M�dia Mídia e produções de subjetividade: o poder da mídia
Por Vito Giannotti - apresentado em seminário organizado pelo Conselho Federal de Psicologia
Gostei muito do título desta mesa - "Mídia e Produção de Subjetividades: O Poder da Mídia", porque essa discussão sobre o poder da mídia aparece todo dia, no meu café da manhã. É uma briga entre mim e minha mulher, a jornalista Claudia Santiago, porque eu defendo a idéia de que a mídia tem um poder enorme, e ela relativiza mais esse poder. Minha companheira, um pouco mais sensata do que eu, sempre briga comigo, porque, na visão dela, dou um poder excessivo à mídia e não deixo nenhuma liberdade de opção fora dela. Não existiria o livre arbítrio, na minha visão.
Se nós estivéssemos num teste de múltipla escolha
sobre o poder damídia, se é absoluto, fortíssimo, relativo ou quase
absoluto, eu, querendoser moderado, diria que é quase absoluto, quer
dizer, perto do absoluto.Há pessoas que acham que é relativo, ou seja,
que a mídia tem poder,mas não é tanto assim, pois as pessoas pensam,
mas, na minha opinião,elas pensam o que a mídia quer que pensem.
Vejamos um exemplo. 40 anos atrás, o mundo estava empesteado de fumaça de
cigarro. Não tenho nada contra cigarro, mas, vou falar do fato que, há 30, 40
anos, o mundo inteiro fumava. No filme Casablanca, há momentos em que
parece que a película do filme está com defeito. Não se enxerga quase nada. Mas
não é um defeito da película, é que não se enxerga quase nada mesmo. Os dois
protagonistas principais estão num bar mal iluminado, bebendo, fumando,
soltando uma baforada atrás da outra. Quase não se enxerga os atores. É fumaça
o tempo todo. Foi a época em que quase o mundo todo passou a fumar. Quem disse
que o ser humano seria um fumante? Se Hollywood não tivesse existido, não
existiria, no mundo, esta epidemia de fumantes. É esse o poder da mídia.
Outro exemplo. Durante os anos mais duros da ditadura militar, entre 1969 e
1973, qual era o poder da mídia? Eu digo que quase absoluto. Vivia-se o poder
absoluto, total, das forças armadas, o poder dos torturadores que assassinavam
os militantes de esquerda. Em 69, 70, 71, centenas de militantes contra a
ditadura, entre os quais eu, tentávamos dizer aos companheiros com os quais
trabalhávamos nas fábricas, que estávamos numa ditadura, que havia mortos,
presos, assassinados, torturados. Mas ninguém nos ouvia, ninguém se
interessava. Quem é que conseguia anestesiar totalmente o povo naquele momento?
Era o clima de oba-oba, do sonho do tal “Brasil Grande” embalado com as
musiquinhas Para afrente Brasil, Brasil, eu te amo ou o Hino da
Seleção (e quem não gosta da seleção?).
Rádios e TVs tocavam essas músicas
constantemente. Além disso, havia todas as propagandas feitas no cinema, e mais
ainda pela TV e Rádio Globo dizendo que estava tudo às mil maravilhas, que o
Brasil estava perfeito. E o povo ficava tranqüilo. Tranqüilo porque,
economicamente, era a época do chamado milagre econômico, era uma época de
muito emprego. Eu, que na época era ferramenteiro, me lembro que arrumava
emprego até por telefone. Os salários eram arrochados, mas era fácil arrumar
emprego. Então o marido arranjava emprego para a mulher, e o filho, de 13, 14
anos. Havia uma propaganda de que o Brasil era uma maravilha, mesmo com a
ditadura, as mortes, as torturas. Nesse ponto, o poder da mídia, o poder da
propaganda era quase absoluto, na minha visão.
Só que existem fatos na História que relativizam esse poder absoluto da
propaganda, da mídia. A crise do petróleo, em 1973, por exemplo, mudou o olhar
do povo brasileiro. Em 74, 75, o tal milagre começou a fazer água, começou a se
esvaziar, e aquele clima de adesão à ditadura mudou completamente. A OAB, que
em 64 invocava o golpe, já em 75, em São Paulo, no Largo São Francisco, lê o famoso
Manifesto pela Volta do Estado de Direito, isto é, pelo fim da ditadura. Estava
mudando o clima de adesão à ditadura. Mas esse clima não mudaria se não tivesse
estourado a chamada crise do petróleo.
Em 2006, toda a mídia, sem assumir, porque sempre faz questão de aparecer como
imparcial, apoiou o candidato Alckmin. A única exceção foi a revista Carta
Capital, que assumiu seu apoio ao candidato Lula. Então por que o candidato
de toda a mídia não ganhou, se ela é tão poderosa quanto penso? Não ganhou,
porque há fatos históricos que relativizam o seu poder.
