Fausto Wolff é um
dos raros colunistas da imprensa brasileira que dignificam a profissão. Em suas
palavras, "vejo o jornalismo com os olhos de quem está no meio-fio da
calçada". Por isso mesmo sempre foi pressionado pelos poderosos de
plantão. Hoje, cada artigo seu no Jornal do Brasil deixa a dúvida sobre a
publicação do seguinte (ele escreve às terças, quintas e domingos), tal a
contundência empregada. O que podemos fazer para exercer a contra-pressão é
escrever para cadernob@jb.com.br e manifestar nosso apoio a este grande
escritor do nosso tempo.
Entrevista
concedida a Mariana Vidal, Thaís Tibiriçá e Marcelo Salles.
Marcelo Salles - Parece que o Ziraldo levou
para o JB o mesmo pessoal que fazia o Pasquim 21.
Eu estou de
relações cortadas com o Ziraldo depois de quase quarenta anos de amizade que
aparentemente tinha mão única. Ia da minha direção a ele. Só posso dizer que
ele é o rei da classe média. Com os nomes que levou para lá - alguns excelentes
e outros para fazer média, o Caderno B seria sempre bom, mas jamais uma
revolução cultural. Embora seja um gênio como artista gráfico, gosta do humor
classe média que não enxerga nada além do seu umbigo e dos modismos do seu
mundo-umbigo. Humor, exatamente por ter mais liberdade, só tem sentido se for
revolucionário e radical, se revelar o que ninguém viu antes. A reação dos
leitores em relação à minha coluna foi uma surpresa para o Ziraldo e um pouco
para mim. A grande imprensa não estava acostumada a um colunista como eu - que
depois de trabalhar em todos os jornais do Rio, foi estigmatizado e permaneceu
trinta anos na imprensa alternativa. Os leitores responderam positivamente -
recebo mais de dez cartas por dia. Depois de uma semana elas passaram a não ser
publicadas até que a seção de cartas passou a funcionar de duas em duas
semanas, se tanto.
Marcelo Salles - Por que você acha que se
tornou o colunista mais comentado do Brasil do dia para a noite?
Do dia para a
noite e mais cinqüenta anos de experiência, errando e tentando, errando e
tentando. Acho que os leitores viram que atrás daquele texto havia um homem,
alguém que comungava de suas dores e alegrias, que paga aluguel, faz dívidas,
joga nos cavalos. Não viram um cagador de regras que vê a vida a partir da
classe-média alta à qual ele pertence e como tal aceita todos os seus modismos.
Eu sou o sujeito que já foi corneado, já sofri perdas irrecuperáveis, já vi a
morte frente a frente, tomei porres famosos, fui amado, já brochei, já estive
na cadeia e, o que é mais importante, tenho uma firme posição
político-ideológica.
Marcelo Salles - Por que você não
trabalhava na grande imprensa?
A grande imprensa
não cumpria a sua parte. Primeiro diziam-me que não havia censura e depois me
censuravam. Quando Sarney entrou para o governo e começou seu desgoverno quis
fingir-se de democrata e convidou alguns jornalistas como Jânio de Freitas e eu
para falarem sobre política. Jânio foi embora quando o programa acabou. Eu
continuei em outro programa, mas era censuradíssimo. Passei a falar sobre
política internacional. Mais censura. Passei a falar sobre literatura. Foi
quando o Collor, psicopata, entrou e mandou que congelassem o meu salário.
Depois de alguns meses, graças à inflação, eu estava ganhando 1 dólar por mês.
Ao entrar alguns anos antes ganhava 1.500 dólares. Continuei trabalhando,
entrei na justiça há mais de dez anos e o processo transitou em julgado. Há dez anos que a
Advocacia Geral da União não paga o meu precatório. Hoje seriam algumas
centenas de milhares de reais. Eu poderia me aposentar e escrever a obra-prima
da literatura universal que só seria reconhecida como tal dentro de duzentos
anos. Trabalhei ainda na Bandeirantes e no Última Hora mas depois de algum
tempo a minha sinceridade em relação ao ouvinte e meu compromisso com a verdade
se tornavam pesados demais para a direção. Algum poderoso reclamava e lá estava
eu na rua. Na Bandeirantes, que anunciava não ter censura, uma repórter
perguntou ao Zé Augusto Ribeiro o que ele achava e ele: "Posso garantir
que enquanto o Fausto Wolff trabalhar aqui não haverá censura".
"Os leitores sentem falta de um jornal
que não insulte sua inteligência"
Marcelo Salles - E o Jornal do Brasil?
Cansei de declarar
em rádios e tvs que se um dia encontrassem um artigo meu na grande imprensa, um
de nós teria mudado. O JB havia feito um contrato com o Ziraldo para passar-lhe
a edição do Caderno B. Um ano antes, Ziraldo me dizia: "Não assuma
compromisso algum, pois você é o sujeito que melhor escreve no Brasil e é o meu
trunfo para o caderno B". Pouco antes tive uma isquemia e o Ziraldo ligou
não para saber se eu estava bem, mas se eu ainda tinha condições de escrever.
Eu acreditei e continuo acreditando cada vez mais no projeto. Eu não mudei, mas
o JB mudou para melhor. Isso significa que poderá voltar a ser o melhor jornal
do Brasil, recuperar todos os leitores que perdeu para O Globo. Os leitores
sentem falta de um jornal que não insulte sua inteligência.
Marcelo Salles - E o Tanure?
Um dos editores -
cujo nome não vou citar - pediu-me para maneirar uma vez. Foi uma questão entre
cavalheiros. Não mudei e escrevi outro artigo. O jornal - não é antes de tudo,
mas certamente é também um estabelecimento comercial. Não faz sentido ele ter
prejuízo porque um colunista decidiu usar um vocábulo em vez de outro. Tanure,
desde o nosso primeiro encontro demonstrou ser um gentleman e um homem de
palavra. Jamais me dei bem com patrões. Ele, porém, é um executivo, um
intelectual que quer fazer um bom jornal. Agora que contratou Augusto Nunes, um
dos maiores profissionais da imprensa, não há porque não fazê-lo.
Marcelo Salles - Quais temas foram
censurados?
