Por NPC
Coronel Luis Fernando Almeida - Como ser policial e amigo dos movimentos sociais
[Por Cynthia Raquel, Geam Queiroz e Raquel Junia]
Luis Fernando Almeida chama atenção. Coronel da Polícia Militar de Sergipe e amigo de João Pedro Stedile e do MST. Nessa entrevista, ele mostra como as duas condições não são necessariamente opostas, o que a realidade na maioria das vezes faz crer. “Luto para que um dia a gente tenha um policial que se reconheça como trabalhador, e esteja do lado do povo para protegê-lo”. Durante o 14º Curso Anual do NPC, o coronel foi um dos convidados da mesa A Mídia e a Criminalização dos Trabalhadores e dos Movimentos Sociais, segurou uma bandeira vermelha e cantou a Internacional Socialista.
Qual a imagem que você tinha dos movimentos sociais antes de se identificar com a causa e abraçar essas organizações? Eu sempre gostei de me despir de preconceitos. Mas eu não tinha conhecimento nem amor pela causa. Já tinha uma militância estudantil, mas não tinha uma compreensão do que era o MST especificamente.
Você se considera de esquerda? Com certeza, mas acho que os rótulos acabam estigmatizando. Eu sou uma pessoa em busca de um mundo melhor, que busca ser solidário com os companheiros e a humanidade de um modo geral. Acredito que o caminho é o da luta de massas. Se isso significar ser de esquerda, então eu sou de esquerda.
Gostaríamos de entender um pouco a sua historia. Como você escolheu esse caminho? Eu fui oficial temporário do exército, do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva. Eu fiz no Quarto Grupo de Artilharia de Campanha em Juiz de Fora. Na época estudava geografia na UFJF, e fui convocado para servir como tenente. Era um serviço temporário, renovável e não poderia ultrapassar nove anos e 10 meses porque a legislação na época previa que após dez anos de serviço você teria estabilidade. Eu tinha 18 para 19 anos. Eu dava aula na Campanha Nacional de Escolas da Comunidade, Cenec, nem sei se ainda existe. Ganhava uns 400 e alguma coisa na moeda da época, meus pais separados, eu sou o irmão mais velho, e o exército me chama para trabalhar como oficial temporário e receber 12 mil... Obviamente eu fui.
Planejei minha vida para me formar. Mas aí veio a Constituição de 1988 e reduziu a estabilidade de 10 para cinco anos, e aí eu tive o meu tempo de serviço cortado. Nessa época eu tinha uma namorada que o ex-marido dela tinha sido oficial temporário e tinha ingressado na polícia militar. Ela disse que havia essa possibilidade e começamos a ligar. Aí Rondônia e Pará aceitavam oficiais do exército, fazia um estágio de adaptação e não tinha que passar pelos quatro anos de academia como oficial da polícia. E aí consegui em Aracaju, fiz os exames e comecei, primeiro tenente do exército, voltei a aspirante e segui minha carreira. Como avalia a postura da polícia nas comunidades e em relação aos movimentos sociais atualmente? A polícia de forma geral tem formação de opressora. Não gosto da maioria das atuações que eu vejo. Lá buscamos atuar tratando seres humanos como seres humanos. Em Alagoas há algum tempo tem um grupo que trabalha dessa forma. Luto para que um dia a gente tenha um policial que se reconheça como trabalhador, e esteja do lado do povo para protegê-lo.