Houve o fato concreto de que para muitos, através de programas como o Bolsa
Escola, o Bolsa Família e o aumento do poder de compra do salário mínimo, a
vida teve uma pequena melhora. O povo do bolsa escola, o povo que começou a
comer e a ganhar um pouco mais, acabou votando no Lula. Essa mídia foi
derrotada pelos fatos, como aconteceu na ditadura. O poder da propaganda foi
relativizado e anulado pelos fatos históricos. Isso prova que o poder da mídia,
embora muito grande, não é absoluto.
Há um fato que prova que o poder da mídia é enorme e capaz de enganar milhões e
bilhões de pessoas. Estamos em 2003. Os Estados Unidos resolvem invadir,
bombardear, acabar, destruir e matar 300, 400 mil pessoas no Iraque. O mundo
todo “bebeu” as notícias das agências norte-americanas e apoiou a invasão do
Iraque. Claro que nem todo mundo apoiou. Houve manifestações de mais de um
milhão de pessoas, na Alemanha, na Espanha, na Itália, na Inglaterra. Aqui no
Brasil, conseguimos juntar cerca de 500 pessoas contra o bombardeio, contra a
destruição do Iraque. Mas o grosso do mundo estava com Bush. Ou melhor, com a
CNN, com a Fox e companhia.
Tenho uma irmã na Itália. Liguei para ela num domingo, um pouco antes de
estourar a guerra, no final de fevereiro de 2003. Perguntei como estava a
situação lá. Ela respondeu: “Ih, tá difícil.” “Mas o que aconteceu? Tem algum
problema?” “Não, está muito ruim.” “Mas quem se machucou, quem morreu? Você
está doente?” “Não. Saddam Hussein”, respondeu ela. Minha irmã estava lá com um
medo terrível de Saddam Hussein. Ainda não havia estourado a invasão americana.
Eu, pelo telefone, tentei tranqüilizá-la: “Que Saddam Hussein, que nada.” “É,
mas ele tem bomba.” “Que bomba, que nada”, eu insistia. “Tem, sim. Tem bomba
atômica, química e bacteriológica. Nós vimos tudo na TV. Aí no Brasil, não
viram, não?” “E você acreditou?”
Saddam Hussein não tinha bomba atômica, nem
bomba química, nem bomba bacteriológica. Quem criou Sadam Hussein? Que
realmente criou o Saddam Hussein foi o Bush para poder invadir o Iraque. Bom,
mas minha irmã não sabia nada disso, nem meus irmãos, nem os cunhados, nem os
concunhados. Eles não sabiam disso, e achavam que o Bush iria lá para implantar
a democracia. Isso por quê? É o poder da mídia, quase, quase absoluto.
Querem outro exemplo desse poder quase absoluto da mídia? Estamos, aqui no
Brasil, na época das privatizações, de 1990 a 1999. Aconteceram quase todas as grandes
privatizações: CSN, Telebrás, Vale do Rio Doce. A Vale do Rio Doce foi vendida
por 3 bilhões e 400 mil reais. Sabem quanto o atual presidente da Vale disse
que valia a empresa? 100 milhões. Isso é mentira, valia muito mais. Só o
depósito de ouro de Eldorado dos Carajás valia 150 bilhões de dólares. Mas ele
disse que valia 100 milhões, e ela foi vendida por 3 bilhões e 400. E o povo? O
povo estava anestesiado por dez anos de Boris Casoy, Alexandre Garcia, William
Bonner e Arnaldo Jabor que repetiam cem vezes por dia que tudo o que é público não
funciona, tudo o que é do Estado não funciona, que se deve privatizar, etc. E
quem fez essa operação de lavagem cerebral das pessoas? A mídia. Este é o seu
poder. Imaginem o que significa a Globo mostrar uma manifestação na Avenida
Paulista, em frente à Fiesp, paga pelos empresários, de 3.000 metalúrgicos de
São Paulo, que arrastavam um elefante de quatro metros de altura. Era uma das
tantas manifestações da Força Sindical a favor do projeto neoliberal. Vem o
repórter da Globo e pergunta ao chefe da Força: “O que é esse elefante?” E o
paladino da Fiesp, Luiz Antônio Medeiros, responde tranqüilamente: “Esse
elefante é o Estado brasileiro. Como assim? O Estado brasileiro é um
paquiderme, é ineficiente, não funciona. Nada que é estatal funciona. Esse é o
Estado. Olha aqui esse elefante. É igualzinho”.