Num artigo eu
opinava sobre o próprio jornal e noutro defendia a causa palestina. Vendo a
coisa toda agora, talvez eu tenha pegado pesado demais.
Marcelo Salles - E a imprensa sionista?
Isso é uma
maldição. Perseguem-me desde que escrevi um livro chamado Palestinos, Judeus da
III Guerra Mundial, no qual defendo o direito de os palestinos terem sua terra
e não a favela onde hoje são obrigados a viver sob constantes ataques
israelenses. Este foi outro motivo de eu ter permanecido tanto tempo fora da
grande imprensa. Logo eu, cujo segundo romance, O Campo de Batalha Sou Eu,
posfaciado por Alberto Dines, foi o primeiro no Brasil a ter um protagonista
judeu. A esquerda israelense quer viver em paz com a Palestina. A direita
israelense e os judeus que vivem fora de Israel é que não querem. Tratam o
conflito como se fosse um jogo de futebol no qual torcem pelo seu time. Em
guerra se torce por quem tem razão e a razão está ao lado dos palestinos. Não
aceito o insulto de anti-semita, pois não sou contra etnia alguma. Uma comissão
de sionistas esteve no JB pedindo a minha cabeça. Como coincidiu de a direção do
jornal decidir diminuir o número de páginas no Caderno B, tive de parar com o
[Nataniel] Jebão e escrever minha coluna apenas três vezes por semana. Li na
Internet que os sionistas pensam que isso se deu por causa deles, mas foi pura
coincidência. Alguns dos meus melhores amigos são judeus e anti-sionistas.
Pergunto-me o que meus ídolos Jesus Cristo, Marx, Freud e Einstein, todos
judeus, diriam de uma figura como Ariel Sharon.
Marcelo Salles - Tem uma anedota sua de um
jovem jornalista que chega à Redação, conversa com o dono do jornal e diz que
tem o sonho de fazer um jornalismo humanista. O dono o incentiva, admira sua
intenção, mas quando o jornalista vai embora ele liga para a portaria e diz:
"Nunca mais deixe esse filho da p... voltar". Os donos da mídia,
hoje, são assim?
Já falei do
Tanure. O outro dono com o qual me dei bem foi o Samuel Wainer, que nunca me
censurou. Minha opinião sobre este assunto é a seguinte: o grande jornal não
pode simplesmente expressar a opinião do seu dono. Acabaria acontecendo o que
acontece na televisão. Quem patrocina o programa - Casas Bahia, digamos -
determina a cultura do povo. Creio que a obrigação do jornalista com o patrão é
de fazer para ele um jornal bem feito e que lhe dê lucro. O sistema é
capitalista e essas são as regras do jogo. Quanto à posição política do jornal,
esta deve ser determinada por um conselho de redação onde a participação
patronal seja mínima, a dos jornalistas média e a do público leitor a máxima.
Tivesse eu um jornal daria duas páginas aos leitores. Os conselhos de redação
já existem em alguns dos principais jornais do mundo há muito tempo: Frankfurt
Algemeine, LUnitá, Paese Sera, The Independent, Politiken, Le Monde, entre
outros. No Brasil a situação é tão patética que o governo acha que a TV
Educativa é dele e impõe e proíbe o que bem entende em vez de dar aos
empregados a possibilidade de fazerem a melhor TV do Brasil. Esquecem-se que a
TV é uma concessão do povo e que, portanto, cabe ao povo decidir o que quer ver
na sua rede. Quando estive na Itália a primeira vez e fiz um estágio na RAI
fiquei impressionado ao ver Giancarlo Pajjeta, veterano deputado comunista,
desancar o governo democrata cristão. A resposta foi óbvia: numa democracia
todos os espaços políticos têm espaço. Se a TV Educativa não fosse um cabide de
empregos poderia ser a melhor, pois elementos capazes ela tem.
"Somos um
rapaz mulato desdentado com 16 anos em frente a uma loja de discos cantando uma
música americana que ele não sabe o que quer dizer"
Marcelo Salles - O que você esperava do
novo Caderno B?
Uma revolução. Uma
espécie de Village Voice com tempero carioca. Ziraldo encheu o jornal com seus
amigos. O B praticamente só tinha colunistas quando deveria ter bons críticos
de artes plásticas, cinema, teatro, tv, ballet, literatura, poesia, música,
grandes reportagens e principalmente uma linha de defesa do cinema e da
literatura nacionais. Uma campanha a favor de um teatro e um cinema
subvencionados pelo Estado para fazer frente ao lixo hollywoodiano. Lutar pelos
autores nacionais que sofrem para editar bons livros enquanto que qualquer
best-seller americano ou europeu ganha páginas e páginas de propaganda.
Deveríamos resgatar a música brasileira, que já foi a melhor do mundo quando
imposta pelo povo aos meios de comunicação, e não ao contrário como ocorre
hoje. Naquela época o carnaval era uma revolução anual com milhões de pessoas
cantando novas músicas de protesto social todos os anos. A cada carnaval o povo
aprendia mais de cinqüenta novas músicas e as cantava em uníssono do Amazonas
ao Rio Grande do Sul. "Você conhece o pedreiro Waldemar? Não conhece, pois
eu vou lhe apresentar. De madrugada apanha o trem da circular, faz tanta casa e
não tem casa pra morar". O jornal deveria lutar para que os protagonistas
das escolas de samba voltassem a ser o povo e não os turistas. Deste modo o
protagonista do jornal voltaria a ser a notícia e o seu maior compromisso, o
leitor. Hoje, realmente, mais do que ter bananas, nós somos bananas. Temo que
se amanhã os marines invadirem o Brasil as moças e rapazes da classe média vão
pedir autógrafos. Ziraldo colocou vários cronistas jovens (alguns até bons),
mas que só sabem dizer "eu". Creio que, a não ser em casos
excepcionais, um jornalista só deveria dizer "eu" depois de dez anos
de redação. A direção decidiu diminuir o número de páginas porque os colunistas
viviam se chocando e atrapalhando grandes talentos como o Aldir Blanc, o Nani,
o Reinaldo Jardim e alguns outros.
Marcelo Salles - Você também fala muito de
você.