A comunicação, como está hoje, atrapalha ou facilita o trabalho da polícia? Quando se fala em comunicação, abrange-se diversos tipos, camadas e forças de comunicação. A grande imprensa em relação à polícia retrata os fatos de forma mais contundente. Normalmente quando age contra os movimentos sociais, ela fica a favor da polícia. Conheço alguns lugares, como Sergipe, em que há uma parceria com rádios e programas de TV sensacionalistas em que há algo que para mim é aviltante. Aquela coisa de o jornalista se vestir como policiais, e eles oferecerem informações e fazerem operações para aparecer. Essa relação é péssima, muito ruim. Você tem alguma sugestão para melhorar a visão que a sociedade reprimida tem da polícia, muitas vezes como inimiga, e contra seus direitos? Em primeiro lugar, eu acho que a população nunca tem uma visão distorcida. Eu acho que a visão do povo das comunidades, mesmo que não tenha a capacidade de formulação que tem as pessoas mais cultas e intelectuais... Eles sofrem na pele, no dia-a-dia, e a impressão do povo é a mais próxima da realidade possível. Então se a impressão do povo é ruim, é porque realmente a polícia não está prestando o serviço que deveria. Eu sou a favor do policiamento comunitário, que é o que o pessoal chama de proximidade. Que participa de reuniões nas comunidades, ouve críticas, sugestões e é reconhecido pela população.
Qual a sua opinião sobre a questão das milícias no Rio de Janeiro? Essa questão das milícias não é a primeira vez que surge. Existe também em outros lugares. Pessoal que fazia extermínio de pobres, da periferia, dizendo que estava matando bandido. Eu acho muito difícil, com toda a estrutura de justiça já é difícil você ter um julgamento que seja justo realmente, imagine esses julgamentos sumários. “ah, é bandido, vai morrer”. Eu tenho muito medo de julgar, eu acho que é uma responsabilidade muito grande. No contexto atual, no Rio, parece que a coisa descambou de tal forma que é mais uma das coisas que apareceram e outras devem aparecer se não mudar a forma de encarar os problemas nessa cidade que é maravilhosa e que eu adoro e fazem a população do Rio sofrer muito.
O policial que entra na comunidade, ele sempre mata o pobre, o negro dizendo que estes são traficantes. Tem algum critério no treinamento na polícia que define que o negro tem que ser atingido? Em primeiro lugar, a polícia não tem que matar. O tiro letal é o último recurso em defesa própria ou em defesa de outrem. Então, por lei, ninguém tem obrigação nem dever legal de matar ninguém. Quando você ouvir alguém falar que matou no exercício regular do direito é mentira, não existe isso. A única previsão para se tirar a vida de outra pessoa é a legítima defesa, mas mesmo assim tem diversos critérios, tem que ser naquele momento, ameaça real, vários critérios. A polícia não tem que matar, o dever dela é proteger. Se mata é porque está na marginalidade. E se escolhe negros, pobres, periféricos, é porque a estrutura da nossa sociedade aponta essas pessoas como a que são os criminosos, os bandidos, e que dentro dessa visão de discricionariedade que há no poder de polícia, são essas pessoas eleitas para sofrerem. Você sugere alguma sugestão para esse estigma? Esse estigma é da sociedade, não é apenas da polícia. Você vê uma pessoa negra, mal vestida, fica assustada, a sociedade de um modo geral pensa isso. Isso é preconceito arraigado no nosso imaginário. É necessária uma transformação para que se mude isso. Essas lutas esparsas de movimentos negros, de mulheres, homossexuais, ou seja, vitimas preferenciais do sistema já ajudam um pouco. Mas eu acho que as pessoas que mais sofrem são as da periferia, as que não têm voz. Vai haver transformação quando houver distribuição de renda e o trabalho for valorizado como trabalho. Você pode ver que ainda há resquícios da escravidão até hoje, muitos trabalhadores próximos à escravidão. O trabalho ainda não tem valor no Brasil.
A grande parte dos policiais que vai para as ruas vem das classes mais pobres da sociedade. E eles acabam defendendo o direito de propriedade, por exemplo, que não é um direito dessa parcela da sociedade, mas de uma classe alta, da burguesia. Como fica a cabeça do policial nesse sentido? Olha, eu queria ter uma explicação consistente para isso. Eu entendo que a formação deforma. Eu entendo que a razão de ser das policias para as elites é simplesmente protegê-las do povo. Porque a elite não tem medo de bandido, de assalto, eles tem carros blindados, moram em condomínios fechados, muitos patrocinam esse caos que está aí. Porque eu não quero crer que Fernandinho Beira Mar é o suprasumo do crime e o último elo dessa corrente. Tem alguém, que mora muito bem, come muito bem, se veste muito bem, esbanja dinheiro e poder, alguém não, vários e que a gente não sabe quem é. Alguns até sabemos, mas não podemos dizer porque não tem como provar.
