Entrevistas
Você pode ser hoje cameran e amanhã repórter!
No canal público Vive TV um novo modo de fazer comunicação é colocado em prática. A emissora venezuelana valoriza o processo de construção dos programas e a hierarquia é o tempo todo questionada. Nessa entrevista, a coordenadora da Vive TV Blanca Eekhout fala sobre essa experiência inovadora, que traz comunidades populares para dentro da TV. Blanca participou de uma atividade promovida pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Sindicato dos Petroleiros do Rio de Janeiro no dia 20 de maio. Por Mario Camargo e Raquel Júnia Boletim NPC - O que a Vive TV entende por comunicação libertadora? Blanca Eekhout - Fundamentalmente resgatar a comunicação, dizemos que o modelo de comunicação imposto impede que efetivamente possamos nos comunicar. Um grupo muito reduzido da sociedade, que responde a interesses econômicos, se viu no direito de representar as grandes maiorias através dos meios, isso é uma representação da massa que se sobrepõe ao sujeito da comunicação. Então, o nosso papel desde Vive é efetivamente conseguir que os sujeitos da comunicação não sejam substituídos pelo fetiche midiático. Você comentou que o espaço midiático tomou o lugar do espaço público... De alguma maneira o cenário midiático substituiu o espaço público. Um grupo muito reduzido de jornalistas, políticos, intelectuais e artistas, que são os especialistas convocados pelos donos dos meios, se dão o direito de dizer o que expressam como se fosse uma opinião pública. A realidade começa a ser uma referência que em muitos casos não é considerada. No caso, por exemplo, dessa guerra de extermínio contra o povo iraquiano, a verdade não teve nenhuma importância, o importante é a mentira midiática. Então, creio que é fundamental a idéia de recuperar a comunicação como um espaço para o encontro verdadeiro. O modelo dominante nos leva ao desencontro, à violência, ao terror, ao medo. Permanentemente todas as notícias estão ligadas justamente a que tenhamos medo dos outros, à estigmatização dos árabes, dos latinos. Ou somos terroristas, ou somos traficantes ou delinqüentes. Há uma permanente desqualificação e estigmatização do outro. Como a TV pública venezuelana busca um modelo estético para romper com esse modelo capitalista de televisão? No estado venezuelano há dois canais públicos, um é o Venezuelano de Televisión, que se encarrega mais do informativo e da opinião e carrega muito do modelo estético dominante, está muito ligado à batalha midiática que é essa rixa política permanente: fala governo, fala oposição. Nós, na Vive, estamos ligados à participação protagonista do povo. E o povo que não tem espaço porque não é o especialista, nem é político reconhecido, é esse povo que nós estamos incluindo como sujeito ativo na comunicação. O modelo não é só dar-lhes participação ou que seja protagonista, mas que aprenda a usar a ferramenta comunicacional, que possa entender o mecanismo de poder que se estabelece a partir do uso da câmera, que ele possa construir seu discurso a partir de sua perspectiva e de sua vida, de sua realidade e dos interesses do coletivo no qual está inserido. Por isso as comunidades indígenas produzem materiais extraordinários que nunca tínhamos tido a possibilidade de ver. Não é somente porque não tinham espaço na tela da TV, mas a sua visão de mundo, a forma de narrar e contar, a partir do momento que eles têm a ferramenta nas mãos é algo que temos agora, com esse espaço público, a possibilidade de ver. É de extraordinária riqueza. É a comunicação como direito igual a ter acesso à escrita. Você pode escrever acerca de García Márquez, escrever uma carta, um boletim de sua fábrica, da mesma forma nas câmeras, esse é um instrumento comunicacional ao que todos temos direito e pode servir também para transmitir minha luta, para mostrar minha cultura, para dizer como eu como. Há programas em Vive da revolução campesina, que é sobre a comida, desde como se cultiva o alimento, até o momento a colheita e o momento que se prepara para compartilhá-la. Então, é uma dimensão distinta da realidade onde a coisa não está segmentada, que podemos ver o processo e os atores do processo construindo seu próprio discurso. Também é um tempo diferente da produção da notícia da TV capitalista. Você estava comentando que leva até uma semana para produzir um bom material... É totalmente distinto, por isso que o modelo de produção que nós fazemos é o do produtor integral, aqui não há uma divisão na qual o câmera nem sabe porque está indo a determinado lugar, no qual só o produtor tem uma idéia e ao final