E assim, o povo brasileiro, em 96, 97, 98, estava a favor da privatização,
tenho certeza absoluta. Eu diria que 90% era a favor, sim, da privatização, por
causa de um sistema de propaganda, de chantagem, de ameaça de perder o emprego
e de mil outras artimanhas. Boris Casoy mostrava todo dia casos de ineficiência
do Estado e repetia, com ar muito sério: “isso é uma vergonha”. Depois vinha o
Alexandre Garcia, apavorando o povo, dizendo que era preciso salvar o Brasil,
isto é, precisava privatizar tudo. A privatização passou a ser uma idéia
hegemônica. Isso é o poder da mídia.
Como se constrói a hegemonia? Como se garante a hegemonia? Essa é uma questão
importante para o Conselho Federal de Psicologia. Esse é o tema central desta
Mesa: Mídia e Psicologia.
Como é que se consegue ganhar o coração, a mente de milhões de pessoas numa
determinada direção política? Isso é hegemonia: a direção política da
sociedade. Na visão de Gramsci, o conceito de hegemonia é mais amploque só direção política. Para Gramsci, hegemonia
implica a direção culturale moral da
sociedade, ou seja, é uma visão de mundo, uma perspectiva demundo e uma ação conseqüente, uma nova prática
cultural e moral.
Na sociedade de hoje, a direção moral e cultural é dada pelo neoliberalismo.
Essa visão exerce, desde a década de 1980, um domínio quase absoluto sobre a
vida e a visão das pessoas. A hegemonia político-ideológica no Brasil, na
França, na Itália, na Inglaterra, nos Estados Unidos, etc., é do neoliberalismo.
E como é que eles garantem essa hegemonia? Qual é o papel da Psicologia? Como é
que eles conseguem que psicologicamente as pessoas aceitem isso? Como se ganha
o coração e a mente das pessoas?
Na minha visão, é por meio da mídia. Esse é o grande instrumento. Gramsci
afirma que a hegemonia tem duas bases: o consenso e a força. O consenso é a
coesão dos pensamentos, das vontades. A força é a força de leis, a força do
exército, a força da Justiça, e isso tudo implica coerção. A hegemonia se garante
por consenso, que é ganhar o coração e a mente das pessoas, e, com a força, com
instituições capazes de fazer com que aquela conquista, aquela vitória, aquela
visão, se consolide, se estruture e vire poder.
E como se consegue isso? Por meio dos instrumentos, “aparelhos” como são
chamados por Gramsci. E o grande aparelho do convencimento, hoje, é a mídia.
Nós, evidentemente, que não somos neoliberais, queremos outra hegemonia. Como
vamos conseguir? Como vamos fazer uma disputa contra-hegemônica na sociedade?
Como vamos travar isso? Não se trata de fazer uma revolução armada. Essa, hoje,
é uma discussão estéril. Nós temos que ganhar milhões de cabeças, temos que
ganhar os corações das pessoas, e através de aparelhos privados de hegemonia.
Depois a revolução seguirá seu rumo.
O que é um jornal? Temos, por exemplo, o jornal dos trabalhadores da
Universidade, que é um aparelho privado de hegemonia. O que é uma estação de
rádio? O que é um programa de televisão? Um aparelho privado de hegemonia,
privado, porque não é público, nem estatal. Não é que estes garantam a
hegemonia. Eles são instrumentos para se conseguir a hegemonia.
Queria dar outros exemplos de hegemonia ligados à comunicação.
Aqui no Rio de Janeiro, na Barra da Tijuca, na entrada do New York City Center,
que tem a famosa Estátua da Liberdade. Essa é só o “tira-gosto” inicial do que
existe lá dentro. Tudo, lá, está escrito na língua do país da tal estátua.
Quando se procura pipoca, o que se acha? Popcorn. Aquela Estátua da Liberdade é
um aparelho privado de hegemonia. Liberdade é viver nos Estados Unidos, vamos
embora para Miami! Morte ao Iraque e ao Saddam Hussein!”. Em Santa Catarina, há
uma fábrica de tecidos, a Havan, em cujo pátio há uma Estátua da Liberdade de
25 metros: o mesmo na fábrica do mesmo nome, em Curitiba. Sim, 25 metros de estátua no
pátio de uma fábrica. O que tem a ver? Está lá, um gigantesco “aparelho” da
hegemonia norte-americana..
E o Big Brother, minha gente, é o que? Quem é que tem aqui uma filha com
idade entre 14 e 18 anos? O que vocês dizem para essas filhas? Que têm que
estudar, têm que trabalhar, têm que ser dignas, têm que ter personalidade, não
é isso? E o que diz o Big Brother? Como é que se ganha a vida? É só
tirar a roupa. Para quê estudar? Que besteira fazer faculdade! Para quê? É só
abrir as pernas, e pronto. A querida filhinha que em casa assiste ao Big
Brother, qual lição recebe da Globo? O que esta babá eletrônica manda dizer
está claro: “Que besteira é essa de estudar, trabalhar? Olha a Siri, como se
deu bem! Está pelada em todas as revistas. É isso que dá futuro!”