Eu acho que essa elite quer que a polícia a proteja do povo, dos movimentos sociais, de qualquer tipo de coisa que quebre a ordem. Uma ordem que eles querem fazer acreditar que está certa e é quebrada quando alguém faz uma baderna, quebra alguma coisa, vai para a rua, reclama, faz um panelaço, apitaço, o que for, aí está saindo da ordem. Mas qual a nossa ordem de trabalhadores, pobres, periféricos, de negros? Eu enxergo desordem. Quando um pai da família desce a favela e deixa seus filhos na mão da milícia ou do traficante, para mim isso é uma desordem.A grande mídia faz questão de inverter e dizer que se está tudo calmo, está tudo em ordem.
Você acredita na parceria entre a comunicação alternativa e a polícia no sentido da mídia alternativa mostrar fatos e divulgar idéias como as suas que mudem a visão que as comunidades tem dos policiais, e conseqüentemente os policiais também se tornarem aliados dos movimentos sociais? Acredito que a polícia tem que se aproximar da comunidade. Se alguém tiver coragem de transformar a policia em comunitária, que seja parceira das camadas mais pobres e periféricas, que reconheçam naquele policial um parceiro, alguém que está ali para defendê-lo, para caminhar com ele. Aí a grande mídia pode escrever o que quiser que não vai funcionar, o povo não vai acreditar. Para mim o caminho não é se aproximar da imprensa alternativa, e sim da comunidade, é se reconhecer enquanto trabalhador, saber a que lado pertence e entender que tudo que se faz hoje é um massacre contra o próprio policial, o que ele faz é contra ele, a família dele, porque ele saiu daquela classe, aliás ele não sai, ele é daquela classe, mas não se reconhece como.
Você acha que a grande mídia trabalha contra o policial? Quando o policial tem atitude que choca a sociedade, ela vai em cima da ação e condena. Mas é individualizado. Quando atua contra os movimentos sociais, em locais onde há invisibilidade, a imprensa apóia. Por exemplo, o garoto que mataram na Tijuca, com a mãe no carro, foi uma tristeza, eu como pai, a última coisa que gostaria é sobreviver as minhas filhas. Mas quanta criança não morreu na periferia, até que aquela ali morresse no asfalto, na Tijuca,um bairro de classe média, foi uma condenação geral.Mas quantas vezes essa política é adotada aqui? E faz com que a polícia suba morro atirando, mate gente inocente e não se noticia. Por que a mídia não fala nada? Porque são pessoas invisíveis.
Se o próprio governador do Rio fala que você primeiro deve atirar, e depois perguntar quem é... Claro. Porque os policiais agiram daquela forma? Aquilo não é forma de abordagem, não está na técnica. Quando o policial atira por trás, pelas costas, é porque ele tem certeza de que aquilo não vai dar problema nenhum. Se ali estivessem pessoas suspeitas de serem delinqüentes, até garotos jovens, negros, da periferia, e não tivessem fazendo nada de errado e morressem ali pelas costas a imprensa ia dizer que foram bandidos e tudo bem, mas como era uma senhora grávida e com uma criança, é indefensável. Mas quanta gente não morreu antes de que aquilo ali acontecesse?
Você já sofreu repressão por defender suas idéias? Eu sofri uma prisão, não pelas idéias, porque eles não podem prender, é ilegal. Mas também de forma ilegal. Eu estava fazendo um curso em Maceió, intermediário de carreira, uma pós-graduação, que a gente faz para ser promovido a oficial superior, se chama aperfeiçoamento de pessoal. E lá eles ofereceram um curso de direitos humanos quando terminássemos essa pós. Mandaram ofício para as polícias e a nossa foi a primeira a responder dizendo que autorizava e nós continuamos lá. Chegou um Coronel para fazer um outro curso, viu a gente lá, já tinha acabado o curso de aperfeiçoamento, ligou para o comandante e falou: “os caras estão aqui”. Aí o comandante viu nesse momento uma brecha para me pegar, mandou que a gente fosse desmatriculado e voltasse para Sergipe, quando cheguei em Sergipe, éramos três: “vocês vão ficar presos”. “Mas por que se tinha ofício autorizando?”. “Mas vocês ficaram lá, não se apresentaram, vão ser presos”.
