Para iniciar a discussão, trechos do filme A Negação do Brasil, de Joel Zito Araújo. Na cena, um ator branco que teve o rosto pintado de preto e o nariz enxertado com algodão para viver um protagonista negro. A mesa Os mitos fundadores do povo brasileiro: Gilberto Freire, Caio Prado, Sérgio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro, durante o 14º Curso anual do NPC contou com os convidados Joel Zito Araújo, Virgínia Fontes e Mário Maestri. Após o debate, Mario Maestri, professor da Universidade Federal de Passo Fundo, conversou com os jornalistas do NPC.
Durante a mesa, o senhor disse que os meios de comunicação acabam reproduzindo o discurso que vem de outros segmentos da sociedade. Como é que essa relação se dá?
A mídia desempenha hoje o mesmo papel que a Igreja desempenhava no passado, nos séculos XVII e XIX. O grande veículo de notícia, de informação e de conformação das idéias era o padre no sermão, nos confessionários. As pessoas se reuniam no domingo e recebiam essa mensagem unificada. Que era, logicamente, das classes dominantes, das classes proprietárias. A igreja aqui no Brasil sempre foi o veículo da opressão dos trabalhadores escravizados, da destruição dos nativos. Essa função, durante um certo tempo, foi ocupada fortemente pela escola, sobretudo a escola primária no começo do século XX. Ela assume um papel na construção do consenso social muito grande. A escola se esparrama pelo Brasil, sobretudo nos centros urbanos, mas penetra no meio rural e a classe dominante consegue passar uma mensagem unificada através da escola. O professor, nesse momento, era a pessoa que sabia um pouquinho mais e recebia o manual escolar. Praticamente lia esse manual, criando esse consenso amigo da idéia.
É claro que a polícia depois seguia com o elemento de coerção física. A seguir, as escolas de segundo grau, que antes eram privilégio das elites, se generalizaram. Mesmo devido à necessidade do desenvolvimento do capitalismo. Hoje, a produção, comércio e serviço necessitam de trabalhadores mais conscientes. Na própria universidade há uma generalização, que leva que as classes dominantes tenham dificuldade em controlar todo esse processo. Mesmo porque o custo seria muito grande. E esse próprio controle perde muito sentido, já que a mídia assume o partido de conformação do pensamento da ideologia das visões do mundo da população.
É por isso que o capital controla e defende com unhas e dentes a propriedade privada sobre os meios de divulgação, identificando a propriedade privada sobre os meios de divulgação como vetor de liberdade. O que, na realidade, é o contrário. Por que uma família, proprietária da Veja ou do Globo, por exemplo, tem direito de impor a sua forma de pensar sobre toda a comunidade? É através desses veículos que conseguiram uma abrangência impressionante que se produz o consenso. Nós somos produto desse consenso, já que ele se constrói a partir de uma multiplicidade de veículos: a televisão, o rádio – extremamente poderoso -, o jornal- em queda relativa -, a internet em crescimento absoluto. A internet foi quase uma surpresa, e não se conseguiu ainda criar elementos de controle sobre ela. É ainda um espaço de liberdade relativa, mas que o mundo do trabalho tem utilizado muito pouco. Então, esses são os grandes veículos que depois se desdobram. A publicidade é alimentada por esse elemento. E hoje essa grande mídia faz o papel geral, porque é ela que alimenta esses setores que antes fabricavam os consensos. A mídia controla e determina a forma de pensar dos professores, dos sacerdotes, de todos os pequenos, médios e grandes comunicadores. Então, hoje, a grande mídia é o parafuso central da construção desse consenso, que corresponde aos valores e à organização de uma sociedade exploradora e capitalista.
Você pode considerar essa produção de consenso como uma vitória desses grandes meios na disputa por uma memória? É lógico, é uma vitória substancial. Nós no Brasil - isso é mais forte no Brasil do que outras regiões - somos afogados por essa vitória. Como o companheiro colocou, nos afasta dos valores do mundo do trabalho, como solidariedade, humanidade, fraternidade, anti-racismo, anti-sexismo. Esses valores da humanidade, da vida intelectual e do trabalho são desqualificados e trocados pela mercadoria, pelo prazer, pelo consumo, pelo individualismo, pelo enriquecimento. Ou seja: para os valores próprios e necessários para uma organização melhor da reprodução do capital, onde os indivíduos não se articulam como elementos fraternais, mas sim como meros produtores e consumidores.
