Entrevistas
A TV e a negação do Brasil
Entrevista com Joel Zito Araújo Formação: Doutor em Comunicação pela ECA/USP. Cineasta e roteirista. Obra: Realizou a partir de 1984, 24 documentários e 22 médias metragens. Em 2000, dirigiu o documentário A negação do Brasil, sobre a participação de atores negros na televisão, lançado também em livro, pela Editora Senac (São Paulo, 2000). Seu último filme Filhas do Vento... é protagonizado pelas atrizes Ruth de Souza, Léa Garcia, Thaís Araújo e pelo ator Milton Gonçalves.
Você não pode discutir cidadania se o país não tiver orgulho da sua composição multiética, multirracial, multicultural – esse é um tema muito forte. Outro tema também importante no meu trabalho, e vai estar em A Negação do Brasil, é que eu acho que qualquer trabalho, ele tem de ter um compromisso com a auto-estima, com a valorização do componente racial negro no Brasil. Então, A Negação do Brasil fala dessa contradição de um país que é marcadamente multirracial, em que a cultura negra e a população negra tiveram e têm um papel importantíssimo no jeito de o país ser, na cultura do país, e no entanto, o país na televisão, não só na telenovela, mas também no cinema, está preso a uma estética que é uma estética do branqueamento. -------------------------------------------------------------------------------- Entrevista com Joel Zito Araújo. Salto – Joel, a respeito desse livro-filme: A Negação do Brasil. Primeiro, eu queria lhe perguntar: o que surgiu primeiro – o livro ou o filme? Joel – Primeiro foi o filme, depois o livro. Salto – Então, primeiro você gravou, depois você escreveu. Como é que surgiu essa idéia? Podemos observar que o livro e o filme têm essa dinâmica de mostrar um período longo do desenvolvimento da cultura brasileira, dos anos 60 aos anos 90, e abordam, principalmente, essa não identidade do brasileiro na tela. Como é que surgiu, para você, a necessidade de mostrar isso? A idéia partiu de que ponto? Joel – Eu tenho uma carreira de cineasta de cerca de 18 anos e tenho optado pela questão racial desde 1988. Acho que é um tema tabu, um tema que a sociedade brasileira precisa discutir, precisa debater, então esse é o tema de todos os meus artigos e do meu livro e é o tema da maior parte dos meus documentários e do meu filme agora, As Filhas do Vento. A idéia, especificamente, de A Negação do Brasil, que trata a história do negro na telenovela brasileira, veio de uma bolsa que eu ganhei em 1994, de uma fundação norte-americana, chamada McCartney Foundation. Ela me possibilitou pesquisar, nos Estados Unidos, a história do negro no cinema, na televisão, em 1994. E lá eu conheci um trabalho de um documentarista que morreu no final dos anos 80, ele fez um belo documentário sobre a história do negro na televisão norte-americana. No dia em que vi esse documentário, eu falei: “Nunca me passou pela idéia que é uma boa forma de refletir as relações raciais no Brasil, pegando a forma como o negro é representado na televisão”. Então, voltei dos Estados Unidos, no final de 1994, com esse projeto de fazer uma coisa parecida. Só que quando comecei a pesquisar, senti que a melhor forma de discutir seria pegar aquilo que é paixão nacional, ou seja, uma das grandes paixões nacionais do país, além do futebol, que é a telenovela. Eu achei que fazer um documentário sobre toda a história da televisão era amplo demais, a telenovela me daria o material suficiente para isso. Então, começa daí e continua com essa intenção, quer dizer, para quem conhece meus outros trabalhos, eu tenho uma preferência por discutir a mídia e o papel da mídia nas relações raciais no Brasil. Especialmente A Negação do Brasil tem a ver com isso, o filme trabalha alguns conceitos que são muito importantes para mim, que eu acho fundamentais. Eu acho que o Brasil tem muita vergonha do seu componente racial, não branco, especialmente dos negros e dos índios; ou seja, o Brasil tem dificuldade de se ver como uma sociedade multirracial. Então, uma das ênfases do meu trabalho é a de promover e de discutir a realidade do país, inclusive. Você não pode discutir cidadania se o país não tiver orgulho da sua composição multiética, multirracial, multicultural – esse é um tema muito forte. Outro tema também importante no meu trabalho, e vai estar em A Negação do Brasil, é que eu acho que qualquer