MÃdia
Mídia escravista em Sergipe
José Cristian Góes
Este comentário não trata da história da escravidão negra em Sergipe no século XIX. Este artigo não faz referência aos anúncios de jornais onde os senhores de engenho caçavam negros fugitivos. Nada disso. A mídia e a escravidão em questão, por incrível que pareça, são do agora, deste ano e deste mês.
Ocorre que depois de vários adiamentos, a Câmara de Vereadores de Aracaju colocou para votar na última semana um projeto de lei que dificulta a abertura do comércio aos domingos, especialmente dos supermercados. Esse projeto tem, guardadas as enormes proporções, o objetivo de reduzir a exploração dos trabalhadores, libertando-os de situações análogas à da escravidão.
A realidade desse segmento empresarial em Sergipe é cruel para os trabalhadores, mas fabulosamente rentável para os empresários. Altas jornadas de trabalho, assédio moral, ridícula remuneração (menos que um salário mínimo), perseguição e desemprego, sem falar na quase ausência de fiscalização. Mas um ponto central e que reúne tudo isso é o trabalho de segunda a segunda, sem descanso nas senzalas. Está como o diabo gosta: poucos custos com os trabalhadores e altíssimos lucros com o suor deles.
Diante dessa abjeta liberdade de mercado, baseada na exploração dos trabalhadores, os grandes supermercados triplicaram seus espaços na capital a ponto de um hiper-supermercado ficar em frente ao outro. No entanto, essa expansão gigantesca das redes significou apenas a criação de 400 empregos em oito anos, segundo dados do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados). Nesse período, os trabalhadores quase dobraram sua jornada e atividades e perderam o sagrado descanso ao domingo.
O resultado disso é o estabelecimento de uma situação análoga à da escravidão, que não é apenas mas negra, mas de seres humanos obrigados a trabalhar para sobreviver em condições de extrema exploração. Para muitos deles não há outra saída: ou aceita a canga, o fardo das longas jornadas de trabalho, o fim do descanso aos domingos e os baixíssimos salários, ou perde o emprego, fica sem as mínimas condições de sobrevivência.
A lei a ser aprovada na Câmara tenta garantir, pelo menos, o domingo como um dia de descanso. Mas o capital não tolera reduzir suas potentes margens de lucro e entra nessa disputa com a mídia. Boa parte do faturamento da maioria dos veículos de mídia local vem das grandes redes de supermercados (comércio). Para defender a manutenção de seus mensalões e até ampliá-los, jornais, rádios e emissoras de tv, nos últimos dias, lançaram uma ampla e clara ofensiva contra o projeto que impede a abertura do comércio aos domingos. A campanha da mídia é aberta, sem desfaçatez nenhuma. Eles até conseguiram adiar a terceira e última votação no projeto na Câmara.
São vergonhosas as reportagens sobre o assunto. Três são as angulações das publicidades com cara de notícias: a alarmista, onde se alega a demissão de mais de mil trabalhadores; a de retrocesso econômico, onde se imputam aos vereadores a responsabilidade pelo desenvolvimento do Estado, caso o projeto seja aprovado; e a voz do povo, onde se apresentam publicamente apenas alguns consumidores que têm suas falas editadas para justificar a necessidade de abertura do comércio aos domingos. Nada, nenhuma fala ou expressão dos trabalhadores.
Pasmem! Esses argumentos apresentados pela mídia escravista em Sergipe de hoje são, guardadas as proporções históricas, os mesmos do início do século XIX. Que a libertação dos escravos iria produzir um caos social, que isso atrapalhava o desenvolvimento econômico do País e que os cidadãos da colônia eram contra essa medida. Mera coincidência histórica? Que nada! O quadro de exploração da classe trabalhadora é uma das bases do sistema do modo de produção capitalista, independente de período histórico.
A mídia, instrumento de voz e ação da burguesia e do capital, cumpre vários papéis nesse processo, entre eles o de reagir fazendo a cabeça da opinião pública contra as possibilidades de leis que embaracem os fabulosos ganhos do mercado. Para que não restem mais dúvidas: a mídia tem lado e não é o lado dos trabalhadores. Nos últimos anos nem as vozes dos trabalhadores são mais inseridas para disfarçar notícias como se jornalísticas fossem e nem para reafirmar o poder e a lógica do capital. Nesse caso do comércio aqui, elas sequer existem.
Nas "reportagens" exibidas em Sergipe sobre a abertura do comércio aos domingos os trabalhadores não são ouvidos. Os textos pressionam vereadores a votar contra o projeto. A condução das matérias, desde entonação das vozes até as imagens nos supermercados tentam formar uma opinião pública favorável a exploração dos trabalhadores, a aceitação pacífica de situação análoga à escravidão. Divulgam-se sem o menor constrangimento mentiras. Falsificam-se números e argumentos, tudo para justificar à escravidão. Censura-se.
Não é possível que jornalistas e radialistas profissionais produzam essas matérias em defesa da exploração dos trabalhadores sem qualquer reação crítica. É inadmissível que apenas engulam a pauta paga, direcionada, encomendada pelos grandes patrocinadores e vomitem o discurso do capital em jornais, rádios e tvs. Nenhum pouco de dignidade resta nessa profissão, que se comprometeu em divulgar a verdade dos fatos? Para os que acreditam em liberdade de imprensa, esse aí é um exemplo de como se vive na prática a ditadura do mercado, que subjuga os interesses públicos de muitos à lógica financeira de poucos.
Além de uma ofensiva da mídia escravista, regiamente paga pelos grandes empresários do comércio, há ações de "convencimento" de vereadores para que na terceira e última votação do projeto votem contra, isto é, mudem o voto. Nas duas primeiras votações, dos 19 vereadores, quinze votaram em favor dos trabalhadores, dois (Juvêncio e Nitinho, ambos do DEM) se abstiveram, um estava ausente e o presidente da Câmara não votou. Até o fim dessa semana, o projeto pode ser votado e aí se conhecerá o resultado ou não do "convencimento" dos empresários junto aos vereadores.
José Cristian Góes é jornalista, da direção do Sindijor/SE, da CUT/SE e do Movimento Luta Fenaj!
Núcleo
Piratininga
de Comunicação
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