Pol�tica
Questão Racial: Paris em Chamas
“Melhor morrer do que permanecer escravo”, com esta consigna estava dado o sinal de morte da escravidão, aos maus-tratos e à exploração da colônia do Haiti. Juntos negros livres, alguns educados na própria França, camponeses e a classe média branca exigiam a autonomia da ilha, controle sobre os impostos e ter sua Assembléia Nacional. Em 14 de agosto de 1791, o céu haitiano iluminou-se com as chamas que ardiam nos engenhos de açúcar, canaviais e nas casas dos agricultores. Toussaint L’Ouverture liderou um verdadeiro exército contra a Coroa Francesa, libertando os escravos e derrotando 60 mil soldados de Napoleão Bonaparte, que em 1803 reconheceu a independência formal do Haiti.[1]
Assim, a onda de rebeliões, que hoje sacode a periferia, tem origem num passado marcadamente racista e numa forte crítica ao capitalismo, onde a burguesia branca come, vive e mora nos melhores recantos da Europa, enquanto negros e trabalhadores pobres são excluídos dos grandes centros urbanos, bem longe dos olhos dos turistas. Daí porque o fogo que clama por justiça também repercute na Alemanha, Bélgica e Austrália, nações capitalistas onde a riqueza econômica é acessível apenas a uma minoria. O clima nervoso em Paris tem uma mistura ainda mais explosiva: a questão racial e a luta de classes.Pois de um lado estão solidários negros, pobres e trabalhadores, noutro encontra-se amendrotada a burguesia. Porém o grau de tencionamento ainda é preocupante. Tais revoltas carecem de uma posição política mais ampla e não há um partido maciço; organizado continentalmente capaz de traduzir corretamente os anseios de milhares de lutadores anônimos e dar uma linha conseqüente a essas legítimas lutas do povo. O exemplo das revoltas de rua na Argentina, nos anos 90, é sintomático. Ensinou-nos que sem consciência política e sem organização do povo, através de reivindicações gerais e específicas, os episódios da Paris, que ora arde em chamas, podem ficar restritos à luta econômica, bloqueando a meio caminho, a construção de uma sociedade realmente justa e igualitária, onde não haja explorados e nem exploradores, já que a falência do Estado de Bem-Estar social, como é o caso desses países e de outros onde o povo começa a se mobilizar contra a miséria, é uma realidade que precisa ser constatada com a apresentação de alternativas ao modelo neoliberal-capitalista. Preconceito de raça e classe Se as manifestações parisienses colocam a nu as preocupações sociais em detrimento do enriquecimento das potências capitalistas, sobretudo com a formação da União Européia, que não passa de um grande blocão de reserva de mercado, imperialista e elitista. Países que ficarem de fora dessa comunidade serão atropelados pela fúria capitalista que os move. E o medo do atropelamento compulsório faz ressurgir as mágoas do passado, pois ao mesmo tempo que caem todo tipo de barreira, aprofundam-se as desigualdade sócio-raciais; voltando à cena fantasmas da barbárie humana como é o racismo no futebol, as agressões dos grupos neo-nazi-fascistas e os atos contra os imigrantes. Isso comprova o seguinte: o gigantesco lucro obtido com as transações comerciais, mega-fusões, privatizações de empresas públicas e desmonte do Estado não trazem nem Bem-Estar e nem tampouco qualidade de vida para a massa da população, que vai se miserabilizando no mesmo ritmo em que cresce