Aí quatro dias de prisão. “Isso está injusto, a justiça vai tirar isso aí”. Oito dias de prisão. Aí tinha um que era um pouco mais indisciplinado, tinha outro que o coronel gostava e eu. O Coronel virou assim para ele e falou: “Marco, você é meu amigo, você é gente boa, mas vai se meter com um indisciplinado e um comunista”. Aí eu falei: “espero que eu seja o comunista”. E aí como a coisa é fantástica, a polìcia estava com problema e não tinha comida e então, não poderíamos ficar presos no quartel e deram uma prisão domiciliar. E sou disciplinado e sempre fui, por isso que não tenho uma ficha carregada de prisão. Fui para a minha casa, não saí, cumpri, levei meus amigos, fiz uma feijoada lá em casa, depois entrei na justiça e a justiça revogou a prisão que eu tinha recebido. Fora isso é piadinha...
Que tipo de piadinha? A própria imprensa dizia: o secretário maluquinho, o capitão sem terra, o comunista, “esse aí, tem que dar sete palmos de terra para esse sem terra”, e essas piadinhas...
Isso na imprensa? A do Capitão Sem Terra foi na imprensa, as outros no dia-a-dia.
Mas essa matéria foi em decorrência do quê? O Estado de Sergipe é de uma oligarquia rural muito forte, principalmente cana de açúcar, um pouco desmobilizada, mas que está retornando agora como em todo o Brasil. A polícia sempre foi um aparelho dos latifundiários, dos usineiros, para reprimir qualquer tipo de manifestação e ocupação de Sem Terra. A partir da entrada do Wellington Mangueira como secretário de segurança e essa atuação que a gente começou a fazer negociando os conflitos, que algumas pessoas ainda não entendem, acham que é uma posição muito conciliadora, causou uma revolta. Teve uma marcha dos Sem Terra e a gente determinou que a polícia acompanhasse a marcha, tivemos que obstruir uma via, coisa comum que todos os dias se faz em manifestação, tranqüilo, mas chegou o ponto do presidente do Tribunal de Justiça ameaçar pedir a intervenção no estado. Ameaçou ao governador, que também não é nenhuma figura de esquerda, muito pelo contrário, só que tem uma visão mais democrática de lidar com esse tipo de coisa. Então, a partir daí, a imprensa, todo mundo sabe, está na mão dos grupos poderosos e começou a falar mal da gente...
Foi nesse dia que saiu essa notícia te chamando de capitão sem terra? Já tinha saído antes por causa da negociação, de não mandar a polícia na mesma hora para reprimir, aí saiu secretário maluquinho e capitão sem terra.
E alguma ameaça de morte, você já recebeu? Não nunca recebi.
E o secretário comunga das mesmas idéias suas? Esse secretário é uma das pessoas mais fantásticas que eu conheci, membro do Partido Comunista Brasileiro, preso treze vezes, torturado, a esposa torturada na frente dele e uma pessoa de uma humanidade fantástica. Hoje a gente tem divergências de cunho ideológico, ele é membro do PPS, partido que para mim está meio fora do foco de luta, mas é um grande amigo e uma pessoa pela qual eu tenho um profundo respeito e que me deu asas.
Você é de algum partido? Eu sempre fui militante do PT, mas nunca filiado porque militar não pode se filiar. Ia para as ruas, vestia minha camisa, meu boné, carregava minha bandeira, mas militar não pode se filiar. Mas agora também não vejo mais em partido solução para esse país, acho que a solução está na mobilização social, no povo começar a conscientizar, ia para as ruas, reivindicar. O dia que a gente tiver um povo conscientizado, preparado, organizado, a gente bota o partido que quiser, o presidente que quiser e vai fazer o que a gente quer.