trabalho, ele tem de ter um compromisso com a auto-estima, com a valorização do componente racial negro no Brasil. Então, A Negação do Brasil fala dessa contradição de um país que é marcadamente multirracial, em que a cultura negra e a população negra tiveram e têm um papel importantíssimo no jeito de o país ser, na cultura do país, e no entanto, o país na televisão, não só na telenovela, mas também no cinema, está preso a uma estética que é uma estética do branqueamento. Quer dizer, nós amamos o branco, as apresentadoras dos programas infantis são louras, a maior parte dos apresentadores de telejornal são brancos, enfim, o país acha que ser Primeiro Mundo é ser branco. Eu normalmente brinco que nós estamos no atraso, porque a Paris onde essa estética televisiva se inspira é uma Paris do século XIX, porque a Paris de hoje é multirracial. Nova York também é multirracial, quer dizer, a televisão norte-americana e o cinema norte-americano, que é um cinema de sucesso em nível mundial, é multirracial. No entanto, a estética da nossa telenovela e de nosso cinema continua sendo unirracial, continua sendo a valorização do branco, de tomar o branco como modelo de humanidade, como modelo de referência para todo mundo. E esse título A Negação do Brasil significa que nós estamos negando aquilo que devia ser o nosso objeto de maior orgulho, que é exatamente o fato de a gente ser um país multirracial. Salto – Agora, dentro dessa ideologia que você fala do branqueamento e até do desejo de euro-norte-americanização das elites, você, quando pesquisou o tema, e se fincou na telenovela, procurou só se reportar ao negro quando ele teve papel subalterno, ou quando ele não teve acesso aqui e ali, e em alguns momentos em que os personagens eram negros e atores brancos eram escalados. Você só se reportou a isso, ou você procurou identificar por que aquilo era direcionado dessa maneira, ou seja de onde surgia essa política de branqueamento cultural? Era da elite que decidia televisão? Tinha resposta de público? Era o público que não conseguia ver o negro numa posição social superior àquela em que sempre foi mostrado? Você tentou fazer uma análise sobre esse aspecto? Joel – A ideologia do branqueamento, ela foi política de Estado no Brasil, no final do século XIX. O governo brasileiro, ele proibiu a entrada de imigrantes vindos da África, vindos da Ásia e fez campanhas na Europa. Nesse sentido, iludiu, inclusive, trabalhadores italianos, prometendo coisas que aqui não foram dadas a eles, para que eles viessem para o Brasil, com intenção deliberada de “branquear”. Um representante do governo brasileiro, no início do século passado, no início do século XX, chamado Oliveira Viana, foi num congresso na Europa falar que no Brasil, graças a Deus, em 100 anos, devido a essa política oficial do governo brasileiro, não haveria mais negros. Então, foi uma política de Estado que veio até Getúlio Vargas. Getúlio Vargas manteve esse tipo de proibição em 1940. Ela deixou de ser obviamente uma política de Estado, mas essa coisa se tornou um elemento cultural, um elemento inconsciente no Brasil, então negros e brancos no Brasil, inconscientemente, partilham essa visão de que o belo, o culto, o desejável, o ser moderno, o ser Primeiro Mundo, é ser branco. Enfim, essa coisa está presente na cultura brasileira. Obviamente, parcelas e mais parcelas de afro-brasileiros têm descoberto o quanto isso é prejudicial a si mesmas e ao país, e mesmo intelectuais e artistas brancos também percebem isso. São ondas e ondas que vão crescendo, criticando esse tipo de coisa, mas eu acho que na América Latina, isso não é uma posição isolada do Brasil; a colonização, tanto portuguesa quanto espanhola, impôs esse tipo de divisão, essa visão de promoção do branqueamento. Na minha pesquisa, que deu origem ao filme e ao livro, eu comecei a pensar e comecei a discutir porque nenhum dos autores de televisão, porque que nenhum dos diretores defendiam, abertamente, a incorporação do negro de forma subalterna. Eles falavam: — “Não, isso acontece por acaso”. Isso era o que diziam até mesmo aqueles autores que mais deram papéis para atores negros, autores e diretores. Por exemplo, Herval Rossano é uma pessoa que, ao mesmo tempo, em A escrava Isaura, escolheu uma branca para fazer o papel da escrava negra Isaura. Ele faz uma leitura, junto