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Cinema
Tropa DA elite ou Matou na favela e foi ao cinema

"Homem de preto,
qual é sua missão?
É invadir favela
E deixar corpo no chão."


Esse "canto de guerra" é um dos muitos entoados pelo BOPE (Batalhão de
Operações Especiais da Polícia Militar) nos seus treinamentos. Muito
significativo e direto, já que mostra claramente onde se localizam os
inimigos a serem abatidos. Trata-se de uma guerra contra os pobres,
recrudescida em tempos neoliberais nos quais a contrapartida da criação de
uma sociedade do desemprego é a necessidade das classes dominantes
ampliarem não somente os meios para obtenção do consenso, mas também os instrumentos coercitivos que mantenham os oprimidos sob controle.
 

Em meio às crescentes denúncias contra a atuação do BOPE nas favelas cariocas, que se pauta por uma política deliberada de extermínio ao arrepio do Estado de direito, surgem nas ruas da cidade cópias do filme Tropa de elite, antes mesmo de seu lançamento no cinema, previsto para o mês de outubro. Tropa de elite já é um sucesso de público, está "na boca do povo", fascina adolescentes e mesmo crianças de classe média, e reúne no orkut uma comunidade com mais de 55 mil membros. Virou também assunto da imprensa, devido ao suposto vazamento da cópia não autorizada, que acarretou processos e ameaças de prisão dos envolvidos. Com produção no estilo hollywoodiano, o filme tem como ponto de partida o livro Elite da tropa, escrito pelo sociólogo e ex-subsecretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro Luiz Eduardo Soares, pelo capitão do BOPE André Batista (negociador no seqüestro do ônibus 174) e por Rodrigo Pimentel, ex-capitão do BOPE. Mas não reproduz fielmente nas telas as histórias nele contadas.
O personagem central nessa articulação é Rodrigo Pimentel, um dos
roteiristas do filme. Pimentel foi "descoberto" no documentário Notícias
de uma guerra particular, de 1997, dirigido por João Moreira Salles e
Kátia Lund e forneceu o mote do título do filme, enunciando uma tese que
vem ganhando fôlego e pautando as políticas de segurança pública do
Estado: vivemos num estado de guerra entre, de um lado, o Estado e os
"cidadãos de bem" e, de outro, os bandidos/traficantes. E não se trata de
qualquer guerra. Mas sim de uma guerra total que, nos moldes da "guerra ao terror" empreendida por Bush, justifica a suspensão dos direitos humanos e legitima práticas ilegais como torturas e execuções sumárias com base na idéia de que elas são necessárias para garantir a segurança pública. É preciso lembrar ainda que argumento semelhante foi amplamente utilizado, na história recente do país, para justificar os arbítrios cometidos pelo Estado durante a ditadura militar. No caso do filme, é o narrador, capitão Nascimento, que afirma: "se o BOPE não existisse, os traficantes já teriam tomado a cidade há muito tempo".

Nessa lógica de um tudo ou nada distorcido, quem defende direitos humanos, defende os bandidos e é cúmplice da violência urbana que assola a cidade.

Cúmplices são também os que consomem as drogas ilícitas vendidas nas favelas.

O tráfico de armas (e a indústria bélica que dele se beneficia), as ligações extra-favela do tráfico que, como todos sabem, atingem autoridades que organizam de fato as redes do crime, cujo elo mais fraco são os "vagabundos" assassinados cotidianamente pelo Estado, não são levados em conta nesse argumento. Numa das cenas mais chocantes do filme, capitão Nascimento, após comandar uma ação que resulta na morte de um traficante, esfrega o rosto de um estudante, que estava na favela consumindo drogas, em cima do sangue que sai do buraco aberto pela bala no peito do jovem morto e pergunta se ele sabia quem havia matado o rapaz. O estudante diz que foi um dos policiais,
ao que Nascimento responde: "um de vocês é o caralho! Quem matou esse cara
aqui foi você. Seu viado, seu maconheiro, é você quem financia essa merda.
A gente sobe aqui pra desfazer a merda que vocês fazem." 
 

