Entrevistas
“As emissoras não são proprietárias dos canais de rádio e televisão”, diz Venício de Lima
Por Raquel Junia
Você acorda de manhã, liga o rádio ou a TV enquanto toma café, entra no ônibus para chegar ao trabalho e compra um jornal para ler no caminho. Quase sempre as principais notícias coincidem, e as versões sobre determinado fato também. Você pode até se sentir bem informado (a), mas aquelas notícias são produzidas a partir de um conjunto muito restrito de atores que controlam todos os meios de comunicação no Brasil. É sobre isso que falou ao NPC por telefone, o jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da Universidade de Brasília (Unb) Venício de Lima. Para ele, é fundamental que a população entenda que a comunicação existe para além dos canais que sintonizamos. BoletimNPC- Sobre a concentração da propriedade dos meios de comunicação no Brasil, objeto de pesquisas do senhor, de que forma essa concentração se dá? Venício de Lima - No Brasil, a concentração é um fenômeno histórico. Existe uma associação da concentração dos meios de comunicação ao processo da globalização, que se intensifica dos anos 80 para cá. Mas não é verdade que a globalização acelerou o processo que já existia. Por que? Porque a legislação que regula a radiodifusão no Brasil nunca impediu a propriedade cruzada, ou seja, que um mesmo grupo controlasse no mercado jornais, revistas, emissoras de rádio, de TV e até provedores de Internet atualmente. Enquanto não existia o rádio e a TV era um tipo de imprensa diferente da que existe hoje. Da década de 50 para cá, como surgimento do Rádio, se percebe uma ausência de regulação e uma interferência do estado, sobretudo, nos meios impressos, por meio de subsídios, empréstimos, definição de cotas de papel. A partir da década de 50, os grandes grupos são grupos multimídias, com características próprias, como propriedade familiar, vínculo com famílias regionais, o que gerou o coronelismo eletrônico, então a mídia impressa e a mídia eletrônica sempre foram concentradas a partir da segunda metade do século passado. BoletimNPC- Então, ao mesmo tempo em que não havia uma regulação do setor por parte do Estado, este interferia nos meios impressos?
Venício de Lima - Esse é um processo sobretudo pós-televisão. O Estado fez uma opção por um modelo já adotado nos Estados Unidos e que não acontece em nenhum outro lugar do mundo, que é o de entregar para a iniciativa privada a radiodifusão. Desde o início, a exploração comercial foi uma opção do Estado. Só em 1967, a ditadura militar faz um decreto que modifica o código e este passa a falar em emissoras educativas. E também a mídia ganha uma importância diferente, sobretudo a TV, e passa a ser vital para o processo político. A mídia tem autonomia e força própria. Então há uma combinação de interesses entre os grupos que controlam o Estado e os grupos multimídias, esses interesses coincidem. Antes de 1988, a concessão de rádio e TV era uma atribuição do Executivo, com a Constituição de 88, o Legislativo passa a ter essa atribuição. E um Legislativo onde essa oligarquia multimídia está representada. Aí ocorre um fenômeno muito especial é que o legislativo ser ao mesmo tempo o concessionário e o poder concedente da radiodifusão. BoletimNPC- Que grupos controlam os meios de comunicação no Brasil, hoje?
Venício de Lima - Veja só, com a Emenda Constitucional nº 36 de 2002, permitiu-se a entrada do capital estrangeiro na radiodifusão. A mídia, sobretudo as empresas jornalísticas, continua sendo controlada pelas mesmas oligarquias só que com um capital estrangeiro em 30%. Esse processo de entrada do capital estrangeiro vem logo depois da privatização da telefonia. Isso tudo é acompanhado por um processo de convergência tecnológica e a disputa do mercado por grandes grupos multinacionais. Algumas empresas por exemplo, na área de TV a Cabo, a Net vendeu 49% do capital a estrangeiros. A editora Abril vendeu 30% para uma multinacional com sede na África do Sul. Então hoje o quadro é esse e também com a possibilidade de entrada das Teles no mercado para a distribuição de conteúdo. BoletimNPC- Que políticas públicas poderiam ou deveriam combater essa situação?
Venício de Lima - Eu costumo dizer que se a Constituição de 88 fosse cumprida, muita coisa mudaria. A Constituição fala na complementariedade entre setor público, estatal e privado. Isso nunca existiu. Agora com a criação da Empresa Brasil de Comunicação, que se autodenomina pública, está aberta a possibilidade de você ter uma alternativa ao sistema dominante. Então, o fortalecimento desse sistema público seria uma forma de democratizar a comunicação. Outra, seria o fortalecimento das rádios comunitárias, que têm uma série de problemas e são uma discussão a parte. A legislação de radiodifusão comunitária é totalmente restritiva, é uma área totalmente caótica, mas vital para a democracia. Agora, na área impressa, não é necessária a autorização do Estado. Baseado no fato de que para a democracia é vital a diversidade, o Estado deveria incentivar o surgimento de empresas alternativas, por meio de verbas publicitárias, subsídios, entendendo que a existência de novos atores na comunicação é uma questão democrática. A grande mídia vai continuar existindo, mas não seria a única. BoletimNPC- Há uma campanha em curso por transparência nas concessões de rádio e TV. Como o poder público concede essa concessão e como renova?
Venício de Lima - As concessões são o nó principal da questão. A radiodifusão no Brasil tem condições muito específicas, prazos que foram extremamente dilatados em 1962, em dez anos para rádio, 15 para TV. Nenhum país do mundo tem prazos dilatados assim. Isso faz com que a concessão se transforme em uma propriedade privada. Para que uma concessão não seja renovada, a proposta tem que ser votada por 2/5 dos membros do congresso em votação nominal e aberta. Para que seja cancelado um contrato de concessão, não basta o descumprimento de algum dos termos contratuais, como acontece com as outras áreas de concessão do Estado, o cancelamento só vai ser feito por decisão judicial. E há outra questão que são as concessões exploradas no exercício do mandato. A legislação diz apenas que o político tem que se afastar da gerência, mas continua sendo proprietário do meio de comunicação. BoletimNPC- Então isso significa que o deputado, por exemplo, pode colocar qualquer pessoa até da própria família na gerência do meio, e pode continuar sendo dono?
Venício de Lima - Sim, e o principal de tudo é que o processo não é transparente. Há inclusive um projeto de emenda constitucional, da sub-comissão presidida pela deputada Luiza Erundina [PTB] da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara, que tem como objetivo clarear a questão das concessões. BoletimNPC- É possível a população se organizar para que um canal não cumpra certos quesitos, como atenção à diversidade do Brasil, tenha a sua concessão renovada?
Venício de Lima - O mais importante é que a população tenha consciência de que as emissoras não são proprietárias dos canais de rádio e TV, esses canais são concessões públicas. A TV não é propriedade da Globo, a Globo tem o aparato técnico, mas o canal não é dela, é do Estado, como os outros serviços públicos que também são concessões. E essa concessão tem um prazo. È importante a população saber as datas nas quais terminam as concessões e tentar interferir nos processos de renovação por meio dos deputados eleitos. Por isso esse movimento que exige transparência nas concessões é super importante. Toda essa nossa discussão desemboca no fato de que no Brasil não existe uma Lei Geral de Comunicações que regule essas questões. Temos uma legislação ultrapassada. Por isso é importante a mobilização que alguns setores estão fazendo para que seja realizada a Conferência Nacional de Comunicação, que vai propor um novo modelo de funcionamento para a mídia, e pode proporcionar a maior participação da sociedade no tema, a exemplo de Conferencias que já foram realizadas em outros setores, como a saúde.
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