com Gilberto Braga, da escrava Isaura tal qual era o romance, no século XIX, ele traduziu o romance de uma forma literal. Porque, no século XIX, o autor, Bernardo Guimarães, quando pensou na escrava Isaura, ele queria fugir do estereótipo da mulata sedutora, da mulata que destrói os lares. Então, ele tentou trazer traços de branqueamento, de pureza, enfim, esse tipo de coisa que era muito comum como estereótipo para convencer as pessoas o quanto era errada a escravidão. Mas só que ele fez em um outro contexto, em que o público leitor era branco. Joel – (...) Enfim, quando eu levantei todos esses dados, pensei no porquê de essa televisão não respeitar essa demanda, cada vez mais presente por parte da população negra, de ver papéis positivos de negros. Pois, se a televisão está preocupada com o consumidor, por que ela não respeita a existência de cerca de 5 milhões de consumidores de classe média negra? O que é que está por trás? Será que é o racismo? Eu acho que não existe nenhuma deliberação entre aqueles que produzem telenovela, entre aqueles que produzem comercial, uma deliberação que diga “olha só pode ter 10% de papéis para atores negros nas telenovelas e desses 10%, 8% devem ser dedicados à empregada doméstica ou ao motorista”. Acho que não existe essa deliberação. Na verdade, o que está por trás de tudo isso é essa política oficial de governo, criada há mais de 100 anos, que virou um elemento de cultura, virou um elemento inconsciente. Esses produtores estão seguros de que a população brasileira acha que o belo é ser branco, portanto, colocar pessoas negras, bonitas, sabe, é uma coisa irreal. Bem, então daí veio essa discussão, que eu trago no meu filme, contra esse tipo de estética do branqueamento, porque eu acho que é um elemento inconsciente da cultura brasileira. Salto – Disso que você está falando aí, tem um trecho aqui que eu acho interessante, até uma dúvida. O livro fala da 1ª família de classe média negra na TV, em 1969, na novela Vidas em Conflito, apresentando o Zózimo Bulbul, Natália Thimberg, Leila Diniz. Mas aos poucos o enredo foi alterado, e principalmente o enredo que envolvia os personagens negros. Por que houve essa alteração? Joel – É, o autor confessou que houve alteração por dois motivos: por pressão dos patrocinadores e por pressão do público que assistia à novela, ou seja, eu acho que a gente continua tendo coisas parecidas. Eu acho que o público mudou muito. A Próxima Vítima é um exemplo não só da aceitação como do encanto que o público teve com uma família negra de classe média na telenovela. Aquela família, com aqueles atores, teve enorme retorno de audiência, no entanto, depois daquilo nunca mais apareceu uma família negra de classe média na telenovela, e essa é uma grande curiosidade, para todos nós. Na publicidade também temos uma situação difícil. Agora, por exemplo, no Dia das Mães: não se vê, na publicidade, nenhuma mãe negra recebendo presentes de filhos negros. Enfim, essa coisa parece estranha para todos nós. E o negro é um consumidor no Brasil. Enfim, embora a população negra seja majoritariamente pobre, ela consome sabonete, ela consome perfume, consome sorvetes e consome uma série de presentes. Então, essa questão diz respeito ao lado do patrocinador, ao lado do produtor, e também à audiência. Eu acho que a televisão começa a se chocar com a audiência. No passado, acho que a audiência, se eu for pensar nos anos 70, se eu for pensar nos anos 60, eu acho que a audiência nem sempre questionava essa representação dos brasileiros como todos brancos. Mas hoje eu acho que existe uma contradição muito forte que tem que ser superada. Salto – Então, você classificaria A Próxima Vítima como um grande salto para a televisão? Joel – Não foi o salto pela história, uma vez que já tinha aparecido família negra de classe média antes na televisão, poucas mas apareceram. Foi um salto no sentido de observar uma mudança na audiência, além de uma aceitação, um encanto de ver uma família de classe média negra, ele é um indicador de que o imaginário e a mentalidade dos brasileiros mudaram, nesse sentido. Salto – Gostaria de que você abordasse mais sobre a televisão brasileira. O brasileiro não se vê representado na televisão brasileira, na sua opinião? Joel – No meu ponto de vista, a televisão brasileira, ela está num retrocesso, ela