Menu NPC
 
 Conheça o NPC
 Quem somos
 O que queremos
 O que fazemos
 Equipe
 Fotos do NPC
 Fale conosco
 Serviços do NPC
 Cursos
 Palestras
 Agenda
 Clipping Alternativo
 Publicações
 Livros
 Cartilhas
 Apostilas
 Agendas Anuais
 Nossos Jornais
 Dicas do NPC
 Dicionário de Politiquês
 Leituras
 Documentos
 Músicas
 Links
 
 
Memria - 8 de Maro
Todas as mulheres do mundo

Já passavam das duas (três?) da manhã. Dona Maria abriu uma janela. Havia escutado nossos sussurros: “Meu filho, vocês jantaram?”. “Jantamos mãe, pode dormir. Pode ir dormir tranquila” - mentiu Venâncio. Segundos depois escutamos barulho de panelas no fogão. Logo um cheiro gostoso de feijão fervendo tomou conta da parada. Carne frita, batata. Feijão. Nos fartamos. Dona Maria perguntou se queríamos mais, perguntou como havia sido o nosso dia e, antes da resposta, contou como foi o seu, nos beijou. Aí sim, foi dormir. Estávamos fedendo a bebida, fumaça, gasolina. Ela nem fez cara de desaprovação. Já nos conhecia.

 

Ao deitar numa cama que a esposa do Celso – Sandra, outra mulher espetacular – improvisou ainda de tardinha, pensei em muitas mulheres, talvez em todas as mulheres do mundo. Mas a primeira imagem que vi foi a da minha mãe – Sirlei – subindo uma ladeira com um balde d’água na cabeça e outro em uma das mãos. Eram tempos difíceis aqueles em Itanhenga. Não tinha água, não tinha luz. Só um pouco de esperança – e isso não era enredo de filme de chorão – era de verdade. Buscávamos água no buraco quente, na verdade um buraco mesmo, onde os miseráveis disputavam espaço em volta de uma cacimba. A água era gosmenta, com gosto esquisito, mas a gente bebia sem reclamar. Acho que por falta de conhecer o que era água boa, até gostávamos da com gosto de lama.

 

Minha mãe tinha o cabelo comprido, liso, bonito, parecia uma índia. Ela era linda, grande, gigante! Quem olhasse para a sua aparência física nunca imaginaria que ela havia passado por várias cirurgias no coração, que insistia em querer parar de bater. Mas ela queria viver. Era vida. A água, carregada a custo de tanto suor, serviria para fazer nosso almoço e jantar, e, entre outras coisas, lavar a roupa do meu pai. Ele era muito vaidoso, gostava principalmente das camisas muito bem lavadas e passadas. Minha mãe sabia disso e fazia seu gosto. Ela sabia também que quando ele escolhia a camisa vermelha de manga comprida, era para ver outras mulheres. Sirlei tinha que ser mãe, esposa, professora, dona-de-casa, e tolerante. Muito tolerante.

 

Quando meu pai saía, todo perfumado e com a roupa tinindo de tão bem lavada e passada – e, no caso da camisa vermelha, também bem engomada – minha mãe chorava baixinho para que eu e meu irmão não escutássemos. Mais tarde – de madrugada – meu pai chegaria bêbado, fedendo a puta e ainda levaria minha mãe para a cama. Ele era insaciável. Ela ia. Sempre ia. Ela o amava. Sua tristeza maior era quando meu pai não voltava – e às vezes isso acontecia. Um dia eu o segui – tinha apenas 8 anos, podia tudo. Incrível como o Lino se transformava quando chegava àquele lugar estranho, fedendo a mijo, com muitas garrafas de bebidas de todas as cores penduradas na parede de tábuas mal pregadas. O seu rosto sombrio e fechado dava lugar a sorrisos, gargalhadas. Ele lascava tapões nas bundas das mulheres feias, sujas – com o rosto coberto de maquiagem barata – e tomava copadas de cachaça. Isso parecia diverti-lo muito.

 

No auge da minha inocência infantil, fiz planos de matar a mulher que ele beijou – a mais feia de todas – para vingar a honra da minha mãe. Eu não me conformava... minha mãe era linda, fiel, honesta, trabalhadora, e meu pai a traía com a primeira piranha que via num butiquim. Voltei para casa e não contei nada para a Sirlei. Ela já sofria muito. Fiquei semanas sem conversar com o Lino. Minha mãe aguentou a parada. Aguentou até morrer. Percebi mesmo a sua força quando ela se foi. Tudo desmoronou. Minha irmãzinha também se foi, depois meu irmão. O disco voador parecia ter muito espaço. Eu e meu pai seguimos caminhos diferentes. Somos homens. Somos burros. Sirlei parecia nos prender em uma espécie de Consciência Coletiva, era nossa estrutura, nossa razão de viver. Nossa razão de nos tolerar. Muitos anos se passaram e sua imagem e tudo o que ela disse permanecem vivos em meu coração e mente. Toda vez que preciso de colo de mãe – Guerreiro também chora – descubro que estou sozinho num planeta tão grande, tão bonito, e às vezes tão injusto.