Aprendi isso com a
literatura. Uso-me como matéria prima para que o público melhor possa julgar.
Antes disso, porém, eu vivi. O diabo não é esperto porque é velho. É velho
porque é esperto. Tenho 65 anos, oito casamentos, filhos, netos, vinte livros,
três guerras. As dores e alegrias são muitas. Porque usar as experiências
alheias se as minhas senti na alma e no corpo? Com raras exceções, os jovens
colunistas em vez de desmascarem uma realidade mentirosa de superfície
deixam-se envolver por seus modismos, pois não conhecem outra realidade. A
exceção fica por conta dos cartunistas como o Alan Sieber, que é jovem, mas já
tem mais de trinta anos. Seus livros de quadrinhos fazem de uma realidade
aparentemente banal (para quem não é ferido por ela) verdadeiras tragédias.
Você ri chorando. As grandes exceções, naturalmente, são Jaguar, Millôr,
Ziraldo (apesar de tudo), Angeli, Glauco, os irmãos Caruso, que já nasceram
geniais.
Marcelo Salles - O que você tem contra
modismos?
Há bons modismos
que ficam. Mulher e futebol, embora estejam querendo acabar com esses dois
modismos. Basta ver o grande numero de filmes sustentando o homossexualismo
como o ideal. Já o futebol ficou difícil quando já se sabe o resultado de
antemão. Mas, falando sério: não gosto de modismos porque eles são mentirosos e
tentam fazer do ser humano - a máquina mais sofisticada do universo - um bufão,
um palhaço, um boi sem vontade própria. Eu vejo o jornalismo com a visão de
quem está no meio-fio da calçada, como a empregada doméstica. Sou um
intelectual e por isso mesmo simplifico. Se amanhã escrever um artigo sobre
Joyce ou Kafka, vou fazê-lo de modo a ser entendido por qualquer pessoa
inteligente. Para isso é preciso harmonizar a linguagem jornalística com a
literária. Morro de rir quando vejo um cronista começar o texto dizendo:
"Acabo de voltar do Japão onde recebi o prêmio". Precisamos devolver
o jornalismo ao povo e para isso ele (povo) precisa ser respeitado. O bom
jornalista informa ao povo o que faz o poder e não o contrário.
"Nossos
jornais falam de uma realidade de 15%. Os outros são loucos, que vêem a TV
Globo. Esses não têm mais salvação"
Marcelo Salles - Mas, deixando o JB de
lado, eu digo os jornalões em geral, os donos hoje estão mesmo assim?
Essas coisas
infelizmente não vão ser resolvidas porque há uma geração que hoje tem 40, 50
anos e que não consegue ver nada além do dinheiro. Alguém precisa lhes dizer
que não são imortais. São os executivos neoliberais ideologicamente mortos.
Eles nem partem do princípio de que se pode fazer um grande jornal dizendo a
verdade. A manchete do Globo de ontem foi "Hamas toma o poder na
Palestina" e não, como seria correto, "Hamas vence eleições na
Palestina". Quando o legislativo, o executivo, o judiciário e a imprensa
são sócios, você tem uma ditadura, e é isso que nós temos com raras exceções.
Marcelo Salles - Você costuma dizer que em 64 a imprensa ficou sócia do poder com o golpe.
O golpe
cristalizou essa sociedade, mas ela já vinha desde 54 quando Getúlio foi
assassinado. Revigorou-se com a Aliança Para o Progresso, de Kennedy, e com o
contrato Time-Life, que permitia que uma companhia jornalística estrangeira
ditasse a linha editorial de um canal de TV. O resto foi repetição. Já
poderíamos ter imprensa independente se Ziraldo, apesar dos meus protestos, não
houvesse feito a melhor revista do Brasil e a chamasse de Bundas. Poderia ter
acontecido com Pasquim 21 se Ziraldo, que se acha um homem de negócios,
garantisse contratos de propaganda de pelo menos um ano com o governo Lula, uma
vez que fizemos a campanha do PT. O único órgão de imprensa que fechou foi
Pasquim 21, o que mais brigou pelo PT.
Marcelo Salles - O que você me diz daquela
história de o PT estar fazendo esse governo agora para arrecadar recursos e
depois efetivamente fazer um governo de esquerda...
Ah, isso é bom,
isso é um negócio muito interessante: primeiro eu vou arranjar dinheiro,
primeiro minha mulher vai ficar rica, meu filho vai ser prefeito... Isso é uma
coisa nojenta! Esse pessoal, deputados, senadores, são todos office-boys das
grandes transnacionais. Eu hoje tenho absoluto nojo e desprezo pela quase
totalidade dos políticos.
"O PT surgiu
para acabar com o Partido Comunista"
Mariana Vidal - Você acha que hoje nós temos
uma esquerda no país? Uma oposição de esquerda?
Eu falei com o
pessoal do Partido Comunista do Brasil e eles me convidaram para ser candidato
a Presidente da República, eu acho até que seria engraçado. Não, eu acho que
hoje não temos mais esquerda. Acho que a grande armação brasileira foi o PT.
Brizola tinha razão, trata-se da UDN de tamancos. Ainda assim votei no Lula por
falta de opção. Logo que ele começou a fazer bobagens escrevi um artigo:
"Se estiver sendo pressionado, vá à televisão e diga ao povo o que está
acontecendo". Desisti no Fome Zero, aquela demagogia idiota de levar
ministro ao Nordeste e dizer: "Ministro, olha, essa é a fome. Fome, esse é
o ministro fulano de tal. Agora que vocês se conhecem nos veremos nas próximas
eleições".
Mariana Vidal - Votaria de novo?
Não. Hoje tenho
certeza de que o PT surgiu para acabar com o Partido Comunista, com os
comunistas no Brasil. Aproveitou-se de que a burguesia esclarecida não podia
mais acreditar na Arena. Por outro lado, tinham medo do comunismo e de Brizola.