Alguma vez já tentaram comprar você? Ah, claro, várias vezes, obviamente que não diretamente porque eles não são burros e eu também não sou nenhum idiota, mas aconteceu uma história muito engraçada. A maior ocupação que já teve no Sergipe, eram 1817 famílias, no sertão sergipano, município de Canindé, Poço Redondo, ocupação imensa, eles foram para uns alojamentos da Chesf e ocuparam. Nessa época o presidente do Incra era Raul do Vale, ele foi em Aracaju com um assessor dele. E aí fomos para a ocupação, conversar com o pessoal, tentar uma saída negociada, o Incra adquirir a fazenda. Foi tudo tranqüilo. Esse assessor me convidou para jantar e disse: “rapaz, você deveria se aproximar mais dos órgãos de informação porque eles poderiam ajudar nesse seu trabalho”. “Sim, tá, tudo bem”.
E aí houve uma reunião em Brasília e ele me convida para outro jantar e me leva para um hotel, o Manhatan, se não me engano, onde tinha uma pessoa com um tipo europeu, ele me apresenta e começamos a conversar. “Ah, esse é o capitão que eu falei” e tal. E quando eu comecei a colocar minhas idéias, eu estava meio fazendo de besta ainda. A pessoa que ele tinha apresentado que deveria ter alguma função alta no sistema de informações na época era o SAE, que substituiu o SNI e depois foi criada a ABIN no governo Fernando Henrique, essa pessoa começou a se referir a ele mesmo na 3 ª pessoa, como se fosse outra pessoa que não estivesse ali e eu olhando assim para o cara meio com cara feia. Aí falei para o João Pedro [Stedile]: “olha, fulano de tal, que trabalha no Incra, esse cara é da comunidade de informações, ele disse que tinha sido sindicalista, passou pelo movimento sindical na época do ABC, e estava lá no Incra na parte de conflitos”. Aí um ano mais ou menos depois a gente estava em Itaici na fundação da Consulta Popular, o João Pedro faz uma reunião da direção nacional do movimento e me chama: “trouxe o Luis Fernando aqui porque quem alertou a gente para o que eu vou mostrar agora é ele”. Era uma entrevista gravada com o cara, ele que se fazia de negociador, de amigo querendo resolver os problemas, descendo o pau nos Sem Terra, descendo o pau. “A gente já sabia disso há um tempo porque o Luis Fernando tinha passado pra gente”. Essa foi a mais forte, o resto é um secretário de direita que quer que a gente trabalhe de outra forma. Hoje, apesar de eu ser de um governo do Partido dos trabalhadores, partido que eu de certa forma ajudei também a crescer, eu não tenho cargo de comissão e sinto muito a vontade assim porque o que eu recebo é o meu trabalho, então, não tem nada que possa me tirar. E um exemplo belíssimo que o Wellington Mangueira deu também. Ele morava num prédio de quatro andares, sem elevador, simples, modesto. “Secretário, o estado pode pagar um apartamento para o senhor à Beira Mar, é mais conivente com o status”, falou o governador.
Mas ele disse: “muito obrigado, mas o dia que o senhor me exonerar, ou suponhamos que eu fique no seu governo até o fim, o que eu vou dizer para os meus filhos? Agora junta tudo e vamos voltar para o apartamentinho, depois que eles acostumaram com a boa vida da Beira Mar? Eu prefiro não sair, ficar morando nesse mesmo”. Então eu acho que é por aí mesmo, a gente tem que viver com aquilo que a gente ganha porque se não as tentações são grandes demais.
Na experiência que vocês têm lá em Sergipe vocês conseguem estar junto com a população mais pobre ou ainda existe resistência da população à polícia? Há muita propaganda de polícia comunitária, pinta-se uma casa, bota o nome de polícia comunitária, bota o policial, a viatura e diz que é polícia comunitária, mas policia comunitária não é isso. Na época também do Wellington Mangueira tivemos também uma experiência fantástica no Bairro América, que é um bairro que tinha um alto índice de criminalidade, de morte, gangues que se enfrentavam. Instalaram a polícia comunitária ali como um projeto piloto, houve uma redução de 90% de criminalidade e passou-se 500 dias sem um homicídio, mas ali se fazia polícia comunitária como é e deve ser feita.
