Entrevistas
Márcia Jacintho: uma guerreira do século XXI
[Por Sheila Jacob] No dia 21 de novembro de 2002, o jovem Hanry Silva Gomes da Siqueira, de 16 anos, foi assassinado por policiais militares perto de sua residência no Morro do Gambá, Complexo Lins e Vasconcellos, Zona Norte do Rio de Janeiro.
Márcia Jacintho, a mãe da vítima, dilacerada e indignada conseguiu marcar dois gols contra a violência policial nos bairros populares: provou que o filho não tinha envolvimento com o tráfico de drogas e, no dia 2 de setembro, quase seis anos após o crime, Paulo Roberto Paschuini, que confessou ter sido o autor do disparo, foi condenado a nove anos de prisão.
Paulo Roberto vai recorrer em liberdade e outro réu, Marcos Alves da Silva, foi condenado a três anos de prisão, acusado de ter forjado provas para “justificar” a ação policial. Ele já estava preso desde o dia 12 de agosto, acusado desde 1998 de roubo a mão armada. Apesar da indignação com o resultado da sentença, Márcia declarou ao BoletimNPC que o primeiro objetivo foi atingido. “Consegui limpar a imagem do meu filho e mostrar que ele foi uma vítima. Falta ainda expulsar os culpados da Polícia Militar”. Entre telefonemas de amigos e mensagens de força, Márcia Jacintho falou ainda sobre a luta que vem travando desde 2002 por justiça; pelo julgamento dos policiais militares; sobre a sua indignação com a impunidade; e o que ainda falta para o desfecho do caso. Confira a entrevista.
Por Sheila Jacob
Hanry da Silva Gomes da Siqueira nasceu no Rio de Janeiro em 1986. Com um mês foi levado para a cidade de Caratinga, em Minas Gerais. Márcia resolveu voltar para o Rio em 1995, e “obviamente como mãe eu desejei meu filho perto de mim. Não sei se foi certo o que eu fiz...”
BoletimNPC- Você se lembra do dia do assassinato do seu filho? Márcia Jacintho - Eu me lembro de que tinha levantado umas 9 e pouca da manhã. Ele acordou, me viu me arrumando, e perguntou “Aonde a senhora vai?”. Contei que tinha levantado cedo porque ia levar minha neta de três anos ao hospital. Lembro que até brinquei. Disse que achava engraçado o filho tomar conta da mãe, sendo que antigamente era o contrário; a mãe que cuidava da vida dos filhos.
Aquela foi a última vez que vi meu filho. Cheguei em casa umas 4 e pouca da tarde e vi aquela bagunça. Ele tomava banho jogava a toalha em cima da minha cama, tirava o espelho do banheiro para arrumar aquele cabelo todo ondulado. Ele era muito vaidoso, eu ainda guardo o perfume dele e o remédio que ele usava para cuidar das espinhas. Tenho tudo ainda: fichário, roupa, carteirinha da escola...
Vi que ele tinha passado em casa e almoçado, inclusive batata-frita naquele dia. Então por volta das 17h e 18h, eu estava na cozinha e ouvi um tiro. Era horário de verão, e o sol estava forte ainda. Fiquei preocupada com Sérgio, meu marido, que tinha acabado de sair de casa. Depois que ele voltou e disse que estava tudo bem, fui dormir. Até pensei em chamar a atenção do Hanry, porque eu não tinha visto ele de noite, e ele sempre passava em casa antes de ir para a escola. Achei que ele tinha faltado aula. Na manhã, vi que ele não tinha dormido em casa. Mal clareou o dia, comecei a bater nas portas de parentes e vizinhos. Hanry nunca tinha dormido fora de casa antes, por isso fiquei muito preocupada. Um amigo meu, motorista de Kombi, disse que o pessoal do Hospital Salgado Filho comentou que tinha entrado um menino da comunidade baleado e de bermuda preta. E o Hanry estava de bermuda preta, e ainda não tinha dormido em casa. Naquela hora pânico total, e comecei a chorar.