Ela tem muito medo do Brizola. Porque ele não só propunha como fazia; ele fez
os Cieps, e seu erro foi dizer que tinha feito 500 quando fez 200, ainda que 30
já seriam uma maravilha! O Brizola nacionalizou a Bond & Share e tinha a educação
e a cultura como metas. Lia pouco, tinha o dedo podre, não sabia muito sobre
marxismo, mas era um homem profundamente digno e honesto. Isso a direita, que
quer o povo alienado, não podia aceitar. Os burgueses optaram pelo PT, que não
era de direita aparentemente, mas também não era de esquerda. O que eu não
sabia é que depois de Collor e de FHC o candidato do Consenso de Washington era
Lula e não Serra, talvez por este ser um desastre ambulante. Comecei a pensar o
seguinte: Quem são os fundadores do PT? Logo vi que era a burguesia
intelectualizada que não quer ser comunista, ao mesmo tempo não quer se
comprometer muito com a esquerda, mas não é de direita. E assim acaba com o
comunismo sério. E não estou falando do PPS, que não ousa dizer seu nome, nem
do PCdoB, que tem o presidente da Câmara. Pensei: "Esse pessoal vem do
Chile, vem de Paris, tudo filhinho de papai, tudo montado numa bela grana,
querendo fazer um partido de esquerda light. Mas para fazer um partido assim
precisavam de um ícone, de uma marca registrada, de uma coisa como a Coca-Cola,
eles precisavam de um operário. Quem é o que aparece mais, o que fala mais? Ah,
é o fulano de tal! Então pegaram o operário como se ele fosse o novo Jesus ou o
novo Lênin. Hoje você vê que o Lula é uma pessoa absolutamente despreparada
para qualquer coisa, ele não sabe nada de nada, ele é um ator que foi colocado
ali para decorar um papel. Agora que o largaram sozinho, ele fica dizendo
besteiras: "Garanto a você que não existe ninguém mais ético que eu".
Marcelo
Salles - Em 64 a
estratégia era fazer uma invasão cultural e depois manter uma ditadura durante
um tempo?
A invasão cultural
vem se dando desde 64, é verdade, mas foi duplicada a partir do Sarney. Agora é
que nós não temos mais músicas, não temos mais escolas, não temos mais
jornalismo, nós não temos nada, nós somos um rapaz mulato desdentado com 16
anos em frente a uma loja de discos cantando uma música americana que ele não
sabe o que quer dizer. Esse é o retrato do Brasil.
Mariana Vidal - Você acredita na
redemocratização da mídia no Brasil? Você acha que é possível reverter essa
invasão cultural?
Não, enquanto não
valer a pena. Pode ser que valha a pena e creio que é isso que pretende o
Tanure. Da última vez que estive com ele, falou-me da criação de um Conselho de
Redação que desse maior importância ao leitor. Houve um caso na África do Sul
de um jornalista amigo do Stephan Bico, grande revolucionário contra o
apartheid. O Bico estava solto enquanto o Mandela estava preso. Este jornalista,
Donald Woods, vivia tranqüilamente achando que estava num país normal, porque
os filhos dele iam à escola para brancos, tinha uma empregada negra que adorava
as crianças. Os empregados moravam em favelas distantes e iam trabalhar na casa
dos ricos. Isso era perfeitamente normal, como é no Brasil, não é mesmo? Ele
sabia, como a gente sabe que acontecem coisas inacreditáveis em Nova Iguaçu; que todos os dias
morrem crianças assassinadas na Rocinha, mas quem é que está dando bola para
isso? Ninguém! Até que o Bico vai ao jornal falar com ele: "Como é que é,
rapaz, seu jornal está matando gente". Woods perguntou: "Como"?
O Bico explicou e ele começou a ver. Seria a mesma coisa que você levar um
jornalista para o Morro do Rato Molhado. A verdade é que Woods começou a ver a
realidade do país dele. Os nossos jornais aqui falam de uma realidade de 15%. E
os outros são loucos que vêem a TV Globo, que vêem novela, esses coitados são
loucos, eles não têm mais solução. Então esse jornalista, que depois teve que
fugir da África do Sul para a Inglaterra, começou a falar dos direitos dos
negros, a tratar os negros como seres humanos, coisa que não acontecia. Daí os
anunciantes retiraram toda a publicidade, mas os negros, que eram maioria,
começaram a comprar o jornal, que passou a ter uma tiragem extraordinária, o
que fez os capitalistas anunciarem novamente, porque comércio é comércio,
porque quem consumia eram os pobres. Tornou-se o jornal mais popular da África
do Sul. E o mais vendido. É esse o tipo de jornalismo que eu quero fazer, onde
o jornal seja o advogado de quem não tem advogado. O advogado barato que você
compra na banca. Agora, isso não está acontecendo no JB, mas tenho esperanças
que virá a acontecer. Continua acontecendo... Eu ficarei muito chateado se me
despedirem do JB, porque apesar de alguns percalços e angústias tem sido uma
experiência muito boa. Eu detesto esse adjetivo adorado por entrevistadoras de
TV: gratificante; mas é o que melhor define o que sinto. Eu nunca deixei de
dizer que eu era comunista, a primeira coisa que eu fiz no JB foi informar. No
meu primeiro artigo escrevi: "O que é que um jornal tem que dizer? A
verdade! A verdade precisa sempre estar sob a luz dos refletores".
Marcelo Salles - O que é, para você, ser
de esquerda? E o que é ser de direita?
Ser de esquerda é você se colocar ao lado do homem e das suas necessidades. É
você se colocar, não ao lado de uma realidade que te impõem, e sim de uma
verdade que essa realidade esconde. Ser de esquerda é, entre o lucro e a
dignidade, ficar com a dignidade. Ser de esquerda é não achar que o dinheiro é
o fim e o objetivo de todas as coisas. Ser de esquerda é achar que o objetivo
da nossa vida é o homem em si e, finalmente, para usar uma frase de efeito, ser
de esquerda é lutar até nos descobrirmos deuses, e assim não precisarmos mais
de deus algum.
"Ser de esquerda é lutar até nos descobrirmos deuses, e
assim não precisarmos mais de deus algum"
Marcelo Salles - E a direita?
Olha, a direita é uma doença inculcada... O primeiro vencedor foi o macaco na
época das cavernas que sentou um tapa nos outros três fraquinhos e "olha,
esse canto aqui é meu e ninguém tasca". Está na tradição, na família e na
propriedade, no caso do Brasil, nem tradição, nem família, nem propriedade.