Houve um movimento nos anos 70 e 80, nos Estados Unidos, mas basicamente em Nova York chamado programa de Tolerância Zero, que prega que qualquer o delito, menor que seja, deve ser combatido de imediato, ou seja, tolerância zero. Com isso houve um aumento na repressão e uma grande diminuição na prevenção, um aumento muito grande na compra de armamentos e viaturas em detrimento do policiamento a pé, de duplas, isso não é a toa.
Quem acha que isso é modernidade como foi pregado com tantas viaturas, capacidade de reação, armamento, isso é afastar a policia da comunidade. Policiamento comunitário distribui poder. Você imagina que tem cem homens, com eles faz o que quiser: comanda para cá, para lá, vai, volta, sobe e desce, quando você distribui essas pessoas para o policiamento comunitário você tem reuniões com a comunidade, o policial presta contas do que faz, a comunidade cobra, eles juntos avaliam o local, entende-se segurança pública como deve ser entendida. A policia é um aspecto da segurança pública, uma lâmpada queimada é um problema de segurança pública, um terreno baldio, cheio de mato é um problema de segurança pública, uma rua esburacada é um problema de segurança pública, e aí a comunidade e a polícia começam a interagir. A comunidade ganha força porque comunidade é voto, voto é poder, e se está organizada juntamente com a polícia, aquela policia ali é parceira, se é parceira não pode ser repressora daquela comunidade. Vai fazer repressão pontual: “fulano de tal matou beltrano? Tá preso”. Leva, não é cumplicidade e conluio para coisas erradas, é parceria com pessoas certas. E a grande maioria do povo brasileiro, a esmagadora maioria é de trabalhadores e pessoas certas.
Só que poder é soma zero, para eu ganhar poder você tem que perder, e aí a elite perde. A elite através de seus representantes, que são a classe política de um modo geral, perde poder. Imagine, você convive com ela a vida toda, você é policial, ela uma cidadã comum, se amanhã ela se tornar uma ameaça ideológica você não vai reprimí-la, você conhece, você sabe que ela é uma pessoa boa, aí vão inventar que ela estava vendendo maconha, cocaína, “Nada disso, ela não faz isso”. Então quando você reconhece, você cria um grau de cumplicidade boa, parceria, e com isso o estado enquanto governo perde poder.
Você consegue contaminar, no bom sentido, os seus colegas com suas idéias? Devargazinho, aos poucos, com paciência, não é fácil, como eu falei, a formação é uma formação deformante. A gente tem trabalhado para isso.
Tem algum trabalho de formação que vocês realizam por fora? Não, dentro da PM tem um curso de gerenciamento e que a gente leva os policiais nos assentamentos e acampamentos para conhecer. Eu volto a insistir que as pessoas precisam se conhecer. No começo desse ano eu mandei um email para o João Pedro Stedile falando que queria fazer um encontro de policiais e trabalhadores dos movimentos sociais. Ele falou: “tá louco, é?” Eu falei: “tô, veja aí que dia você pode vir”. Aí ele me deu uma janela de tempo que ele poderia ir, eu programei, levei ele, a professora Adelaide Gonçalves, da Universidade Federal do Ceará, o José Moroni, que é de Brasília, da Abong, e uma jornalista daqui que já foi do movimento, a Débora Lerrer. Montamos uma manhã com palestras, e a tarde oficinas em que iam discutir misturados policiais e militantes dos movimentos sociais o que foi falado. Eu só fiz a abertura e disse o seguinte: “se no final do dia a gente sair daqui se odiando, pelo menos a gente se conheceu para se odiar, pelo menos nós vamos ter um conceito e não um preconceito” E no final do dia quando João Pedro tomou conhecimento do formato da coisa, ele disse: “caramba, não é que deu certo?” E foi muito bom, o policial militar porque ele é muito reprimido na estrutura hierárquica, ele engole muito, muito calado, e quando ele tem oportunidade de falar, você vê declarações riquíssimas. Da mesma forma quando a gente faz esses cursos que levam os policiais para um assentamento, acampamento, que o cara ta lá debaixo de uma lona preta com feijãozinho dele nos tijolos de lenha, plantando sua comida, que é pouca e ele pega essa comida e oferece para o policial, oferece um café, oferece um peixe quando é perto do rio, ele percebe que a solidariedade é daqueles que menos tem.