Portanto, coerção e consumo estão no centro das teses que organizam o filme.

Tropa de elite conta a história do drama privado do capitão Nascimento,
significativo nome para um oficial "padrão" de uma polícia que tem como
símbolo uma faca na caveira. Capitão Nascimento vai ser pai e o nascimento
de seu filho o impulsiona a buscar um substituto no comando de uma
guarnição do BOPE. Cansado da "guerra" cotidiana travada nas favelas
cariocas, com síndrome do pânico e pressionado pela esposa grávida,
Nascimento é um herói humanizado, um personagem complexo,
ao mesmo

tempo forte, incorruptível, carismático e também frágil, capaz de

sentir remorsos pela morte de um menino fogueteiro, denominado por ele
"sementinha do mal", que resulta de uma operação sob seu comando. Os
candidatos a substituto de Nascimento são Neto e Matias, aspirantes a
oficiais da polícia militar que se negam a participar dos esquemas de
corrupção da corporação e, por conta disso, acabam se incorporando ao
curso preparatório do BOPE. Neto é descrito como tendo a polícia no
coração. Destemido e impulsivo, exímio atirador, gostava dos combates nas
favelas e era o favorito de Nascimento. Seu amigo Matias, negro e de
origem pobre, era mais racional, "gostava da lei" e se dividia entre ser
estudante de direito da PUC e pertencer à polícia. Seguindo a
classificação de Nascimento, os policiais cariocas só têm três
alternativas: "ou se corrompem, ou se omitem ou vão para guerra".
Aprendizes de heróis, Neto e Matias só poderiam seguir a terceira opção.
Por conta da faculdade, Matias se envolve com uma menina de classe média
alta que dirige uma ONG patrocinada por um político no Morro dos Prazeres
e "fechada" com o chefe do tráfico na favela. A princípio, seus colegas da
faculdade, ligados à ONG, não sabem que Matias é policial. Todos os
estudantes são consumidores de drogas ilícitas. Um deles é "avião" e vende
drogas na universidade. Baiano, o chefe do tráfico na favela da ONG,
assim como os colegas e a namorada de Matias descobrem que ele é policial
através de uma foto que sai publicada nas páginas de um jornal. Esse fato
desencadeia uma série de eventos que culminam na morte de Neto e na
conversão definitiva de Matias em oficial do BOPE durante a caça a Baiano,
motivada pela necessidade de vingar a morte do amigo. O policial que
"gostava da lei" passa a torturar e executar, provando assim sua conversão
de corpo e alma. O homem preto se torna homem de preto, "caveira, meu
capitão". Nossos mariners tupiniquins são apresentados como soldados
muito bem treinados, capazes de suportar um treinamento destinado a
poucos, uma elite exemplar com um papel fundamental no estado de sítio em
que vivemos: conter os pobres. Tropa de elite recolhendo corpos supérfluos
daqueles que, em outros tempos, eram exército de reserva de mão-de-obra e
que hoje, em meio ao desemprego estrutural e à ditadura do capital
financeiro, são o lixo da sociedade. A necessidade de conter (e mesmo
eliminar) os pobres é o objetivo dessa guerra particular ou privada e,
nesse contexto, uma tropa de elite se configura como uma tropa DA elite,
necessária para garantir a ordem e o respeito à propriedade privada. Isso
explica porque 100% das operações do BOPE são realizadas em favelas. No
filme, o discurso que legitima o BOPE e suas ações é persuasivo e se
articula em três níveis. 
 

Num primeiro nível, o BOPE aparece como uma resposta à ineficiência e

corrupção da "polícia convencional" e aos políticos que a alimentam.

Assim, essa elite de policiais é apresentada como incorruptível e como um padrão

a ser seguido, de referência internacional. O lema "faca na caveira e nada

na carteira" resume esse discurso moralista e pragmático que atende

perfeitamente aos apelos midiáticos por ordem e moralidade.  