 

 

Mas existem muitas Sirleis por aí, ocupadas com seus Linos, seus Elers, suas vidas. A chapa é quente mesmo. Às vezes quente demais. Mas a mulherada já dominou o mundo. São elas que casam e dormem com os donos de tudo, sabem de seus gostos, desgostos. Os consolam quando estão tristes, dão carinho quando precisam, lavam e passam suas roupas, os lembram que são apenas homens. A Mãe Conceição criou – e cria! – mais de cem filhos. A Nenê Preta assistiu a glória e decadência do Porto. Viu suas amigas prostitutas sendo expulsas de lá – e esperou o amado voltar. A Dona Rosa já encarou – e encara – cabra safado na época do coronelismo por essas bandas e continou de pé. Valeu Dona Rosa!

 

Dia desses Dona Conceição – que nem deve conhecer a Mãe Conceição – enterrou o único irmão, que morreu de depressão pela perda da esposa dias antes. Ficou triste, claro, mas lembrou dos 16 filhos que colocou no mundo e das dezenas de netos que vivem sob sua tutela. Alguém tem que ser forte para botar ordem na casa – e também não pode tirar o olho do marido, Seu Graço, que voltou a ser criança. Um amor de criança. Tem uma rocinha que os latifundiários insistem em querer tomar, umas galinhas, sombra com fartura e as panelas de sua casa são bem grandes. Dá para alimentar os viajantes que passam pelo Dilô Barbosa. E passam tropas deles.

 

Dona Jane sobreviveu a um casamento com o velho Beto. Imaginem. Heroína. Segura a onda de filho vagabundo – seu e dos outros ainda. Não deixa ninguém magoá-la. Quando isso acontece o bicho pega.

 

Minha vó, Mãe Preta, analfabeta, conhece todos os becos e guetos da Grande Vitória. Não precisa de ajuda nem para pegar ônibus. Teve que aprender à força para salvar os filhos e netos de arapucas que eles insistiam em cair. A matriarca dos Alves Luiz parece imortal. E é.

 

A Tamira vende amor no Nova Estrela, com o dinheiro cuida dos três filhos menores. Seu ex-marido há muito tempo foi na esquina comprar um maço de cigarros e nunca mais voltou. Típico. E ela gosta muito da profissão.

 

Saulo tirou Dorá de dentro de um puteiro. Ela jurou amá-lo, e o faz até hoje. Lhe deu quatro filhos, que são gente da melhor qualidade. No início a tal da sociedade esperneou, não achava certo uma prostituta casar com um homem direito como o Saulo. Ele deu de ombros. Ela sorriu. São Felizes.

 

A Telma, esposa do Ito, também tem uma missão e tanto: cuidar do marido, que é boêmio, mas a ama e é do bem. O amor pode tudo.

 

Tutúia, mãe de Lúcia e Sílvia, depois de amargar vários anos trabalhando como meeira na zona rural de Rio Novo, divisa com as Minas Gerais, foi para a Cidade – havia cansado de pelejar com o chão duro. Seus cabelos mal penteados, o andar capenga e a aparência rústica deixavam as crianças com medo e faziam os adultos se afastarem. Não conseguiu emprego e passou a pedir comida de casa em casa. A despensa vazia a levou à prostituição com bêbados e velhos safados. Durante mais de duas décadas a casa de Tutúia foi visitada por um bando de embriagados e senis, que lhe garantiram algum sustento. Logo Lúcia e Silva seguiram o caminho da mãe. Daí a casa passou a ser freqüentada por bêbados, velhos safados e seus filhos e netos.

 

No dia de Judas, os bonecos eram arrastados pelas principais ruas da Cidade e queimados no quintal da casa de Tutúia. A brincadeira acabava quando ela espantava a molecada à base de cabadas de vassoura – do lado da rua, a pedrada comia solta. Depois de ser a primeira mulher de três gerações, Tutúia morreu. E teve um funeral digno de uma personalidade, com direito a flores e discurso. Os moleques – agora rapazes feitos, e bêbados, choraram no adeus à velha prostituta que havia se tornado uma lenda. Sílvia casou e tem quatro, cinco filhos. Lúcia, já passando dos 50 anos, continua solteira, cuidando dos seis, sete filhos – de pais diferentes – com o dinheirinho conseguido das visitas. E a ‘Nêga’, sua filha do meio, ‘disse: tem mais um pra chegar’. Tudo na mesma casa onde sua mãe morava.