Quando ele sai dali e vai para um assentamento e vê aquelas pessoas que já estiveram num barraco de lona agora em uma casa se alvenaria, vê um bom assentamento como o Simão Dias, no interior de Sergipe, que teve um recorde de produção de abóbora no Nordeste, esse ano vai ter safra recorde de milho e que o assentamento tem hoje 39 tratores, que não só servem ao assentamento, mas se deslocam para outros assentamentos, para pessoas que são mais pobres, mais necessitadas e estão na luta ainda, ele começa a compreender essa solidariedade. Aí um lembra que o pai dele era agricultor, que o irmão ainda está na roça, que ele mesmo já esteve na roça. O que é da cidade conhece uma realidade que ele não conhecia, aí senta, bate o papo numa roda de sem terras e policiais, canta-se a canção da Polícia Militar, o hino do Movimento Sem Terra, toma uma cervejinha no final da tarde e todo mundo volta para casa com a impressão um pouquinho modificada.
Esse contato, como são policiais que trabalham no interior vai prosseguir de outra forma, é o Gean, não é mais o Sem Terra, é o Luis Fernando, não é mais o policial apenas, a gente se reconhece. O Gean é trabalhador, não vai chegar um cara e falar assim “esse aqui é um vagabundo” e o policial vai acreditar. “Não, o Gean eu conheço, não vem não que ele é trabalhador. Gean, o que aconteceu?”. E se eu conheço você e conheço o policial, eu sei onde é que está a verdade. A resistência dos movimentos sociais com relação a polícia lá em Sergipe, então, também tem diminuído nesse processo? O MST, por exemplo, tem desenvolvido uma confiança, o João Pedro Stedile confia em você? O João Pedro Stedile é um parceiro, um companheiro. Uma vez recebi pelo correio um livro dele que me emocionou profundamente, e eu guardo isso como uma das coisas mais valorosas que eu tenho. Escreveu “ao camarada Luis Fernando, companheiro de luta, poeta dos sem-terra”, que eu fiz umas poesias para o movimento, “e consciente como todo brasileiro deveria ser”. João Pedro é uma pessoa de importância fundamental na minha vida, na minha melhora como ser humano. Me ensinou muito e me ensina até hoje, é chato, meio mandão, mas é uma pessoa de capacidade intelectual e humana, que abandonou a vida, os filhos para se dedicar a um país, ao povo. Uma vez fomos para a secretaria nacional do movimento, que ia ter uma conversa com o Paulo Wannuchi, que tinha recentemente assumido a Secretaria especial de Direitos Humanos. Estava ele, os dirigentes, na saída ele foi me levar num bar onde eu ia encontrar um amigo, e fomos conversando. Ele conversou sobre o filho do João Daniel, que é um dos líderes principais de Sergipe. Aquele menino pequenino, participando das reuniões desde cedo. Aí ele falou: “é, acho que pra gente vai sobrar só os netos mesmo, porque os filhos a gente nem viu crescer”. E é isso, a luta não é fácil. E a base do MST, como é a relação? A base do movimento é maravilhosa, é muito melhor do que os dirigentes. A base te olha no olho, te conhece e te reconhece. As pessoas humildes, elas podem ser qualquer coisa, menos burras. Principalmente os homens do campo, calejados, se você olhar nos olhos e conversar eles sabem quem você é.