Um segundo nível pode ser identificado na apresentação do BOPE como uma

seita que, através de um árduo rito de passagem – o curso de treinamento -,

seleciona homens fortes, honestos e "formados na base da porrada", preparados

para resistir às piores provações. A seleção é a base da consolidação de uma

camaradagem entre essa elite, em oposição àqueles que "nunca serão",

reatualizada nas práticas cotidianas de transgressão da lei. Numa das cenas

do filme, um coronel e seus comandados, entre eles Nascimento, estão

organizando as turmas do curso preparatório. Entre risadas e num clima

descontraído, o coronel diz que não quer saber de tímpano perfurado em

aula inaugural e de mão cortada. Mesma complacência para com os "excessos",

que afinal sempre podem ser "merecidos", que ocorrem durante as

operações nas favelas. Em tempos de fragmentação, individualismo e

consumismo, podemos imaginar o apelo desse discurso que louva um corpo

de homens unidos por um forte sentimento de pertencimento

a uma elite e por um orgulho quase racial, seres superiores, elevados,

em meio ao mundo de miséria, fraqueza e corrupção. Homens de caráter

em tempos de corrosão do caráter. [1]

O terceiro nível desse discurso persuasivo é o do indivíduo, de seus dramas

pessoais, que humaniza o herói e o aproxima dos seres humanos comuns,

capazes de se reconhecerem e se identificarem com ele. Capitão Nascimento

é o herói que sacrifica a vida pessoal e que não estende sua brutalização à

vida privada. Como na cena em que ele, durante uma operação na favela,

logo depois de se emocionar ao ouvir ao celular o coração do filho batendo
na barriga da mãe, manda seu subordinado atirar dizendo: "senta o dedo
nessa porra!". Ou no momento em que, de farda, vindo da "guerra", chora ao
ver seu filho recém-nascido na maternidade. Nascimento trata sua mulher de
forma amorosa e se sensibiliza com as pressões que ela faz para que ele
saia do BOPE. Com exceção de uma cena, após a morte de Neto, a única em
que ele aparece fardado no ambiente doméstico, na qual ele grita: "quem
manda nessa porra aqui sou eu e você não vai mais abrir a boca para falar
do meu batalhão nessa casa". Significativamente, após impor seu comando em
casa, ele fica curado dos ataques de pânico e joga fora os medicamentos
psiquiátricos que estava usando. Todos esses níveis se articulam em torno
da naturalização da idéia de que vivemos num estado de exceção, uma
situação atípica que demandaria regras também atípicas para sua solução.
Essa naturalização permite um relativismo de valores e práticas, de
direitos e garantias no que dizem respeito à dignidade da vida humana.
Falar em direitos humanos não faz nenhum sentido num estado de coisas que
institui valores desiguais para as vidas humanas de acordo com critérios
como cor da pele, origem social e mesmo idade, já que os jovens pobres e
negros são hoje as principais vítimas de homicídios, bem como formam a
maioria da população carcerária do país. No entanto, é preciso afirmar
que o estado de exceção na verdade é a regra sob o capitalismo, que não
pode prescindir, sobretudo em sociedades dramaticamente desiguais como a
brasileira, do trato brutal com os de baixo. Não há como não lembrar aqui
de um poema escrito por Bertolt Brecht num contexto de vitória do fascismo
na Europa, no qual outros homens de preto, em defesa da ordem do capital,
esvaziaram de significado a palavra humanidade:

A exceção e a regra

Estranhem o que não for estranho.
Tomem por inexplicável o habitual.
Sintam-se perplexos ante o cotidiano.
Tratem de achar um remédio para o abuso.
Mas não se esqueçam de que o abuso é sempre a regra.

[1] Richard Sennet. A corrosão do caráter. Conseqüências pessoais do
trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro, Record. 1999.

Adriana Facina (UFF/Observatório da Indústria Cultural)

Mardonio Barros (MST/Observatório da Indústria Cultural)

Claudia Trindade (Casa de Oswaldo Cruz)


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 NPC - Núcleo Piratininga de Comunicação * Arte: Cris Fernandes * Automação: Micro P@ge