a milionária conta bancária de pequenos grupos industriais. Nessa crônica da miséria anunciada estão em xeque o próprio modelo econômico-social. Lucros para quem e para quê? Se a resposta a estas perguntas decifra o que norteia a ganância mercantilista no continente europeu, na África elas trazem mais que respostas. Acionam o alarme da exploração criminosa contra a humanidade. E foi Karl Marx[2] quem muito bem mostrou que é sob a forma de categoria econômica que o sofrimento negro-africano acontece. É ai que se deve realizar o combate às mazelas e ao sofrimento do Ser Humano, camuflados na ideologia do multiculturalismo e da democracia racial, que são aparatos tanto do racismo quanto do imperialismo, já que durante séculos a riqueza africana ( cobre, ferro, diamante, petróleo, carvão, ouro)financiou a Revolução Industrial, a ociosidade da burguesia branca e foi objeto da disputa entre as potências européias, que fatiaram o território africano, dividindo-o entre si, roubando, financiando guerras tribais, além de recorrer a uma série de práticas etnocidas, como o estupro de meninas (caso atual do Sudão) e o Apartheid, o mais famoso desses crimes. A opinião pública da Europa se mostra, pelo menos na televisão, chocada com a revolta da periferia de Paris, porém não quer vê a origem dessas revoltas e usa subterfúgios para explicá-las. De Acordo com Comitini(1980:20) a África europeizada foi divida assim[3]:
COLÔNIA | PAISES INVADIDOS | Britânica | União Sul Africana,Rodésia,Zimbábue,Zâmbia,Tanzânia, Lesoto,Malavi,Serra Leoa,África do Sul,Uganda,Quênia,Somália,Nigéria,Gana,Sudão,Namíbia,Botsuana | Francesa | República Melgaxe,Ilhas Camoras,Congo,Gabão,Camarões,República Centro Africana,Chade,Benin,Togo,Mali,Mauritânia,Guine-Coracri,Gâmbia,Senegal,Argélia,Marrocos,Ilha Reunion,Costa do Marfim,Burkina Faso,Niger,Tunisia,Djibuti,Madagascar,Ilhas Mauricio,Ilhas Seychelles | Belga | Congo(Zaire),Guiné Equatorial,Burundi | Italiana | Somália Italiana,Abissínia(Etiópia),Eritréia,Líbia | Espanhola | Guiné-Equatorial,Saara,Ilhas Canárias | Portuguesa | Moçambique,Angola,Guiné Portugal,Cabo Verde,São Tomé | Alemâ | Namíbia,Tanzânia,Togo | Estadunidense | Libéria |
Fontes:Comitini,Carlos.A África Arde.Ed.Codecri,1980.p.20. L’Atlas Jeune Afrique du Continent Africain.Paris.Lês Editions du Jaguar.1993.
As multinacionais que invadiram a África, dividindo-a em colônias, sucatearam – o solo, a natureza e o homem africano - numa imediata reprodução daquilo que ocorria nos campos político e diplomático, sendo que algumas das mais importantes empresas do mundo capitalista(GE,Monsanto,Ford,Volks,Sharp,Nissan,Siemens,Firestone,Chrysler,GM,Toyota,Mitsubishi,Peugeot,Philips,Goodyear,Exxon,3M, entre outras)[4] chegaram, inclusive, a se negarem a fazer oposição ao Apartheid,na África do Sul, desrespeitando resolução da ONU com esta proposição.Pois o que interessava ali era a possibilidade de aumentar os dividendos monetários para ser gasto na Europa, sede das matrizes dessas empresas.Fizerem da África uma geratriz de lucros(MARTINEZ,1992:5), dai o apoio das multinacionais ao regime do Apartheid ou como a ONU se pronunciou em 1977 sobre essas empresas:(...)”continuam a colaborar com os regimes de minoria racista em desobediência às resoluções das Nações Unidas, e conseqüentemente, encorajam estes regimes a persistir em suas políticas desumanas”.(COMITINI,1980:173).