está com temor de ousar. Por exemplo, eu acho que a Rede Globo nos anos 70, quando ela conseguiu ser líder de audiência ultrapassando a TV Tupi, isso se deveu muito à ousadia da Rede Globo. A Rede Globo foi mudando um tipo de programação mais popularesca, começando a investir em minisséries, em telenovelas mais inovadoras, com autores que tinham coragem de ousar, haja vista O Bem Amado, novelas interessantes da Janete Clair, como por exemplo Pecado Capital que, naquela época, colocou um psiquiatra negro. Enfim, teve várias ousadias do ponto de vista da Rede Globo, naquele período. Agora eu acho que a televisão, como um todo, hoje, ela é muito conservadora, ela está muito mais repetindo fórmulas e só quer apostar naquilo em que ela tem segurança de audiência. E isso acaba sendo uma loucura, porque a audiência está caindo, a audiência de tudo isso, porque é tudo fórmula repetida. Então, acho que existe um descompasso cultural entre a dramaturgia e essas fórmulas com a população. Eles têm apostado naquilo que é extremamente popularesco, de mau gosto. Enfim, a televisão perde o compromisso com o lado da educação, com a promoção de valores culturais interessantes e inovadores. Ela quer investir muito mais em um modelo de programa apostando numa visão policialesca bárbara do que investir em alguma coisa que leve a uma reflexão sobre isso e que leve ao avanço da mentalidade do brasileiro. Então, acho que essa é a grande contradição da televisão hoje, ela não quer trazer coisas novas, ela não quer ousar, ela não quer arriscar. Bem, e a outra contradição muito grande é que a televisão é profundamente desrespeitosa com um componente racial não branco da população brasileira, em especial da maioria negra e indígena, porque ela não promove nada... Aqui eu estou falando em termos absolutos obviamente, que tem uma coisa aqui, ali e acolá, o próprio interesse do programa de vocês em me convidar para falar sobre isso mostra uma atitude diferente. Mas, como regra, a televisão desrespeita o desejo do componente racial negro, que é muito grande, e também do componente racial indígena, de ver coisas positivas sobre si mesmos. Então, eu acho que essa falta de apostas é que está levando a essa decadência profunda da televisão brasileira, no momento atual. Salto - Nesse “popularesco” da TV, que são os que recebem uma maior fatia publicitária, vez por outra, ou quase sempre, é o negro que está por trás da violência. Mas nos “Big Brothers Brasil”, o negro começa a aparecer. No popularesco que explora a violência, o negro está como réu, como diabo, e no Big Brother o negro já é apresentado forte, bonito. Talvez esse seja um movimento muito incipiente de jogar o negro no horário nobre nessa postura não serviçal. Joel- É óbvio que comparando a forma como o negro é colocado no Big Brother, ela é muito mais positiva do que num programa popularesco, em que normalmente os apresentadores se portam como advogados de acusação, assim sem nenhum compromisso, condenando na primeira fala. E aí é a população mais pobre de maioria negra que é condenada abruptamente nesse tipo de programa, enquanto que com o Big Brother explora-se mais essa curiosidade juvenil, nessa fase de passagem para a vida adulta, na fase dos romances, da paquera, da sexualidade. Então, eu diria que, se for pegar por esta faceta, o Big Brother é muito mais positivo para a identidade negra, quer dizer, tem uma certa positividade, enquanto o programa popularesco não tem. Agora, o que acho que é necessário e que a gente tem que explorar mais, é que o Brasil precisa de mais dramaturgia, na televisão, precisa de explorar mais a vivência e histórias positivas da comunidade negra, da comunidade indígena, de outras comunidades. Eu estou falando obviamente que o Brasil, ele é muito mais multirracial e multiétnico do que negro, índio e branco. Você tem uma comunidade árabe muito grande, você tem uma comunidade oriental muito grande. Quer dizer, tudo isso tem que vir à tona na devida proporção, mostrando a diversidade racial no país. Bem, mas eu acho que tem muitas histórias bonitas para contar, eu vou dar um exemplo aqui, saindo da negritude, que é o meu tema predileto. Gaijin, o filme da Tisuka Yamasaki, aliás ela está fazendo o Gaijin II agora, foi um filme de enorme impacto, porque nós tomamos conhecimento do que foi a imigração dos