"Por que é que esses 500 quilômetros de terra são seus?" "São meus porque meu pai
passou eles para mim". "E quem passou isso para o teu pai?"
"Foi meu avô". "E quem passou para o teu avô?" "Meu
avô tomou eles na marra". Então a revolução é você lutar pelas coisas, é
você dizer "eu não acredito nessa lei e vou trabalhar contra ela".
Agora, é claro que nós estamos perdendo e vamos perder cada vez mais se nós não
atentarmos para a educação e para a cultura, porque a educação e a cultura são
as únicas coisas que podem mudar. A filosofia comunista, ao contrário do que se
pensa, só pode se transformar numa revolução se ela vier de dentro para fora.
Por que você tem que se convencer de que não precisa usar as outras pessoas
para poder ser feliz. Não precisa de dois automóveis, nem dez amantes, nem
vinte isso ou aquilo. Como disse Proudhome: "a propriedade privada é um
crime". E é realmente um crime. Então, ser de direita é ser um louco, ser
de direita é ser um canalha, um psicopata perigoso, e a gente tem que tomar
muito cuidado com eles. Melhor seria botá-los todos na cadeia.
Marcelo Salles - Em relação à educação
aqui no Rio, o Brizola tentou fazer isso com os CIEPs e, até hoje, ele tem um
estigma muito forte, principalmente na Tijuca, de "amigo dos
bandidos".
Ele não permitiu que a polícia, essa polícia que está como policial porque não
passou no vestibular para bandido, entrasse no morro e matasse todo mundo e foi
a época que você teve menos crimes. E o Brizola fez a coisa certa, sem os CIEPs
não tem solução; se os CIEPs tivessem funcionado em 1982... Vamos deixar por
200 CIEPs com 1000 crianças cada, seriam 200.000 crianças; essas crianças não
estariam hoje vendendo chiclete nas ruas. Aí entrou esse canalha do Moreira
Franco e disse que acabaria com o crime em meio ano; e a primeira coisa que fez
foi acabar com os CIEPs. Olha, se você educa uma criança, se você pressiona
essa criança, se leva essa criança para o crime todo dia e no dia em que essa
criança se rebela você vai tratá-la como cachorro, é claro que ela vai morder.
Seria uma beleza pegar todas essa crianças que estão na rua, e que são muito
mais inteligentes que as crianças burguesas, são muito mais corajosas, muito
mais talentosas e fazer escolas especiais para elas. Dessas escolas sairiam os
grandes homens, os futuros dirigentes do país. Nós estamos vivendo na Idade da
Pedra em matéria de humanismo. Pagamos cinco mil reais para manter o filho numa
escola primária e não pagamos 400 reais para a empregada que vai cuidar dos
nossos filhos.
Marcelo Salles - Parece que as pessoas têm
vergonha de se assumirem comunistas. Será que não é porque o comunismo é mal
entendido no Brasil?
Mal entendido, mal lido... A direita fez as pessoas pensarem que comunismo é
burocracia, que comunismo é stalinismo. Comunismo é uma filosofia humanista que
ainda não deu certo. Mesmo se você pensar que na Rússia os patrões falavam
francês entre si, alemão com os empregados e russo com os cachorros e porcos,
houve uma grande evolução estagnada pelo neoliberalismo. Se compararmos a
Rússia pré-perestroika à Rússia de 1917 veremos que ela realizou a maior obra
de engenharia social do mundo. Quanto a Stalin, acho que nada desculpa você
tirar uma vida humana, mas nada, nada. Não acredito que os fins justifiquem os
meios. Claro que isso não me impede de querer a pena de morte para genocidas,
ou seja, para esses canalhas que mandam milhões de dólares para fora do país e
com isso matam milhões de crianças de fome.
Mônica Tolipan - O ocidente gastou mais
dinheiro em propaganda contra o comunismo do que qualquer outra coisa. Quando
eu era menina minha mãe me levava para o outro lado da rua quando passava um
vizinho que dizia ser comunista. O Globo publicava histórias em quadrinhos que mostravam guerrilheiros
cubanos degolando crianças. O país inteiro amanheceu com um pôster nos
muros onde se via um ponto de interrogação vermelho e sob ele: "E o resto
é silêncio". Os jornais brasileiros não publicavam notícias das agências
do leste e ainda hoje, se você fizer uma comparação dos países do leste europeu
com os países da América do Sul, vai ver que, com exceção da Polônia, você não
tem um analfabeto.
Mariana Vidal - Com a chegada agora do Evo
Morales e de uma socialista no Chile, qual sua expectativa em relação à América
Latina?
A minha expectativa é de que enfim se possa fazer um Mercosul. O Brasil,
idiota, sempre foi dominado pelos portugueses, depois pelos franceses, depois
pelos ingleses e agora pelos americanos. Sempre deu as costas para a América do
Sul. É hora de se começar um intercâmbio político, militar, cultural, econômico
que faça mudar as coisas, ou seja, que realmente concretize o sonho de Bolívar
de uma América Latina livre. Nós no Brasil não conhecemos a América do Sul, não
temos idéia do que é a América do Sul. Eu gosto muito do Chávez, eu gosto muito
do Morales, índios, nativos, retomando o país. Gosto da moça chilena [Michele
Bachelet]. Acabarão compreendendo, como Fidel, que a coisa é simples: "de
cada um segundo as suas possibilidades, a cada um segundo as suas
necessidades". Não precisa dizer mais nada. Basta você acreditar que todo
o ser humano é igual a você; você olha uma mão e vê cinco dedos. Quantos
engenheiros e arquitetos você precisaria para bolar uma maravilha como essa?
Você tem mais ligações nervosas, neurônios no cérebro humano que em todos os
computadores do mundo e, no entanto, essa porra só serve para levar porrada da
polícia.
Thaís Tibiriçá - A questão da cultura que
você falou, o lançamento do seu romance agora, o "Olímpia" e o
mercado editorial, em que o livro mais vendido é "O monge
executivo"...