Esse é o poder da mídia. Coisa que não existia 100 anos atrás, quando a
influência sobre as novas gerações era determinada pela família, pela escola,
pelas igrejas e pelos partidos. Hoje, quem constrói o consenso é a mídia. É
assim que se constrói a hegemonia.
Em fevereiro de 2007, fui escalado para assistir a novela Páginas da Vida.
É uma loucura aquilo lá. Na véspera, no Rio de Janeiro, havia morridoaquele
menino, o João Hélio. Foi um ato bárbaro. O que aconteceu? Ocrime
aconteceu no dia 6 de fevereiro. No dia 8, a Globo mostrou nanovela
três freiras sentadas, conversando e tomando café. Aí chega umafreira
toda assustada, com o jornal, obviamente O Globo, e diz: “Irmãs,olhem.
Aconteceu uma coisa muito bárbara. Uma barbárie”. Ela abre ojornal e
fica mais de um minuto mostrando a manchete principal dojornal:
“Barbárie contra a infância”. Aí as freiras se ajoelham, rezam umpai-nosso
contra aquele ato de barbárie. Soube que milhares de pessoasse
ajoelharam e rezaram junto com as freirinhas? . Nada contra rezar o“pai-nosso”.
Mas, pergunto, para que foi colocada aquela cena com asfreirinhas
rezando? Porque a Globo está na campanha pela redução daidade
penal e pela pena de morte. Essa é a disputa ideológica.
E quando uns jovens da sociedade “bem” de Brasília resolveram se divertir e
puseram fogo no índio Galdino? Era o Dia do Índio. Aquele índio pataxó, que era
da Bahia, o que fazia lá em Brasília, dormindo debaixo do ponto de ônibus?
Passam quatro rapazes, todos brancos, claro, filhos de desembargador, de juiz,
promotor, deputado, todos bem nascidos, bem criados, e dizem: “Olha, um
mendigo. O que vamos fazer com ele? Vamos comprar álcool.” Eles saíram para
comprar álcool. Quer dizer, não foi um instinto. Eles foram comprar álcool para
queimar o índio. Foram lá, cobriram-no de álcool e o incendiaram. O Globo colocou
alguma manchete tipo a do João Helio? A Globo colocou quantas freirinhas
rezando o pai-nosso? Nenhuma. E quando a polícia mata uns 30 moradores, aqui no
Complexo do Alemão? E os 21 moradores de Queimados, que foram chacinados para
vingar um policial morto pelo tráfico? Dessas 21 pessoas, duas tinham alguma
passagem pela polícia. Normal. Em qualquer lugar, sobre 21, há duas pessoas que
já tiveram alguma passagem pela polícia. E O Globo colocou “barbárie” na
sua manchete? E as freirinhas? Se para João Helio foram 3, para os 21 de
Queimados deveriam ser 21 X 3 = 63. Sim, na novela das 8, deveriam aparecer 63
freirinhas rezando o Pai-nosso e a Ave Maria. Mas não apareceram. Por quê?
Um último exemplo: a novela Senhora do Destino.
Último capítulo. 58 milhões de brasileiros iriam assistir. E eu tive que ser um
deles. Sentei, pronto para analisar; inteligentemente, peguei papel, caneta,
pronto para observar tudo. Assisti ao capítulo e não achei nada de estranho.
Nada de especial. Só não entendia o porquê de se mostrar um acampamento do MST.
Se eu não entendi, 56 dos 58 milhões que assistiram também não entenderam nada.
Aquele último capítulo é fatal para dar a idéia de que o MST é um bando de
violentos, assassinos, matadores, vagabundos, um lugar ideal para se fazer um
seqüestro. Logo em seguida, o comparsa da Nazaré queria o resgate da menina;
então, ela pega um pedaço de pau, bate na cabeça do comparsa que queria o
dinheiro do resgate e ele morre. Onde foi que ele morreu? No acampamento do
MST. Assim, tranquilamente. É isso mesmo, o lugar ideal para se levar uma
pessoa seqüestrada é lá, no acampamento do MST. Lugar ideal para matar alguém a
pauladas é lá, no MST. Ótimo capítulo. Um final assistido por 58 milhões de
pessoas para dizer que o MST é violento! Isso é a mídia empresarial. Isso é a
mídia comercial. É assim que ela condiciona corações e mentes.