japoneses no Brasil, de como eles chegaram nas fazendas para trabalhar e foram tratados como escravos, a epopéia deles. Foi tão bonito, todo mundo adorou aquele filme, tanto que agora ela está fazendo Gaijin II. Então, eu acho que tem uma série de histórias bonitas que podem ser contadas e que o Brasil vai gostar de ver essas histórias. Acontece que quando se contam histórias de epopéia no Brasil, normalmente é, mais uma vez, a epopéia dos italianos. Aí os portugueses ficam chateados, eles resolveram colocar uns portugueses também, na epopéia dos italianos. Enfim, essa coisa que é muito repetitiva, e mais do que repetitiva, é o empobrecimento das possibilidades culturais. Eu acho que isso é devido a uma série de problemas, um deles é que a televisão no Brasil precisa se reorganizar, se descentralizar. O patrocínio cultural precisa se descentralizar. O outro problema é que a televisão no Brasil tem que estar aberta ao produtor independente, às idéias novas, às visões novas, sair dessa burocracia. Todas as televisões no Brasil funcionam como empresas públicas, ou como feudos familiares. A coisa mais comum é um filho de ator virar ator. Eu não fiz nenhuma estatística, mas a impressão que eu tenho é de que pelo menos 30% a 40% dos novos atores que entram são filhos de atores, quer dizer, é um feudo familiar esse negócio. Porque o nosso modelo não está baseado na produção independente e, dessa forma, deixa de estar baseado na incorporação das novas criatividades que surgem, que saem desse seio acolhedor e pouco fértil para produzir novas idéias sobre o Brasil, novas criações. Então, acho que a crise da televisão e a saída para a renovação cultural do Brasil é a descentralização. Acho que isso cabe ao governo, criar regras de patrocínio que incentivem o aparecimento do novo, que incentivem o aparecimento de novas visões, em que se veja o Brasil de forma multirracial, multiétnica, que se promovam as culturas regionais, que vão além da questão étnica ou racial ou da questão de gênero. Então, é por aí que eu vejo uma nova cultura, um novo florescimento cultural do Brasil, porque senão a gente vai estar nessa estagnação. O cinema está passando por um florescimento cultural, ainda que, de certa forma, ainda atenda a uma visão mais antiga ou a determinados estereótipos da televisão. Por exemplo, Cidade de Deus. Cidade de Deus é um grande sucesso, mas do meu ponto de vista é um filme que consolida na tela, com suas imagens, a visão que a classe média tem das favelas, no Brasil. Então, ali o que você vê é a reafirmação desse medo, parece que na Cidade de Deus, e em todas essas favelas, o narcotráfico é tudo. Mas o narcotráfico é uma parte, a gente tem que ver a outra parte. Na verdade, se a gente quiser sair desse caos que é a violência nas favelas, nós temos que incentivar, nós temos de fazer parcerias com as pessoas de bem da favela que querem sair disso e não demonizar a favela como um todo, que é a sensação que se tem do filme Cidade de Deus. Salto - Do lado dos bastidores, na televisão, faltaria essa visão negra produzindo, gravando. Porque no cinema até tem, mas na televisão a gente não vê isso, assim. Joel – Porque o Paulo Lins se prepara como roteirista. Tem vários autores que estão se preparando, que estão se preparando para serem roteiristas. Joel – A televisão tem que ter olhares étnicos, olhares regionais sobre o Brasil. Por exemplo, uma pessoa que nasce na cultura nordestina, precisa de poder produzir coisas relativas a essa cultura, mostrando a universalidade dessa cultura e a regionalidade. Eu quase são conheço autores de Belém ou de Manaus produzindo televisões, a realidade amazônica é bem distinta da realidade do Sul ou litorânea. Eu acho que a televisão tem que ter espaço para isso. A televisão comercial devia ousar e a televisão pública devia ter verba para boas produções. Eu acho que a televisão hoje passa por uma crise assustadora. O que está acontecendo com a TV Cultura, com a TVE, é uma coisa assustadora: há falta de recursos, de equipamentos, de bons salários e de incorporação de pessoas. O que existe é um certo abandono e um dos papéis da TV Educativa, da TV Cultura era o de ter recursos para incorporar novas visões sobre o Brasil, para incentivar esse tipo de reflexão, agora produzindo com qualidade e não nessa situação precária. Eu, por exemplo, fui