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Sem independência, não há TV pública

Por Eugênio Bucci

Há um discreto avanço administrativo na Medida Provisória (MP) 398 de 2007, que autorizou o Poder Executivo a criar a Empresa Brasil de Comunicação, a EBC, estatal responsável pela TV Brasil. A fusão de duas antigas instituições - a TVE do Rio de Janeiro e a Radiobrás - em uma terceira, totalmente nova, traz racionalidade à gestão das emissoras federais, além de economia de recursos e ganhos de escala. Nesse sentido, o governo acertou: superou divergências e formulou uma proposta mínima para a modernização do setor.

Ocorre que, como alertei há duas semanas neste mesmo espaço, a MP é tímida diante do que precisa ser feito. Se representa uma evolução administrativa, está longe, muito longe, de avançar em matéria de independência - e, sem independência, sobretudo independência ante o governo, não há TV pública de verdade. Agora, quando a matéria tramita no Congresso Nacional, os parlamentares têm a oportunidade de corrigir a falha, ao menos em parte.

Segundo estabelece a MP 398, a EBC é uma empresa pública semelhante à velha Radiobrás: ainda é vulnerável a interferências governamentais. Quanto a isso, as alterações do relator, deputado Walter Pinheiro (PT-BA), não trouxeram maiores novidades. Mas ainda há tempo. Por pelo menos dois caminhos, o Congresso poderia tentar elevar o grau de autonomia política e editorial da EBC.

O primeiro caminho passa por aumentar o poder do Conselho Curador. Embora inteiramente nomeado pelo presidente da República, esse conselho tem o compromisso declarado de reunir representantes da sociedade e de agir com altivez. Pois bem, se isso é mesmo para valer, cabe perguntar: por que ele nem sequer participa, nem mesmo de modo indireto, da eleição dos dirigentes da empresa? Por que apenas o presidente da República e o Conselho de Administração, composto unicamente de representantes do governo, podem decidir sobre quem serão os diretores? Se quiser alterar esse quadro, o Legislativo deve encontrar formas de envolver o Conselho Curador na escolha dos diretores-executivos e, com isso, reduzir um pouco a potencial influência do Palácio do Planalto sobre as decisões da nova empresa. A forma para se viabilizar essa alteração dependerá, por certo, da legislação que disciplina o funcionamento das empresas públicas, mas alguma saída há de existir. Está nas mãos do Congresso.

A segunda modificação tem ainda mais urgência. A prevalecer o que dispõe a MP - em dispositivos mantidos pelo relator -, a EBC ficará vinculada à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, cujo ministro conservará a prerrogativa de indicar o presidente do Conselho de Administração, órgão superior de direção da estatal. Sejamos claros: esse vínculo institucional da EBC com a Presidência da República vai na contramão dos melhores princípios da comunicação pública. Nos Estados democráticos, emissoras públicas têm muito mais afinidade com a área da cultura do que com áreas encarregadas da agenda da Presidência da República. Isso significa que devem ser tratadas como entidades culturais, não como postos avançados da comunicação de governo.

A Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República não é um organismo com finalidades culturais. Basta ver do que ela se ocupa. Em primeiro lugar, gerencia a publicidade do governo, ou seja, compra espaço publicitário nos meios de comunicação privados. Além disso, cuida da assessoria de imprensa da Presidência da República, trabalhando para promover uma imagem favorável do presidente. Faz comunicação de governo, não comunicação pública. Nada tem que ver com cultura em sentido amplo - ou com a atividade jornalística em sentido estrito. Aliás, pelos cânones da ética jornalística, um organismo dedicado à assessoria de imprensa não deveria supervisionar uma empresa pública encarregada de informar com objetividade. Simples assim. Se se quer de fato uma EBC jornalística, não se pode querer uma EBC vinculada à Presidência da República.

As incompatibilidades são claras. Fiquemos apenas num exemplo. No início de fevereiro, a Secretaria de Comunicação Social organizou e conduziu uma coletiva em que três ministros de Estado - cujos gabinetes funcionam dentro do Palácio do Planalto - sustentaram que a divulgação dos gastos com cartões corporativos da Presidência poria em risco a segurança nacional. Trata-se de uma linha de raciocínio que se opõe ao direito à informação e, portanto, ao espírito do jornalismo. Como poderia então o jornalismo, mesmo em uma empresa pública, submeter-se a essa lógica?

A verdade é que os propósitos e os métodos da assessoria de imprensa - em órgãos públicos ou privados - não são compatíveis com os propósitos e métodos do jornalismo. Pretender o contrário é confundir a opinião pública, tentando levá-la a crer que não há oposição natural entre o papel de difundir versões oficiais e o papel de informar o cidadão com objetividade. É, de resto, muito improvável que um jornalismo independente possa prosperar à vontade dentro de uma estrutura funcionalmente tão próxima à Presidência da República.

Alegam que, na condição de empresa pública, a EBC desfrutará de autonomia administrativa. É fato. Entretanto, vinculada ao Planalto, ela estará mais exposta ao risco da confusão de papéis. Para baixar riscos dessa natureza, emissoras públicas - dedicadas, por definição, à diversidade cultural e à informação apartidária - ficam mais confortáveis e mais livres quando se relacionam com o Poder Executivo por meio da área da Cultura. Em síntese, é ao Ministério da Cultura que a EBC deveria se vincular. Emissoras públicas são mais públicas quando sabem guardar distância da comunicação de governo.

Fonte: O Estado de S.Paulo - 28 FEV 08


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