Segui na hora para o Salgado Filho. No hospital, informaram que tinha entrado um rapaz de mais ou menos 20 anos já morto, mas que tinha trocado tiro com a polícia. Pensei logo que não era ele, porque ele não tinha envolvimento algum com o tráfico. De lá passei em casa, para depois ir para o IML. Quando abri a porta de casa, olhei para a parede e uma voz dentro de mim falou “acabou”. Meu marido depois me ligou, eu atendi e eu disse “vai para o IML, porque acho que mataram meu filho”.
E foi realmente isso que aconteceu. Fui para o IML, mas não tive coragem de entrar para reconhecer o corpo. Quando meu marido saiu de cabeça baixa, e minha amiga Vera estava em prantos, vi que era realmente o que eu mais temia, e desmaiei na hora. Só no domingo, no enterro, é que fui ver o Hanry morto. Ali eu quis me despedir definitivamente.
BoletimNPC- E quando começou a investigação? Márcia Jacintho - Além de chorar e sofrer muito com a dor da perda, eu tive ainda que correr atrás para o crime do meu filho não passar impune. Depois de cerca de dois meses, resolvi ir atrás das provas. Fui eu que busquei o BE (Boletim de Emergência do Hospital) para provar que ele já estava morto quando deu entrada no Salgado Filho. Providenciei as declarações das escolas, tanto do Rio quanto de Minas. Também fui eu que encontrei as testemunhas: o garoto Victor, que viu Hanry brincando sozinho de bermuda; e mais uma senhora, dona Rita, que faleceu por motivo de doença. Ela depôs, e disse que todo o tempo que estava ali em frente à creche vendendo bala não viu nenhum carro subindo. Falou também que conhecia o menino. Que ele sempre brincava com os netos dela, e não tinha nenhuma conduta irregular.
O Victor tinha visto o Hanry brincando sozinho naquele dia. Quando soube da morte dele, o Victor foi logo no dia seguinte ao local que tinha visto Hanry. Encontrou as chaves dele, e uma poça de sangue. Dois meses depois, eu pedi para ele me levar até o local em que o Hanry tinha sido morto. Peguei minha máquina e fui fotografar. Algo me dizia que aquilo ainda ia servir para alguma coisa. A versão dos policiais estava toda furada. Fui conversar com os vizinhos, e eles contaram que não viram carro de policial algum subindo. E também os policiais alegaram que houve uma troca de tiro com “cinco ou sete elementos”, que estariam no alto do Morro. Na versão deles, o tiro teria sido dado de baixo para cima, o que ficou tecnicamente provado que era mentira. Na perícia ficou constatado que o tiro tinha sido de cima pra baixo. Como meu filho tinha 1,67m, obviamente ele estava de joelho.
Achei tão incrível a versão dos policiais de “auto de resistência”, que até passei a ser irônica! Como só dois policiais, trocando tiro com os tais cinco elementos no alto do Morro (que como eles dizem é perigoso...) atingem uma única pessoa com um tiro no coração e a queima-roupa! E ainda subiram invisíveis, porque nenhum vizinho viu ou ouviu o grupo subindo.
Aquele seria o crime perfeito. Os policiais forjaram as provas, como costumam fazer. A mídia anunciaria menos um traficante, e a sociedade bateria palma. Não costumam ouvir ninguém. Só consigo ter espaço hoje para falar porque estou desde 2003 tentando provar a inocência do meu filho. Finalmente consegui limpar a imagem dele.
BoletimNPC- O que exatamente os policiais fizeram? Márcia Jacintho - Eles costumam forjar o chamado “kit bandido”. Já sobem com as drogas e a arma que serão atribuídas ao “traficante” morto. Então eles fizeram isso: colocaram a arma com meu filho, drogas, dispararam para o alto para simular um tiroteio. Daí desceram com o corpo enrolado no lençol (roubado do varal de algum vizinho). Depois foram até o hospital. Chegaram por volta das 20h, e disseram que Hanry tinha chegado com vida. Poxa, meu filho levou um tiro que atravessou o coração, é claro que já estava morto quando deram entrada no hospital.