uma pessoa que passei uma parte da minha juventude vendo bons programas nas TVs Educativas do Brasil. Hoje eu percebo o empobrecimento, empobrecimento por uma questão de grana mesmo, por um lado. E por outro lado, eu acho que também tem de renovar quadros, tem de incorporar nossos olhares, tem de incorporar jovens e pessoas de meia idade, como eu. Enfim tem que haver uma reflexão racial sobre o Brasil, uma preocupação de valorização do componente racial negro. Eu acho que isso vai ajudar muito na televisão, da mesma forma que eu acho que se deve estar atento para o componente indígena, para outros componentes. Essa é com certeza a possibilidade de um florescimento cultural e de uma renovação da televisão no Brasil. Salto – Para o Salto, numa entrevista, anterior, você disse que era possível educar o olhar. Então, como é possível educar esse olhar de crianças e jovens em relação ao que é mostrado na TV? Joel – Vou dar um exemplo: quando o jovem que mora na favela só vê louras como apresentadoras de programas infantis, ele passa a ter uma idéia de que o sucesso, de que a realização na vida é estar ao lado de uma loura. Então, é natural que, quando ele se torna um jogador de sucesso, ele vai querer casar com uma loura, como exemplo de sucesso, e passa a ter vergonha do seu grupo racial. E pior do que isso, ele quer um rompimento com a favela e não um compromisso de melhorar o lugar em que ele nasceu, o componente racial. Então, era importante que fossem produzidos programas infantis com outros, tipos de apresentadoras, contando histórias... Salto – Vamos continuar falando sobre televisão, teledramaturgia e sobre a necessidade do olhar do negro. Joel – Eu só queria concluir uma coisa. Eu tenho as minhas contribuições, mas sei dos limites, são coisas que eu venho refletindo há um certo tempo, nós precisamos, por exemplo, do ponto de vista educativo, nós precisamos de histórias, de famílias de garotos indígenas que tenham um herói indígena. Assim, como o exemplo do filme Tainá, que é um belo filme. Imagine o impacto do filme Tainá, não sei se vocês chegaram a ver Tainá, Uma Aventura na Selva, a história de uma garotinha de uma tribo que fica amiga de um menino branco e ajuda esse menino em um problema da família dele, que estava sendo perseguida por bandidos e tal. Ela é uma heroína. É uma história de parceria, de amizade, então, imagina o impacto positivo nas crianças indígenas ao ver uma heroína indígena, o quanto aquilo não trouxe de esperanças, não abriu o mundo para jovens garotas, em Belém ou Manaus, inclusive pelo desejo de fazer cinema. Então, essas crianças passam a ver a possibilidade de ter um futuro igual a qualquer um brasileiro comum e não apenas viver na marginalidade. Nós precisamos inovar, precisamos produzir histórias que valorizem essas histórias familiares de outros componentes raciais e regionais que não o branco. Obviamente, o branco também tem que ter o seu direito, a gente só não pode ter essa desproporção absurda que é o Brasil. O Brasil se comporta como se fosse um país que tivesse 98% de brancos e só 2% de negros e índios. Nos Estados Unidos, que de fato tem 11% de população negra, se você vê a televisão norte-americana e o cinema norte-americano, você tem a impressão de que os negros nos Estados Unidos são metade da população, tal a nossa carência de ver coisas parecidas. Então, mais uma vez, eu insisto na importância de valorizar a presença do garoto na sala de aula, desenvolver o gosto de estudar significa possibilitar que os olhos desses garotos e garotas vejam uma imagem positiva de si mesmos e da sua família. Salto – O que você vê na TV? Você gosta de ver televisão? Joel – Eu já vi muita televisão, atualmente eu estou “por aqui” de televisão, eu quase não vejo televisão ultimamente. Eu dou uma olhadinha na novela como é um tema de minha especialidade, para saber como é que as histórias estão se passando, mas me decepciono porque é uma repetição, a cada telenovela é uma repetição muito grande. Então, a rigor, na televisão, eu vejo só telejornal atualmente, acho que a qualidade da programação da televisão no Brasil decaiu profundamente e as TVs Educativas, a TVE e a TV Cultura, onde eu já vi tanta coisa boa, hoje passam por uma crise lamentável, que precisa de socorro urgente.
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