Assim, como é regra no modo de produção capitalista, as questões humanitárias foram jogadas de lado, em prol do capitalismo branco e selvagem. Ou melhor, as preocupações sociais viraram tema dos belos discursos nas atividades militantes, todavia absolutamente nada mudava na ordem e intensidade da exploração-espoliação da terra negra. O próprio FMI faz esse jogo tacanho. Mantém uma retórica “humanista”, mas é o fiel representante do empreendedorismo mercantilista, que em última instância financia a si também. Diz que é necessário perdoar a dívida de países pobres numa retórica comovente, se não fosse venenosa. Mas qual dívida se foram as grandes corporações imperialistas que roubaram a África. A vítima passou a ré? Isto posto, voltamos a questão fundamental dos distúrbios da juventude negra da periferia: o racismo existe, e com ele o conflito de classes, contraditórias e politicamente opostas, em que o negro sofre a dupla opressão de raça e classe. Concordamos com Bercht[5]de que o conceito de raça é biologicamente insustentável; não existe raça , mas existe racismo!É isso o que incomoda a ala da sociedade, os ricos do mundo, que não sabem o que é fome, pobreza, miséria, e que vivem encastelados em seus sofisticados esquemas de segurança. Todavia, nesse instante em que os protestos de rua ganharam dimensão internacional o drama de ser operário e negro desperta a comiseração sobre as soluções que a indústria capitalista não quer dar, restando ao “poder das ruas” ser o fiel da balança nesse conflito. Somente o nível de reivindicação das massas, organizadas e mobilizadas, pode conseguir tirar algum proveito da atual quadra da luta do povo contra a opressão. Sabemos, desde já, quem é o nosso inimigo comum: o capitalismo. Luta intensa dos comunistas A presença dos comunistas nestas lutas e nas frentes de batalhas contra o racismo, a opressão e o capitalismo, deu ao movimento unicidade e conseqüência ímpar no período onde a luta pendia para o caminho da guerra fratricida, no continente estrangulado pelas divisões tribais, sendo que muitas dessas divisões foram financiadas por países da Europa e Estados Unidos, interessados na manutenção do status quo da dependência econômica e cultural das nações africanas. Saíram dos quadros comunistas os mais destacados lutadores anticolonialistas e anti-racistas, como Nelson Mandela, que foi militante do Partido Comunista da África do Sul, por exemplo. Outros se impuseram diante das mais complexas peculiaridades. De um lado a firme convicção marxista-leninista de uma sociedade socialista,e, de outro, a necessidade de adaptar o acúmulo ideológico a uma realidade extremamente inédita. Não existia uma língua comum, nem mesmo a polis como a conhecemos. E contra todos havia o pesado instrumento financeiro a serviço do colonialismo. Portanto, o sucesso da empreitada deveu-se a abstinada fé no Povo e na capacidade de resistência africana, legado dos ancestrais e da aura que sempre assiste a terrinha.Também é digno lembrar a bravura dos camaradas Patrice Lumumba(Congo), Agostinho Neto(Angola), Amílcar Cabral(Guiné-Bissau), Samora Machel(Moçambique), Léopold Senghor(Senegal), Sam Mujoma(Namíbia), e os mais de 60 mil comunistas que sob o medo dos assassinatos, do terrorismo e da clandestinidade se dedicaram à causa da liberdade e da solidariedade africanas, bem como a participação fundamental dos comunistas nestas frentes. Que tiveram como característica a centralidade da luta anticolonialista e anti-racista, num só tempo, haja visto o pouco volume da incipiente classe operária; novidade trazida pela febre de consumo norte-americana-européia, acelerando a formação das forças produtivas, cuja urgência em suprir os mercados internos da Europa e Estados Unidos violentaram a Mãe-África. Notas 1-MELTZER, Milton.Historia Ilustrada da Escravidão.Rio de Janeiro:Ediouro,2004. 2-cf.MARX,Karl.Manifesto do Partido Comunista.São Paulo:Global.1988 3-COMITINI,Carlos.África Arde.Rio de Janeiro:Codecri,1980. 4-op.cit.p.176 5-cf.artigos de Verônica Bercht.Revista Princípios.Nº79.1-06-2005.
*Alexandre Braga é africanista e militante da Unegro-MG
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