E então eu fui reunindo essas provas, e gritando para todos os lados. Na minha época, o Secretário de Segurança era o (Marcelo) Itagiba, mas ninguém quis me atender. Nem ele, nem a Rosinha. Inclusive o advogado do ladrão disse que meu caso foi política, porque eu também sou evangélica. Mas a Rosinha nunca me ouviu, nunca quis me receber pessoalmente. Só depois de muito gritar que eu consegui levar o caso ao Ministério Público. Ainda demorei ainda: dos nove policiais militares envolvidos, só dois foram condenados e assumiram a culpa.
BoletimNPC- Por quê?
Márcia Jacintho - Naquele grupo tinha altas patentes: tenente e sargento também estavam envolvidos. Depois eu fiquei sabendo que aquele plantão era do “grupo de extermínio”, que eles inclusive já mataram outros. Mas nesse caso só um soldado e um cabo foram incriminados. Eu não consigo imaginar como estava o coração desses monstros, matar um menino covardemente...
BoletimNPC- Em relação ao julgamento dos réus, no dia 2 de setembro. Um (Paulo Roberto Paschuini) foi condenado a nove anos. E o outro, Marcos Alves da Silva, já estava preso desde o dia 12 de agosto, e continua por mais três anos. O que acha?
Márcia Jacintho - Uma brincadeira! Como eu já disse, dos nove envolvidos, só dois foram julgados. E inclusive o Paulo Roberto, que assumiu ter matado meu filho, foi condenado a nove anos de prisão, mas vai recorrer em liberdade. E o próximo júri, de acordo com meu advogado, só será em 2009! O outro, Marcos Alves da Silva, saiu do Fórum preso no dia 12 de agosto*. Mas não pela morte de Hanry, mas sim porque já respondia por roubo a mão armada desde 1998.
*(O julgamento dos réus havia sido marcado para o dia 12 de agosto, mas foi adiado para 2 de setembro porque o advogado de Marcos Alves não apareceu).
Eu ainda tive princípio de infarto em abril, quando peguei o final do processo e descobri que os dois réus haviam sido promovidos depois de já terem matado meu filho. Até julho, ainda eram soldado Marcos Alves da Silva e cabo Paulo Roberto. Depois o soldado virou cabo, e o cabo virou terceiro sargento. Não acredito nisso até hoje.
BoletimNPC- E qual a sua luta hoje? Márcia Jacintho - Já atingi meu primeiro objetivo, que era limpar a imagem de meu filho. Provei pra todos ali que ele era inocente. Agora vou exigir que aqueles dois sejam expulsos. Além disso, vou cobrar uma explicação da Polícia Militar. Quero saber por que o Marcos continuava lá, se já respondia por roubo a mão armada desde 1998. Eles dizem que não existe corporativismo, mas eu duvido de polícia investigando polícia.
Eu pergunto: quem é bandido? A chegada deles na comunidade é absurda. Desrespeitam os moradores, xingam, falam palavrões, agridem. Muitas colegas minhas já levaram tapa na cara por estar em bar. Eles plantam o terror na comunidade de tal forma que quase ninguém tem a ousadia de denunciá-los. E se meu filho tivesse alguma passagem pela policia, isso não dava o direito de eles tirarem a vida dele! Aqui no Brasil não existe pena de morte. Lá fora, mesmo onde existe, o cara tem direito a ser réu antes. Se for julgado e for concluído que teve culpa, só aí a pena é execução. Aqui no Brasil não se tem nem direito de ser réu. São os policiais que determinam se vão exterminar ou não. E somos nós ainda pagamos os policiais. Eu sempre digo que fui eu que paguei a bala que matou o meu filho; a arma; a farda; o carro; a gasolina...
Hoje eu não luto pelo meu filho, porque ele infelizmente não volta mais. Eu luto para que outras mães não precisem passar pelo que estou passando. Hoje eu sou uma mulher em defesa da vida, e não vou me calar.
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