Por Marcos Domich - Membro da
Comissão Política do Partido Comunista da Bolívia.
A prisão do Prefeito do
Departamento de Pando, Leopoldo Fernández, responsável pela morte de dezenas de
pessoas e cerca de uma centena de desaparecidos naquele departamento, se
reafirma o caráter fascista dos separatistas, revela também que o Governo e as
forças sociais e políticas que apóiam o processo de mudanças em curso estão em
condições de derrotar os golpistas, como Marcos Domich demonstra neste texto.
Começa a mãe de todas as batalhas
A situação boliviana, como se
costuma dizer na mídia, é volátil. A opinião pública é sacudida por uma série
de acontecimentos, a maioria caracterizados pelo extravasar da fúria
reacionária, particularmente no Oriente do país. Todos estes acontecimentos –
que em breve farão parte das páginas da convulsa história política boliviana –
não se caracterizam, no entanto, por nenhum traço original. Para dizê-lo em
curtas palavras, mais não são do que episódios do desencadeamento de operações
contra-revolucionárias de inconfundível cunho fascista.
A semana passada, segundo tinha
antecipado, a União Juvenil de Santa de Santa Cruz ocupou uma série de
instalações do governo central. O pretexto para estas ocupações era a execução
dos resultados dos inconstitucionais «estatutos autonômicos». Segunda a
interpretação da direita destes estatutos «todas estas instituições pertenciam
aos povos de Santa Cruz, Beni, Tarija, etc.» e «deviam ser retirados ao governo
centralista» para serem postos «ao serviço do povo» das suas regiões.
Os fatos revelam que essa é, no
mínimo, uma retórica cínica. Quase todas as instalações ocupadas foram
seriamente danificadas. Algumas delas completamente saqueadas e inutilizadas;
alguns edifícios foram literalmente destruídos, como o da Empresa Nacional de
Telecomunicações, em Santa
Cruz. Alguns dos escritórios sofreram saques que denunciam o
seu objetivo. Nas instalações departamentais do Instituto Nacional da Reforma
Agrária, milhares de documentos, processos referentes a terras e resoluções de
entrega de terras às comunidades camponesas e povos originários foram
queimados. Estas ações têm conexão direta com a «reocupação» de prédios
conhecidos como Terras Comunitárias de Origem (TCO). É o caso de Monteverde
(Santa Cruz), propriedade coletiva, recentemente reconhecida como do povo
chiquitano. Não se trata de ninharia. São um milhão de hectares que pretendem
usufruir os latifundiários.
Uma parcimônia suspeita
Chama a atenção o fato de algumas
das ocupações terem sido acompanhadas de agressões a membros da polícia e do
exército que, estranhamente, tiveram uma atitude quase passiva. Deixaram que
soldados, polícias e até coronéis fossem sovados e insultados de modo nunca
visto. Voltaremos ao significado desta passividade.
Os grupos fascistas, identificados
com a cruz dos templários e algumas vezes com a cruz gamada, acentuaram a sua
presença nas ruas, particularmente em
Santa Cruz, dedicando-se a insultar e agredir, por vezes com
inusitada brutalidade, sobretudo pessoas com traços índios. Inclusive humilharam
mais os identificáveis pela sua roupa típica. Ensaiaram razias contra
mercados camponeses (em Tarija) e no «Plano 3.000» (cidade de Santa Cruz).
Nestes casos, as populações reagiram e repeliram com êxito, pela primeira vez,
os esquadrões paramilitares.
Tudo isto é a confirmação da causa
da resistência, do complot e da violência fascista: a defesa dos interesses dos
representantes das transnacionais e latifundiários e a execução dos planos
incentivados e desenhados pela CIA e a embaixada estadunidense.
O Inocultável rosto fascista
O fato mais grave registrou-se dia
11, nas localidades de El Porvenir e Filadélfia, departamento de Pando. Um
importante grupo de camponeses dirigia-se nesse dia a Cobija, capital
departamental, para realizar uma reunião ampla, quando foi interceptado num
ponto do trajeto e acabou atacado a tiro impunemente por empregados da
prefeitura de Pando e, talvez, por sicários estrangeiros. Foram assassinados 17
camponeses e estudantes e feridos mais de quarenta pessoas. Até hoje ainda não
se sabe o número total das vítimas.
O inaudito deste massacre é que
foram vitimadas mulheres e crianças. A estes, antes de os assassinarem,
bateram-lhes e flagelaram-nos. Os cadáveres dos menores não foram até agora
encontrados. Também não podemos omitir que os agressores atiraram sobre alguns
feridos e mataram-nos e outros foram submetidos a torturas, procurando que se
denunciassem a si mesmos como agressores enviados pelo governo. Há relatos de
parentes das vítimas que acusam que até os cadáveres foram violentados. Não é
exagero dizer que o que sucedeu em Pando foi um genocídio.