A tendência é essa mesmo. Se você quer estabelecer um sistema capitalista, e
você quer estabelecê-lo sem limitações, é fundamental que o povo não pense, que
a maioria não pense. No Brasil nós conseguimos isso, nós temos favelas. Por
quê? Porque o povo não pensa. Porque se ele pensar, vai chegar à conclusão:
"mas por que eu estou comprando essa porcaria?". Isso é pecado mortal
para o sistema. "Por que estou comprando essa porcaria, por que não vou
ali no vizinho, não peço emprestado, não troco, não faço qualquer outra
coisa?". Por que é que tenho que comprar essa merda desse tênis para o meu
filho? Nós temos uma nação de escravos! Até a classe média, ela é toda escrava.
Mônica Tolipan - É muito americano isso.
Se você tem um bom emprego, você está salvo na vida. Você faz qualquer coisa
para se manter no emprego e perde o caráter.
A direita quer que você acredite que a vida é um inferno. Quer que todos
sejamos filhos do medo para obedecermos sem pensar.
"Se você quer estabelcer um sistema capitalista, é
fundamental que o povo não pense"
Mônica Tolipan - Não precisa ser um
pesadelo.
Não é um pesadelo. Para qualquer lado que você olhe, só vê beleza. Você só vê
porcaria quando é feita pelo homem, como aquela lixeira em Queimados. Os peixes boiando, as praias poluídas, a selva desmatada,
tudo feito pelo homem. A natureza está sempre bonita, o azul é bonito, o verde
é bonito, o amarelo é bonito, fazer amor é bonito, mulher é bonito, o homem é
bonito, tudo é bonito... A direita é que é anti-tudo.
Marcelo Salles - Você escreveu certa vez
que os escritores foram vencidos pela mídia.
A arte foi e é verdade. A não ser que eles façam parte da mídia, quais são os
escritores que mais vendem? Bons ou ruins são os que têm colunas em grandes
jornais ou programas de TV. Os meus livros provavelmente vão vender mais por
causa do Jornal do Brasil; se eu for pro Globo, então, sou capaz de arranjar
dinheiro para comprar o apartamento em que vivo. Mas isso não vai acontecer
porque venho de longe, como dizia o Brizola. Pedi demissão da TV Globo em 1965
e nunca mais passei na frente. Nunca dei uma entrevista para TV Globo.
Marcelo Salles - Você uma vez escreveu uma
história de um poeta a quem o produtor pedia um texto, parece que de teatro,
fazia o texto e deixava na mesa do produtor, aí o produtor não gostava e
mandava ele reescrever. Ele reescrevia mudando um pouco e deixava na mesa de
novo. Até que ele reescreveu pela última vez e deixou de novo com um bilhete
"Pior não dá para ficar".
Ah, foi o Antônio Maria que fez isso na TV Tupi: "Pior não sei
fazer". Qualquer canal de televisão trata o telespectador como gado. Os
canais fechados pouco menos.
Marcelo Salles - É verdade que você brigou
no elevador com o Adolfo Bloch?
Não. Não foi no elevador, eu nem briguei com ele, dei um tapa e hoje me
arrependo, embora ele merecesse.
Marcelo Salles - Sei que você deve estar
cansado de contar essa história, mas eu não sei os detalhes.
Eu morava em Roma, e o Ney Sroulevich, meu querido amigo que já faleceu, ligou
para mim de Paris. A revista Manchete, cuja sucursal ele dirigia, tinha uma
seção chamada Paredon. Eles pegavam uma figura popular brasileira e
internacionalmente conhecida e faziam perguntas para as celebridades do mundo
inteiro. Resolveram fazer isso com o Pelé. E Ney pediu-me que fizesse perguntas
a celebridades italianas. Eu estava indo para a Grécia, atrasei minhas férias.
Aí eu fiz uma relação - Pasolini, Moravia, Riva, Tognazzi, uns dez mais ou
menos. Pedi-lhe 500 dólares pelo trabalho e ele concordou, mas a casa só
pagaria se eu fosse cobrar no Rio. Na época eu escrevia para o Pasquim e tinha
que entrar com passaporte falso no Brasil. E, porque o Pasquim não estava me
pagando, estava sem dinheiro. Aí fui à Manchete cobrar. Realmente estavam lá na
administração: 500 dólares - Paredon com Pelé. E eu já estava muito puto
com essa história de olhar pro chão, olhar pro lado. Era uma época brava, 1970,
71. Eu queria pegar aquele dinheiro e me mandar. Aí o Adolfo passou, eu era
novo, tinha uns 30 anos, e disse: "Dá para você assinar para eu
receber?" Ele olhou para mim como se eu fosse louco. Disse: "500
dólares para uma entrevista? Você está muito louco! Eu pago 100". Aí eu
dei um tapa nele e fui embora da Manchete e do Brasil.
Mariana Vidal - Saiu uma pesquisa
recentemente sobre o hábito de leitura do brasileiro. O resultado é que os
brasileiros lêem muito pouco, inclusive brasileiros de nível superior. Muitas
pessoas falaram que só leram aqueles livros indicados pelos professores para
conseguir o diploma.
Parece que ler é castigo. Agora, no Rio Grande do Sul, o prefeito de Cachoeira
disse que seus funcionários têm que ler um livro por semana e têm que dar o
comentário. É castigo.
Mariana Vidal - Mesmo sabendo disso, o que
leva um escritor a continuar escrevendo?
Eu sou um escritor e tenho que fazer isso. Porque eu não conseguiria viver sem
fazer isso. Eu não poderia viver sem escrever. É uma coisa quase metafísica, é
uma coisa superior a mim. A Mônica sabe que entre um livro e outro eu fico
muito nervoso. Eu acho que nós todos temos que deixar um testemunho da nossa
época para facilitar a vida de quem vem. O que seria minha vida sem Balzac,
Tolstoi, Kafka, Joyce, Jorge Amado, Érico Veríssimo, Castro Alves, Drummond.
Estes são os grandes heróis do mundo. Os grandes heróis do mundo não são os
generais que destroem, mas os filósofos que constroem. Já imaginaram como o
mundo seria mais triste apenas com depoimentos de militares? "A senhora
leu o último poema do Geisel"?
Marcelo Salles - Você vê alguma forma de
se reverter esse quadro?
