Direitos Humanos
Memórias do massacre de Carajás
Por Daniel Santini* - da Folha Universal, enviado especial a Eldorado dos Carajás
Formigas pequenas sobem pelos pés de uma moça que aguarda para assistir à celebração na Curva do S, trecho da estrada PA-150, onde, em 17 de abril de 1996, a Polícia Militar do Pará matou 19 trabalhadores rurais. O calor abafado, a lama deixada pela chuva minutos antes, a movimentação de gente, o sorveteiro que aproveita para vender picolés de frutas típicas – açaí, cupuaçu, bacaba, muruci –, tudo faz com que ela demore para perceber o ataque. Com violência, as formigas penetram entre as tiras da sandália e picam. A dor deixa o pé inchado e, nos minutos seguintes, ela sofre enquanto acompanha o plantio de castanheiras no local.
Os segundos em perceber o perigo são os mesmos que, há 12 anos, poderiam ter salvo a vida dos 19 camponeses que bloqueavam o trânsito em um protesto por reforma agrária. Foram mortos no episódio que ficou conhecido como Massacre de Eldorado dos Carajás e serão lembrados sempre como símbolo da violência nos conflitos pela terra no Brasil. Nos últimos 10 anos, há registros de pelo menos 400 assassinatos no País, histórias de milhares de famílias expulsas das terras em que viviam em todos os estados, e um incontável número de desaparecidos. Na região sul do Pará a situação é especialmente tensa. A atuação de pistoleiros e milícias ainda hoje é uma constante. Mesmo assim, naquele dia, os homens, mulheres e crianças que bloqueavam a via exigindo comida suficiente para prosseguir em marcha até Belém não esperavam que a polícia fosse chegar atirando. Um homem que era surdo, Amâncio, não escutou e muito menos obedeceu a ordem de recuar. Foi executado com um tiro na cabeça.
Com facões e foices, os manifestantes reagiram e avançaram. A tropa, fortemente armada, mostrou a que veio. Dos 19 mortos, há indícios de execução como tiros na nuca, na maioria, de acordo com peritos indepentendes. Segundo relatos de sobreviventes, quem, atingido, caísse, era executado com tiros, facões ou pancadas.
“Saber que um ser humano está ceifando a vida de outros é muito triste. Eles vieram para isso, não deu tempo nem de ter medo”, diz Antonio Alves de Oliveira, o Índio, um homem de 49 anos que parece não suportar ter que contar sobre o dia em que levou um tiro no calcanhar e um no joelho. Mesmo assim, ele conta. A celebração foi realizada para que a violência não seja esquecida e nem aceita como algo banal. No evento, parte do Fórum Social Carajás, realizado no fim de janeiro como atividade preparatória para o Fórum Mundial Social no Pará, atores cobriram o corpo e as roupas de lama e se esgueiraram por entre troncos de castanheiras queimadas, colocados anos antes como marco do massacre. Mulheres vestidas de camponesas receberam rosas vermelhas. Jornalistas de mais de 30 países diferentes acompanhavam. A cerimônia terminou com o plantio simbólico das árvores.
Dos policiais envolvidos na barbárie, apenas dois foram presos, mesmo assim, por pouco tempo. Mais de 80 PMs que participaram acabaram promovidos em 25 de setembro de 2008 pela governadora Ana Júlia Carepa (PT), um prêmio para que pudessem subir de posto mesmo ainda respondendo na Justiça pela morte dos camponeses.
Para os feridos que sobreviveram, o Governo pagou indenizações entre R$ 20 mil e R$ 100 mil, valor considerado irrisório pela maioria.
Ao falar da matança, Charles Trocate, um dos coordenadores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Pará e sobrevivente de Carajás, lembra que esta não foi a única e conta de casos em que famílias inteiras morreram. Ele destaca a importância dos trabalhadores estarem organizados e unidos para fazer com que os assassinatos não sejam tratados de maneira banal pela Justiça desta vez. “Quase morri”
Nasci na roça, só queria um pedaço de terra para plantar quando tudo aconteceu. Nós saímos caminhando e paramos na estrada. Os policiais disseram que iriam negociar, nós confiamos e ficamos esperando. Quando o tiroteio começou eu estava na linha de frente, bem perto mesmo. Tomei um tiro de raspão bem aqui no braço, onde tem a cicatriz. Deu tempo de correr para o mato e só. Quase morri. Acho um erro da Justiça ninguém ter sido responsabilizado pelo que aconteceu. O ex-governador (Almir Gabriel, do PSDB) deveria ser preso por ter dado a ordem. Não dá para esquecer o que aconteceu, é um trauma que fica para sempre. Não tem indenização que pague. “O revólver ficou vermelho”
Eu era um dos coordenadores de segurança do MST no dia que aconteceu. A gente achou que o pessoal tinha vindo para negociar. Estranhei quando vi um caminhão boiadeiro atravessado na estrada, mas não pensava que eles iriam atirar. Deram uma rajada para cima primeiro. Aí o Amâncio, que era surdo, não ouviu eles dizendo para recuar e ficou exibindo um pedaço de pau em formato de facão. Executaram ele, deram tiro para matar. O pessoal foi para cima e começou tudo. Eu levei um tiro na perna, mas consegui correr para o mato, senão me matavam. Até hoje minha perna incha de vez em quando. Justiça não tem não. Eu vi um policial falando que atirou tanto no dia que o revólver ficou vermelho.
* O repórter viajou a convite da organização do Fórum Social Carajás
Núcleo
Piratininga
de Comunicação
—
Voltar —
Topo
—
Imprimir
|