo presente. O que o jornal faz é uma
história do instantâneo, e o historiador vai usar aquilo como fonte. Muito
pouco da imprensa você tem como espaço de reflexão. Você não tem mais isso hoje
em dia. No
momento as revistas falam em comportamento, há muito pouca reflexão.
UNIDADE - Ao escrever
a tese você se desiludiu com a imprensa e com os jornalistas? Beatriz - O momento
dessa tese é um momento de desilusões. Não existe esse jornalista quixotesco.
Ou melhor, não que ele não exista. Ele existe pontualmente, mas não é o que
paira na maioria da imprensa.
UNIDADE - Você
encontrou dificuldades para editar a tese? Beatriz - Várias
editoras top de linha a pegaram e disseram: você não entrevistou a família
Frias. (Os Frias se negaram a falar com Beatriz) A Boitempo foi muito legal.
Aceitou dividir a tese em dois livros. Queria escrever mais um capítulo com as
60 horas que eu tenho de entrevista com os censores e não cabia na tese, e ela
topou.
UNIDADE - Você fez uma
divulgação grande da tese e deu várias entrevistas que não saíram na grande
imprensa. Isso é censura? Beatriz - É uma
censura. É mais fácil denegrir um trabalho do que você tentar dialogar com ele.
UNIDADE - No momento
do assassinato Herzog como se comportou a imprensa? Beatriz - A Veja foi
proibida de falar sobre o Herzog. Tem um editorial do Mino no qual ele escreve,
em dois parágrafos, que ele tem uma dívida com a população naquele momento,
porque não está podendo contar uma coisa, e ele espera que a visita do Geisel a
São Paulo possibilite que um dia a Veja possa resgatar aquela não-fala, naquele
momento. Não-fala é não poder dizer que o Herzog havia sido assassinado. O ano
de 75 é o momento em que
Geisel vem com o discurso da abertura. Naquele momento os
jornais continuam sendo censurados, a autocensura continua presente nas
redações. É uma falsa idéia que a censura está acabando naquele período, não é
verdade.
UNIDADE - Quando
falamos de censura devemos falar dos jornalistas ou dos donos dos jornais? Beatriz - Não dá pra
se eximir. Quem tem mais culpa? É o dono do jornal, é o jornalista? São
circunstâncias que se dialogam. Não estou dizendo que todo jornalista exerceu
um papel de colaboração, nem que todas as empresas de jornalismo foram
colaboracionistas. Eu analisei o caso específico de um grande jornal, mas que
você pode estender para outros casos.
Esse termo do colaboracionismo é um termo que doi de ouvir. Isso reflete muito
do país, da formação, dos processos econômicos.
UNIDADE - Muita gente
preferiu não dar depoimento para a tese, não foi? Beatriz - Com os Frias
eu fiz várias investidas. Alegaram que não podiam, não tinham tempo. Como um
empresário que vende esse tipo de serviço se recusa a conversar sobre isso? A
minha negociação com o Ággio levou meses e meses, e depois que ele me deu uma
longa entrevista, se sentiu tão mal que me mandou um fax, no dia seguinte,
sobre o que ele entendia de política. É aquela contradição da contradição.
UNIDADE - A censura
está presente em toda a trajetória republicana brasileira? Beatriz - Eu tento
mapear a censura na República, mostrando que ela não é exclusiva de momentos de
exceção. No Brasil, mesmo em momentos democráticos ela existiu.
UNIDADE - Qual é a
cara dessa censura? Beatriz - Ela tem uma
capa de moral e bons costumes, que em períodos de exceção se divide em política. Mas para
mim a censura é sempre política, porque ela está sempre querendo regular o ato
político do cidadão."