E como a esquerda, os movimentos sociais, a mídia alternativa disputam essa memória? Esse é um problema extremamente complicado. Porque a única possibilidade de construir a contra-hegemonia é se apoiar na construção de uma contra-hegemonia dos trabalhadores. Logicamente, uma mídia transformadora só pode nascer do forte movimento dos trabalhadores. Através desses meios eles poderão expressar os valores dessa sociedade, que devem ser provados, questionados e comprovados no mundo do trabalho, no mundo da realidade concreta. No mundo daqueles que vivem do seu trabalho e não querem e nem podem viver da exploração dos outros. O grande problema é não ter uma autonomia ideológica.
Podemos perceber o crescimento dos movimentos sociais, com a criação de formas de comunicação alternativas. Por que então eles não conseguem pautar a grande mídia, que cria fatos irreais desses próprios movimentos? Eu acho que os movimentos sociais não estão com tudo isso aqui no Brasil. Pelo contrário. Estamos com dificuldade de construir movimentos sociais fortes, articulados, que dêem um combate frontal ao mundo do Capital. Grande parte das direções sociais, partidárias e sindicalistas está cooptada pelo capital, praticamente toda a minha geração foi cooptada. São senadores, deputados, governadores, sindicalistas em um processo que significa uma derrota muito grande dos movimentos. A dificuldade dos movimentos de pautar a realidade leva à dificuldade de pautar a comunicação.
Um exemplo recente. Na Itália, o fascismo está voltando, com muita violência, perseguição a ciganos, assassinatos de africanos, agressão a comunistas. Porém, uma manifestação de oposição na Itália reúne 2 milhões de pessoas. Não significa que vão parar com o movimento, mas conseguiram pautar. No Rio Grande do Sul, a Yeda [Crusius, governadora]cortou o ponto, tirou o projeto da Assembléia. Há quantos anos não fazemos uma grave geral no Brasil? Se é que já fizemos alguma vez. Isso me aterroriza, estamos brigando por cota. Se colocarmos 500 mil estudantes nas ruas, no dia seguinte teria universidade para todos. Porque dinheiro tem. Aí fica a grande discussão, definir que 50% das vagas da universidade federal são para quem vem do colégio publico. Acho que deveriam ser todas, mas enfim, o que custa isso para o Governo? Nada.
Pra mim tudo que aumenta o numero de vagas, aumenta o publico e diminui o privado, é bom. Nós temos que aumentar o numero de gente nas universidades publicas.
O caso do Prouni é na universidade privada...
O movimento das universidades públicas se isolou. Eu dou aula em uma universidade comunitária. A reitoria está nas mãos da direita com votos dos alunos, professores e servidores, em Passo Fundo [RS]. No ponto de vista desses alunos, o Prouni [Programa Universidade Para Todos, do Governo Federal] é positivo ou negativo? Claro que positivo. Não tem que ter universidade particular, comunitária. O ensino deve estar na mão do Estado. Eu digo que sou contra o Prouni, eu quero vagas para as universidades públicas. Quem paga impostos em Passo Fundo tem direito a ter uma universidade publica. Mas ninguém exige, ocupa. Essa é a fragilidade. A cota é a nossa fragilidade.
Vou contar a primeira vez que discutimos cotas. Em 1977, eu estava voltando do exílio. Eu tinha estudado África, ninguém estudava isso no Rio Grande do Sul, estava em uma tese sobre escravidão, militava na Convergência Socialista. Éramos cinco no comitê regional. Havia um cara, o Joãozinho, que sempre chegava atrasado nas reuniões. Eu defendia cotas, porque era contra o racismo, discriminação. Eu estava esperando o Joãozinho chegar na reunião, metalúrgico negro, para ganhar a reunião. Ele disse que era contra as cotas. Eu perguntei por quê? Ele devia ser o primeiro a ser a favor. Ele disse que era filho da Maria lavadeira, o pai tinha largado a mãe. Ele disse que nunca tinha sido discriminado nos clubes da burguesia. Ele dizia que queria universidade para todo mundo, e eu compreendi a questão de classes. A questão de cotas é uma política democrática para a classe média negra. O resto da população negra não vai saber onde está a universidade.