ninguém lhe pergunta, justamente a ele que é o sujeito protagonico da ação. Aqui todos compartilham, entre a comunidade que está sendo protagonista, o produtor que pode ter sido editor antes, que agora está sendo produtor e que amanhã pode estar de câmera. E assim uma criação coletiva, uma proposta onde todos intervêm, onde vamos expressar porque nos colocamos ali, o que queremos ver e comunicar. Então, aqui há um vinculo afetivo, emocional com o que está transmitindo, você não chega e desconhece as pessoas que estão aí, mas você entra em uma relação direta com elas. Isso faz com que haja mais compromisso, mais disposição, faz com que se reflita de verdade a luta, a busca, a proposta, a cultura desse povo. Aqui você é um criador. Já não é um trabalhador alienado, que cumpre um horário, mas você está criando, servindo também ao povo através dessa obra, desse material. Há dificuldades, às vezes, no início, para algumas pessoas era difícil a idéia de compartilhar o saber. Então, se passou por uma reflexão política, um trabalho de formação, de debate, de discussão para entender que efetivamente a maior virtude do conhecimento é poder compartilhá-lo com o outro e isso implica nosso próprio desenvolvimento. Aprendemos mais quando ensinamos, e quando é um trabalho, nesse caso, de um estado, que é um estado em revolução, não há a idéia de que te exploram, de que existe mais-valia, mas de que você está construindo essa televisão para seus filhos, para o futuro da sua comunidade e você é parte disso. Muitas das pessoas que se integram são companheiros jornalistas, que vem de experiências em outras televisoras com outro modelo, mas também há companheiros que antes estavam fazendo manutenção, limpeza e que agora estão com a câmera na mão. A idéia é que todos aprendamos e cresçamos. Você falou sobre o direito à comunicação. Para que esse processo se dê de uma maneira efetiva, as pessoas precisam ter a consciência desse direito, na Venezuela as pessoas já tem essa consciência? Veja, a Venezuela avançou muito, a partir das agressões. È uma história que tentarei resumir. Em 27 de fevereiro de 1989, na América Latina, a primeira resposta contra o imperialismo se deu na Venezuela, com o Caracazo, ou o Sacudón, como se dizia. Uma porcentagem importante da população havia votado por Carlos Andrés Perez, que havia sido um presidente no boom da Venezuela petroleira, e que oferecia de novo que se ia aceder a riqueza e tal, um modelo de vida norte-americano ao país. O primeiro que fez ao chegar ao poder foi decretar um pacote de medidas econômicas que implicava um golpe terrível ao povo. Nesse momento uma reação enorme espontânea do povo, sem vanguarda, sem nenhuma organização conhecida, que teve como conseqüência mais de três mil mortos. Foi uma repressão bestial, um dos piores massacres feitos contra o povo venezuelano, se metralharam as favelas, morreram mulheres, crianças, gente que não tinha nada a ver, era uma cena de guerra. Isso marcou muitíssimo o imaginário coletivo. Os meios de comunicação, ao largo de toda a democracia representativa, 50 anos desse modelo, haviam convertido em mediadores entre um governo distante e um povo sem canais de participação, se converteram em uma espécie de porta-voz que veiculavam a denúncia, mas que permanentemente negociavam o controle do poder político a partir do controle da massa. Quando se dá o 27 de fevereiro, os meios aplaudem o massacre contra o povo. Não houve uma só pessoa culpada, denunciada por isso, não houve um só questionamento público, não houve nada, os meios tampouco fizeram silencio, aplaudiram, e isso gerou uma ruptura coletiva com o fetiche midiático terrível para eles. Toda a venda da Venezuela das misses, que participavam dos concursos de beleza, a Venezuela do boom petroleiro, a Venezuela que haviam vendido, ficou evidenciado que era tudo uma mentira, e que em cima dos cadáveres dos mortos começou novamente o circo. E pela primeira vez esse circo já não convencia ninguém, as pessoas entenderam que esse circo implicava que quem estava abaixo com os leões era o povo. E que era o festejo da oligarquia com os meios. Há uma ruptura que permite o levante de 92, o levantamento cívico-militar, contra esse presidente que havia feito esse massacre. Quem dirige o levante é o tenente coronel Hugo Chávez. As pessoas não saíram a apoiar o golpe, desconheciam, o exército e a polícia haviam participado desse massacre anterior, então, ninguém foi apoiar, mas quando se dá um segmento para a rendição aconteceu uma coisa muito particular, quando Chávez fala: ‘não conseguimos alcançar nossos objetivos’ e diz a seus companheiros: ‘vocês fizeram sua parte, virão tempos melhores para a pátria, eu assumo toda a responsabilidade do que aconteceu, por agora...’, isso gerou uma mobilização popular extraordinária. Apesar de todo o discurso midiático, que era de satanização disso, a resposta foi massiva de apoio, os que estavam detidos no quartel San Carlos, que fica em Caracas, tiveram que ser tirados de lá, porque eram milhões e milhões de pessoas ao redor da cadeia, tentando entrar em contato com eles. E, afinal, era um homem meio negro, meio índio, que não observava o fato de ser militar e poder ter privilégios, ademais apelava à pátria, à possibilidade de transformação. Esse povo que se levanta em 89, que nesse momento não é possível, que vê Chavez falando ‘por agora’, teve uma reação totalmente distinta que os meios pretenderam. As pessoas fizeram um contato com a memória histórica, com a história dos libertadores, [Mariscal] Sucre, [Simón] Bolívar, [Francisco de] Miranda, com a verdade de um povo que sempre esteve em luta escondida pelos meios. Isso reivindicou todos esses anos de luta, a luta guerrilheira, dos anos 60, foi um renascer do movimento popular a partir justamente de desmontar a mentira midiática. Há, então, uma consciente mirada das pessoas critica a respeito dos meios como instrumento da burguesia, não como algo ali inócuo, já se entendia que era um instrumento de dominação. Isso permite chegar às eleições de 98, apesar de que toda a campanha era: ‘são comunistas, comem crianças, uns ditadores, militares’, se ganha apesar de toda essa campanha midiática, que até o último momento colocava no último nível o projeto bolivariano. E em 2002, 2003 foi realmente uma derrota da estratégia midiática. Apesar de toda essa consciência, isso é dialético, há um povo muito consciente, mas também são 50 anos de um modelo de televisão que permeou o imaginário coletivo, então, não é que estamos jogando sozinhos, eles também mudaram suas estratégias. Alguns meios se radicalizaram para manterem setores da classe média absolutamente dissociados, em uma espécie de ira permanente contra o chavismo, mas outros mudaram seu discurso político, e começaram a dizer: ‘os chavistas não são tão feios, nem são tão negros, nem são tão índios’, e começaram a tratar de convocar, abrir espaço, e as novelas começaram a colocar a figura do chavista e era um tipo jocoso, mudaram o cenário da novela e a faziam em comunidades populares, tratando de começar a que a sua programação se identificasse com esse povo que o havia deixado de ver. Isso tem um impacto, eles têm maior cobertura, estão em todo o território. Todas essas nossas experiências são novas, com discursos distintos, que implicam numa ruptura com o modelo dominante, mas as pessoas tendem a reproduzir o aprendido e a aceitá-lo. Há um problema na esquerda, não só na Venezuela, mas no mundo, a proposta de como será o socialismo não fica clara. Mas a publicidade capitalista sim, de que você é feliz com um carro, com dois ou com três, com quanto mais coisa tenha terá mais mulheres. Então, se está jogando com todos os valores, já o imaginário socialista não está tão claro. Como sou feliz a partir dessa experiência de solidariedade? Como me conta histórias de que isso é possível? De repente posso ir ao que foi a nossa herança cultural do trabalho coletivo... A nova geração então, está mais consciente, já que ela tem esse exemplo do que ocorreu na Venezuela? Eu creio que é dialético, há setores que sim, mas outros deixaram também ser controlados porque o aparato educativo é o mesmo velho. Estamos tentando transformá-lo, mas os professores têm o mesmo modelo e o reproduzem. Nós temos uma programação dedicada à participação, ao protagonismo, temos produções infantis, mas toda a lógica dominante do show, do sorteio, do espetáculo, eles têm. E isso é um atrativo e nessa batalha ideológica eles ganham muitos. Estamos num processo onde há pessoas muito conscientes, que se organizam, se mobilizam, mas há uma herança de ser espectador do meio. O que não significa, entretanto, que esse espectador vai ser condicionado pelo que esse meio diz, porque as pessoas viam os meios, mas da mesma forma saiam a defender Chávez. Mas é uma dinâmica complexa na qual eles estão jogando muito forte porque, além disso, tem todo o poder dos meios a nível internacional, boicotam permanentemente o exercício do governo e a estrutura do estado não é ainda um estado totalmente revolucionário, há contradições.
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Piratininga
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