Há várias formas de reverter. Vocês estão revertendo a situação. No momento em
que vocês fazem um jornal como esse, qualquer pessoa bem intencionada,
profissional, verá que estão fazendo um trabalho sério. Tão sério que vocês
estão aqui. Vocês pegaram o Jânio de Freitas na Folha de S. Paulo,
pegaram o [Eduardo] Galeano. Essas coisas importam muito. Chamaram a minha
atenção, chamaram a atenção de muitos outros. Outra coisa importante e possível
é fazer um jornal de bairro, um jornal comunitário. Realmente levar isto às
últimas conseqüências. Quando o pessoal do bairro sentir que aquilo não é um
negócio só para colocar anúncio e poeminha, e vir que você está preocupado
realmente com aquela vala suja, a reação do público será imediata. Outra coisa:
você pode fazer até um Jornal Nacional. Os grandes sindicatos, em vez de
mil house organs, façam um grande jornal nacional e nacionalista. Uma
coisa que eu sugeri ao Banco Central, quando eles vieram pedir que eu fizesse
um jornal para eles: olha, o jornal do Banco Central vai ser uma bobagem, eu
quero fazer um jornal em que vocês todos ponham dinheiro do Banco Central,
Petrobrás, Caixa Econômica, tudo. Aí a gente ia fazer um jornal, tinha até dado
o nome: FORTE.
Mariana Vidal - O Banco Central?
Não, o sindicato dos funcionários do Banco Central. Imagine, o Banco Central
não vai me pedir nada, vai me dar um tiro. O Banco Central só dá dinheiro para
banqueiros.
Mariana Vidal - Falando sobre as colunas,
questões como a América Latina, Palestina, você escreveu sobre os indígenas,
furacão Katarina. Por que essas abordagens ficam apenas restritas às colunas?
Não dariam boas reportagens?
Cada coluna minha dá uma grande reportagem. Acontece que a maioria dos
repórteres viraram office-boys. Acabou a aventura, acabou a beleza que
era. Antigamente a gente não ganhava nada, mas se divertia pra burro. A gente é
que fazia o jornal. Hoje as redações foram ficando mais silenciosas, desculpe
as mulheres, mas elas têm grande culpa nisso. As mulheres tiraram muito os
lugares dos homens por ganhar menos. Elas são mais silenciosas. As redações não
são mais os magníficos palcos que costumavam ser, cheias de nervos, sangue,
suor, gargalhadas e lágrimas. A notícia precisa chegar viva à redação para ser
transmitida vivíssima. Hoje, ela chega morta na mão do repórter, depois vai
para redator e chega morta ao leitor. É preciso mais indignação, menos medo; é
preciso mostrar que nem sempre aquilo que é natural não é um crime. Um menino
vendendo chicletes de madrugada, por exemplo. Milhares de seres humanos
esperando numa fila de hospital. Hoje um general brasileiro se suicida no Haiti
e ninguém investiga.
Mariana Vidal - Você acha que essa falta
de senso crítico é imposto ou é auto-censura do repórter? Fifty-fifty. O repórter não investiga porque parte do princípio de que
não será editado quando, eventualmente, acontece o contrário. É auto-censura do
repórter, claro. Essa é uma profissão que você só exerce se você a ama muito. E
se você ama muito essa profissão, você precisa ser independente. Muito bem,
quando você está começando, está aprendendo, vai fazendo o que os outros dizem
até enxergar com seus próprios olhos e perceber que você trabalha para uma
direita. Fui candidato a deputado federal pelo PDT e disse que não tinha bens
materiais a declarar e não tenho.
"Os semitas aproveitaram o holocausto para pressionar o
mundo a lhes dar metade da Palestina"
Marcelo Salles - Quando nós entrevistamos
o Emir Sader, ele disse que ele foi afastado da Globonews por pressão
dos judeus.
Não há porque duvidar dele. Os sionistas querem fazer crer que quem apóia a Palestina
é anti-semita. Meu Deus do céu, os grandes amigos meus são judeus, minha mulher
também é judia por parte de pai. Uma coisa é você ser judeu, outra coisa é você
ser judeu e ter isto como raça; que porra é essa de raça? Não existe raça
judaica, não existe raça nenhuma. Só tem uma raça, a raça humana, e quem sabe a
dos pigmeus no meio da África do Sul.
Marcelo Salles - Aprofundando um pouco
essa questão, como você vê esse conflito Israel e Palestina, que parece que
nunca termina?
Os semitas aproveitaram o holocausto para pressionar o mundo a lhes dar metade
da Palestina. Os palestinos, com exceção dos fanáticos sionistas, viviam com os
judeus muito bem. Até que de repente surgem judeus liderados por Ariel Sharon
massacrando palestinos e usando o holocausto como desculpa. O Holocausto foi
provavelmente o maior crime cometido no mundo, seguido de perto pelo bombardeio
de Hiroshima e Nagazaki. Mas, por que os judeus não brigam com os alemães em
vez de quererem escravizar os palestinos? Se eu fosse a ONU teria estabelecido
o Estado de Israel no Vale do Rhur para que os alemães jamais se esquecessem do
opróbrio.
Marcelo Salles - Como foi o exílio?
Eu nunca fui oficialmente exilado. Em 1968, antes do AI-5, eu tinha 3 colunas
em 3 jornais diferentes, diárias, e atuava num programa de televisão chamado Jornal
de Vanguarda. Com a censura, ainda antes do AI-5, eu comecei a falar de
flores e plantas e o público sabia que eu estava sendo censurado. Eu tinha 28
anos. O diretor do programa era amigo do Magalhães Pinto, que era Ministro das
Relações Exteriores. Ele informou-me de que eu estava numa lista dos primeiros
a serem presos. Uma semana depois eu estava em Roma. Hoje eu tenho certeza que eles teriam me matado. Eu era um
jornalista conhecido, mas não era um Millôr Fernandes, um Carlos Heitor Cony,
um Hélio Fernandes, cuja ausência daria o que falar. Eu ia desaparecer. Eu
estava cansado desse negócio de não poder escrever, de não poder fazer.
Marcelo Salles - Passou os dez anos em
Roma?
Não, não. Fui professor da Universidade de Copenhague, professor da
Universidade de Nápoles. Morei um tempo na Grécia.