E em relação às cotas para universidade publicas? Na UERJ aqui no Rio isso é vinculado. Eu na realidade acho que deveria ser assim. Isso é muito relativo, porque no Brasil a questão econômica pesa muito. Isso é complicado, porque nós vamos liquidar com a universidade pública. Voltando ao Joãozinho. Você acha que o problema do Brasil é a questão da cor ou da classe?Óbvio que no Brasil a opressão está ligada à classe. O racismo no Brasil é criado pela opressão da classe. O trabalhador negro quando se apresenta para trabalhar já vai com fragilidade, o que dificulta a negociação com o capital. Nós temos um proletariado negro, o trabalhador branco tem que lutar contra o racismo por interesse próprio. Sempre é um projeto do capitalismo.
Como se luta contra o preconceito? Tem que acabar com o capital. A luta contra o capital é uma luta contra o preconceito, contra o racismo. Não podemos deixar nenhum milímetro que seja do racismo, nem as propostas de racialização da sociedade. É uma luta frontal contra o capital. A unificação do mundo do trabalho, o trabalhador não tem cor.
Mas ainda hoje os trabalhadores não conseguem emprego porque são negros. Como lutar contra isso? Falta mobilização? Lógico! Colocar esse governo contra a parede para criar frentes de trabalho. Mas como fica? Vamos lutar para tirar parte dos que estão empregados, e dar para negros. O que constrói isso? Isso não resolve a vida da grande massa, e ainda cria elemento racista na nossa sociedade. Agora vamos colocar um milhão de pessoas na rua, pedindo postos de trabalho.
E de onde vem a nossa falta de mobilização? Eu acho que nossa dificuldade vem da escravidão, mas é uma coisa muito complicada. Eu estava trabalhando com o pessoal do Maranhão. O que tem a ver o Maranhão com o Rio, o Rio Grande do Sul? Nada. Qual a única identidade que nós tínhamos no século XIX? A escravidão. Porque os senhores escravistas não brigavam entre eles. Nós nascemos em um país continente, mas somos uma multiplicidade de estados, muito diferentes juntos. E temos a experiência da escravidão. A escravidão é o elemento central do mundo do trabalho no Brasil. O escravo era um elemento muito frágil socialmente. Saiu muito frágil da escravidão.
Para vocês verem, em 1871, na França, os operários estavam assaltando o poder, em 1871 no Brasil, o máximo que nós tínhamos conseguido era a abolição do ventre livre. O proprietário ainda era considerado como uma propriedade do capitalista. Uma das grandes fragilidades nossas é que não tivemos sociedade camponesa no Brasil, o nosso campesinato é extremamente frágil, a escravidão é o elemento referencial. E na escravidão, a família era frágil, as pessoas não tinham família, a cultura era lá em baixo. O pessoal trabalhava 16 horas por dia, essa era a experiência real do mundo da escravidão.
A grande contribuição dos escravos no Brasil não foi a comida, não foi o carnaval, foi o trabalho, construíram esse Brasil. Tudo isso enfraquece muito, os portugueses tem 700 anos de liberdade no mundo do trabalho, nós temos cento e poucos anos, há cento e poucos anos nem a classe trabalhadora era unificada, alguns eram livres e outros escravizados. Então, para vocês verem nossa fragilidade e tudo isso nós temos que vencer, temos que considerar. E eu digo para vocês que quando eu entrei na esquerda a coisa estava muito mais simples do que hoje. A esquerda não conseguiu fazer nada, nós só apanhamos, nunca estivemos nem próximos de poder nenhum e quando chegamos nos compram.