Eu me dou melhor com a base do que a direção do MST no Sergipe. Com a direção de vez em quando tem uns arranca rabo porque eu discordo de algumas coisas, de algumas posturas, eles também discordam de algumas posturas minhas. Alguns setores da esquerda olhavam isso com profunda desconfiança, fizeram até umas sacanagens comigo. Umas alas mais radicais dentro do partido achavam aquilo um absurdo. “ah, o cara é conciliador”. A conciliação pode ser algo terrível no processo de revolução, de conquista, mas conciliação para quem toma pancada da polícia, é uma maravilha. Vá perguntar o que o Sem Terra prefere. E qual o movimento que cresce com pancada? Apanha hoje, apanha amanhã, de vez em quando é até bom para dar uma selecionada. Mas veja bem, não estou falando que pancada seja uma coisa boa, eu estou dizendo que o confronto, o embate, seleciona valores, seleciona pessoas de coragem. Você sabe quem é quem, mas quem sobrevive só na pancada? Como é essa negociação? Nunca cheguei em uma negociação para dizer “faça isso”, ou “faça aquilo”. Tem uma ordem judicial que temos que procurar cumprir da melhor maneira possível, vou atrás do Incra, atrás do juiz para ganhar prazo, secretaria de ação social, secretaria de agricultura, vou buscar soluções, porque tem que sair, é ordem judicial e a gente não tem correlação de forças para dizer: “não cumpre e pronto, ganhamos o país”. Temos que cumprir, mas tem que ver de que forma. Agora, a decisão de enfrentamento não pode ser minha, vou buscar sempre a paz e a saída pacífica. O movimento é maduro, vivido, experimentado, para escolher seus caminhos, saber a hora de avançar e de recuar, não sou eu que vou dizer isso. O que eu quero é que enquanto a policia não tem consciência de que é parte da classe trabalhadora, pelo menos deixe que eu vá na frente e busque uma outra saída que não seja o conflito. Última pergunta. Qual sua opinião sobre a legalização das drogas? Sou a favor da descriminalização, em primeiro lugar. Que o Estado fiscalize e trate isso. Que enxergue e trate o usuário como um problema de saúde, e não de segurança publica. Que a pessoa maior de idade possa ir à farmácia com o receituário azul e comprar sua cocaína e cheirar em sua casa se quiser. Que isso aí gere estatísticas para a gente saber o que realmente acontece em termos de consumo de drogas no país. E isso gere recursos para que se invista no tratamento de dependentes químicos. Tenham a certeza absoluta de que isso não vai acontecer porque tem muita gente grande interessada para que isso não aconteça.
Hoje, o Afeganistão, por exemplo, que vocês sabem muito bem a história recente, após 11 de setembro, 51% da economia do Afeganistão vem da plantação de Papoula para extração de ópio. E já estão fazendo intercambio de cocaína com heroína pelo mundo afora. Os Estados Unidos é o país que mais investe em repressão ao uso de drogas, e o percentual de drogas apreendidas nos EUA é 10% do que entra, é reprimir? É para acabar? Vamos falar sério, né? Vá investigar algumas transações. O que eu acho mais importante com a descriminalização é que você afasta o consumidor do traficante. Em Juiz de Fora houve um carnaval em que tiraram a maconha do mercado e colocaram a cocaína barata, você imagina cinco dias, o pessoal metendo o nariz na farinha, quantos viciados isso gerou ao fim do carnaval? Antes o cara só fumava a maconha dele, ficava doidão. Tem que se desmistificar muito, policial já chegou para mim e disse: “ o cara matou o outro, devia estar maconhado”.
Eu falei: “ou, para de falar besteira, vai saber como é o negócio, vai estudar, maconha dá duas coisas: sono e fome, e um deliriozinho, um barato, só”. Álcool é terrível e é legalizado, por quê? Porque gera dinheiro, a outra gera também, um dinheiro mais fácil que não paga imposto, mas volto a dizer: onde é que estão os caras que fazem o intercâmbio internacional? Não sei se Fernandinho Beira Mar fala nem inglês, quem dirá holandês e outras línguas.
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