Marcelo Salles - E a volta?
Eu voltava sempre ao Rio quando conseguia dinheiro para a passagem. Porque meu
nome não é Fausto Wolff e eles estavam atrás do cara chamado Fausto Wolff.
Tinha sempre alguém me esperando no aeroporto. O Millôr ou Daniel Tolipan, tio
da Mônica, ou a Nelma do Pasquim. Logo eu não tive grandes problemas com a
ditadura com exceção do medo de que ela me matasse. Entre um país governado por
más leis e um sem leis prefiro o primeiro. A ditadura não tinha leis. Mudava as
regras do jogo quando queria. O cara batia na sua casa 6h da manhã e te levava
pra algum lugar. E hoje isso acontece com todo o sujeito que é pobre, com todo
o João da Silva, é absolutamente a mesma coisa. A polícia sobe no morro, pega o
cara e mata. O que eu tenho contra os jornais do Brasil é que eles trabalham
para a minoria livre ou pseudo-minoria. E eu tenho a pretensão de escrever para
todo o mundo. Quando eu voltei, sem lenço e sem documento, sem dinheiro e sem
emprego, verifiquei que muitos colegas tratavam os ministros de
"vocês", viviam nas festas. Eu não poderia trabalhar desse jeito,
fingindo que tudo ia bem. Quando saí daqui trabalhava na Tribuna, no Jornal
do Brasil e no Diário de Notícias. Ao voltar, o Diário de
Notícias já tinha acabado e só restava um caminho, que era o Pasquim.
E no Pasquim fiquei. Eu tinha 40 anos e morava numa pensão. Pensão
mesmo, três da manhã era comum um comitê de baratas me esperando todas as noites.
Mariana Vidal - Quando você estava fora do
Brasil, em algum momento pensou que deveria ter ficado e lutado?
Puxa vida, eu não tinha porque dar colher de chá para um vagabundo qualquer me
dar um tiro. Eu ainda tinha muita coisa para escrever.
Marcelo Salles - Depois do Pasquim
você...
Depois do Pasquim eu só tive um emprego público, cargo de confiança. Eu
fui chamado para dirigir a Fundação Rio, o que fiz durante quatro anos. Nesse
tempo, eu escrevi um livro no campus da universidade, chamado Rio de Janeiro.
Eu fiz o festival do Teatro Amador, a Poesia Passageira, a poesia em ônibus,
bar. Ah, e com Olga Savary fiz um livro chamado Antologia da Poesia
Brasileira, dos poetas que tinham nascido depois de 1904. Eu fiz coisa para
burro, sem trabalhar muito. Imaginem se eu trabalhasse. Nunca mais me chamaram
para nenhum cargo público.
Mônica Tolipan - Quando eu conheci o
Fausto ele estava sem emprego, começando a escrever O Homem e seu Algoz.
Tinha acabado de separar.
Eu não estava sem emprego.
Mônica Tolipan - Você estava traduzindo um
livro chamado Breaking the News, que denuncia o show business em
que se transformou o jornalismo americano.
Eu traduzo do inglês, alemão, francês, italiano, espanhol. Entendo holandês,
dinamarquês, grego, romeno, norueguês. Quando um cara estuda até a segunda
série ginasial, ele tem que sempre mostrar que é melhor, pois ele não pode se
defender com um diploma.
Marcelo Salles - Você ainda edita pela
Bertrand?
Tenho três ou quatro livros sob contrato. Estou negociando os demais com outras
editoras. Eu tenho o site O Lobo (www.olobo.net), dirigido por meu amigo
Jean Scharlau.
Marcelo Salles - E o Horácio?
O Horácio é uma espécie de agente/assessor meu. Um dos rapazes mais
inteligentes que eu já conheci. Ele, Scharlau e Maria Belmoral são as grandes
promessas da literatura atual na minha opinião. A Internet é muito bom. Ao
mesmo tempo em que você tem um site de esquerda como o de vocês, tem um
de direita muito bem escrito, o Digestivo Cultural, da linha arte pela arte.
Seu editor ainda não entendeu que sem o homem não há literatura, assim como não
há texto sem contexto.
Mônica Tolipan - Você está vendo acontecer
uma guerra urbana e que ninguém quer ver? Entre as favelas?
Infelizmente é a direita - tráfico - quem manda nos morros. Fosse a esquerda, o
morro já seria bairro digno de seres humanos ou já teria descido. O Rio de
Janeiro continua vivo, porque em 1964, 65, 66, o Partido Comunista, em vez de
infiltrar-se nos exércitos e nas favelas, preferiu fazer as favelas persistirem
em terreno urbano. Tinha que infiltrar gente nas forças armadas, nas
universidades. Pessoalmente eu acredito que estão matando e afogando mendigos
no Rio de Janeiro. Quem te garante que estes canalhas não peguem crianças de
madrugada e vão para matar? Os americanos estão cada vez mais colocando as
manguinhas de fora. Seguindo o exemplo de Israel, querem fazer uma cerca que
separe os Estados Unidos do México.
Mariana Vidal - Se este tipo de coisa
saísse na nossa grande imprensa, você acha que a população estaria preparada
para pegar um jornal diário e ler isto?
Se tudo der certo, podemos provar que o jornalismo que diz a verdade pode dar
mais lucro do que o venal.
Marcelo Salles - Existe verdade? Existe
uma verdade?
Olha, basicamente a verdade é aquilo que você toca. Aquilo que você toca e pode
ver. Mas há falhas sobre ver, então seria aquilo que você toca. Tocou, você
sentiu. Hoje, em termos políticos, é tudo aquilo com o qual você se acostumou.
A verdade, porém, deve desmascarar a realidade que o poder pretende natural. A
maioria das crianças das favelas não vai à escola, mas os jornais noticiam que
um grupo de faveladas da Maré está fazendo um curso de flores artificiais. Essa
é a realidade que encobre a verdade, que é a seguinte: as crianças faveladas e
sem teto estão sendo viciadas, estupradas todos os dias. Vinte crianças numa
cama só, a mãe mudando de amante todo dia. E nada disso é verdade. A verdade é
o curso de flores artificiais das faveladas.