 

Os bonecos de Judas continuam sendo queimados no mesmo quintal.

 

Ainda nova Morena conheceu o amor. Desde cedo já sabia exatamente o que queria: casar, ter casa, filhos e ser feliz. Quase uma unanimidade. Conheceu um rapaz, houve desencontros e veio a decepção, a saudade de não se sabe ao certo de quê, a falta de esperança. Seus problemas – de corações e mentes – pareciam ter chegado ao fim quando conheceu outro cara, que depois viria se tornar seu noivo. A alegria, o medo gostoso e a atração pelo desconhecido foram substituídos pela frustração – e pelos anos em vão fazendo planos de felicidade. Pelas horas e horas que ficava plantada numa mesa de bar escutando as gargalhadas do noivo, que falava de futebol, mulheres, bebidas, carros com amigos. Os grilhões que a prendiam – a não se sabe ao certo a quê – estavam se tornando indestrutíveis: e a cada dia ela ficava mais infeliz. Já estava casada, faltava apenas oficializar.

 

Eis que um dia foi descoberta por um poeta, que lhe ensinou a dançar a Dança da Vida. Foi mágico. Ela se tornou sua Musa Inspiradora. Ele passou a roubar seus sonhos, algumas de suas horas com o noivo.

 

Entre um poema e outro, uma ou outra flor roubada, a paixão explodiu em forma de versos, beijos, tesão, amor camuflado de amizade. Cumplicidade. O noivo, desconfiado da felicidade de Morena, decidiu adiantar a data do casamento. Aterrorizada, ela tentou demovê-lo da idéia. Não queria casar com ele, tampouco com o poeta – que, ela sabia, tinha outras musas inspiradoras. Então foi assim – nessas encruzilhadas preparadas por anjos ou demônios – que, depois de tantos anos, ela reencontrou o primeiro namorado. Com ele, o tal do primeiro amor, redescobriu o amor. A proposta do rapaz era simples: vamos ser felizes, e para sempre. Morena, na verdade uma mistura de loura com morena, escreveu uma carta para o poeta: “Obrigado por tudo”. Quanto ao seu ex-noivo, só lhe restou a embriaguês durante dias, meses, talvez a vida inteira, e chorar pela mulher que se foi. O poeta (ah, esse...) sofreu como só um poeta pode sofrer, mas ficou feliz com o desfecho. Escreveria um poema sobre o caso, acaso, sei lá – diria coisas como: ‘Paixão, tesão, sei lá, primeiro a gente enlouquece, depois vê no que vai dar’ – e ficaria tudo bem.

 

Mãinha é a matriarca dos Antunes – uma família porreta! Casada com Painho há anos de perder a conta, é amor puro, e pra todo mundo. Um dia Mãinha foi parar no hospital. Colocaram seu corpo, frágil pelos anos vividos, sobre uma mesa fria e o abriram. Fizeram isso várias vezes. O médico, numa mistura de sinceridade e frieza mórbida, desesperou os Antunes: “Ela tem pouquíssimas chances de sobreviver”. Foi no superlativo mesmo. A alegria, desapareceu, perderam o sentido das coisas. Rostos risonhos foram substituídos por expressões de lágrimas.

 

O patriarca Painho, cego dos olhos, mas com uma alma de visão gigantesca (claro!), não queria saber de papo: queria a esposa de volta. Quando Mãinha se despediu do hospital, médicos, enfermeiros, pacientes choraram. Ela sobreviveu e sua rugiu novamente no lar dos Antunes. Mãinha queria muito viver, sua presença era necessária aqui – Painho sucumbiu depois e precisou muito da esposa para encontrar sentido em continuar vivendo. Juntos fizeram a vida vencer morte…

 

Mãinha vive. Nunca vai morrer. Painho também não...

 

A Cipiône é aquela do ‘Senhoras bondosas preparam café quente e forte para os navegantes. Emprestam colchas de lã da família para esquentar homens sedentos por calor’. Do Transmutação. E ela é porreta. Deixa latas de café, feijão e carne seca reservadas na despensa para os que precisam. O cobertor de lã também sempre está lá – e ela empresta com a promessa de que será devolvido. Os chegantes sempre chegam. E sentem frio. Obrigado Cipiône...

 

É assim.

 

Talvez isso tudo que está escrito seja só uma desculpa pra poder me lembrar um pouco mais de minha mãe. Talvez também seja pra contar sobre todas as mulheres do mundo. Elas são bem parecidas. Ela é todas mesmo.

Júnior Eler é jornalista


Núcleo Piratininga de ComunicaçãoVoltar Topo Imprimir Imprimir
 
 NPC - Núcleo Piratininga de Comunicação * Arte: Cris Fernandes * Automação: Micro P@ge