O governo teve que decretar o
estado de sítio no departamento. A recuperação do aeroporto significou perdas
adicionais de vidas. Franco-atiradores colocados na mata assassinaram um
recruta e um pastor evangélico. Os militares limitaram-se a recuperar o
aeroporto e só muito paulatinamente entraram na cidade, onde a resistência dos
grupos de choque e dos militantes da direita se foi diluindo. Mesmo depois do
estado de sítio, um grupo armado conseguiu passar para o município de
Filadélfia, ateando fogo em muitos prédios.
O Povo resolve organizar-se e lutar
Em alguns círculos militares
comentou-se que as medidas tomadas foram aplicadas muito lentamente, sem
resolução. Isto, imediatamente compreendido pela população, provocou uma grande
efervescência popular. Centenas de milhares de manifestantes, em diversas
assembléias e reuniões, sobretudo nos departamentos do centro e de ocidente,
quase de modo espontâneo, começaram a discutir a organização de destacamentos,
brigadas e outras iniciativas com um sentido muito definido: alistar-se para
defender a integridade nacional, a democracia e a soberania nacional, para
continuar o processo de mudanças progressistas. O tom principal deste ânimo
social é o patriotismo. Lembra o ânimo dos patriotas da independência, como se
tratasse, na verdade, de uma batalha pela segunda (e definitiva) independência
nacional.
Apesar dos fascistas nos terem
habituado a distorcer a verdade, não é demais mencionar que os meios de
comunicação da direita pretendem torcer a verdade dos acontecimentos, a começar
pelo prefeito Fernández. Este não teve mais nada para dizer, a não ser que os
massacrados eram «pseudocamponeses», enviados e armados pelo governo.
Inclusive, apareceu num programa de televisão onde, com uma desfaçatez
indescritível, negou as acusações, praticamente na frente dos sobreviventes.
O separatismo não será fácil
Nos meios diplomáticos e em todo o
mundo teve uma enorme repercussão a resolução do presidente Morales de declarar
persona non grata o embaixador americano Goldeberg. A verdade é que os atos e
movimentos de Goldberg eram há muito tempo, mais do que uma suspeita, uma
evidência. Além da sua participação na conspiração contra Evo Morales,
antecedia-o um extenso rol de outras ações, entre as quais se destacava a sua
ação no Kosovo. É conhecido como um especialista a desmantelar países.
Suspeita-se de todas as suas ações, incluindo ter alguma coisa a ver com o
estatuto «autonômico» de Santa Cruz, que apresenta sugestivas concordâncias com
a constituição política da «república» do Kosovo. A sua expulsão adquiriu a
exata projeção que devia ter, juntamente com a expulsão do embaixador Duddy da
Venezuela. Ao cabo e ao resto, Goldberg não era mais do que uma peça no quadro
conspirativo desenhado pela CIA contra todos os governos progressistas da
América Latina.
Dois objetivos são evidentes: A derrubada dos mandatários ou o
magnicídio destes ou, finalmente, a divisão do país. Zulia na Venezuela,
Guayaquil no Equador e Santa Cruz na Bolívia. Na saída, Goldberg, na sua
declaração à imprensa, pôs especial ênfase no tema do narcotráfico. Há que ter
em conta a referência e o governo de Evo não deve esquecê-la por um momento que
seja.
A alternativa separatista é difícil
de levar à prática. Primeiro, pela própria resistência que gerará nos
departamentos em cisão. O Plano
3.000, em Santa Cruz,
é uma cidadela de uns 400.000 habitantes, onde a resistência ao prefeito Costas
e aos grupos de choque da União Juvenil está a organizar-se e a adquirir a
decisão de se defender e lutar pela sua liberdade e dignidade. Depois, há a
decisão de importantes organizações sindicais e da própria Central Operária
Boliviana (COB) que planeja realizar uma reunião ampla na própria capital de
Santa Cruz, dir-se-ia no olho do furacão. Um verdadeiro desafio que, só com o
seu anúncio, muda positivamente a perspectiva.
O contexto sul-americano
Também o ambiente sul-americano não
é favorável aos sediciosos e separatistas. A reunião de urgência da UNASUR
(União da Nações Sul-americanas), a que assistiram 8 presidentes, foi firme na
rejeição das intenções golpistas ou separatistas. Ressaltam as palavras de
Chávez, comparando a situação boliviana de agora com a que se deu no Chile há
35 anos, quando todos «ficaram mudos» perante a imolação de Salvador Allende,
provocada pela ingerência do imperialismo norte-americano. Chávez, muito
serenamente, disse que a América Latina mudou, já não somos mudos.
A Bolívia é conhecida pela sua
combatividade, pelas tradições da sua classe operária, pela incorporação dos
camponeses e agora também pela presença ativa dos povos indígenas. São
demasiados fatores e um grande empurrão da História que não será fácil os
reacionários superarem. Mas os revolucionários não podem dormir sobre os louros
e o governo abandonar a sua guarda.