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Entrevistas
Mike Davis, Autor de Planeta favela

ComCiência
11/06/2007


Dossiê Habitação

Em entrevista, o autor do recém-lançado Planeta Favela, diz que a maior parte da população urbana vive hoje em imensos subúrbios sem infra-estrutura e serviços, os quais escapam a qualquer conceituação tradicional

O urbanista, historiador e ativista político Mike Davis tem publicado uma série de trabalhos que se tornaram referências no meio acadêmico, tais como Ecologia do medo, Holocaustos coloniais, e Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles.  Não apenas sua obra, mas também sua trajetória de vida é marcada por experiências instigantes.  Davis já foi caminhoneiro, açougueiro e militante estudantil.  Atualmente é professor no Departamento de História da Universidade da Califórnia, em Irvine, e editor da New Left Review.  Ele também contribui para a publicação britânica Socialist Review, do partido socialista dos trabalhadores da Grã-Bretanha, e já atuou como ensaísta e jornalista em publicações como The Nation e New Statesman.

Planeta Favela, lançado no Brasil no final de 2006, é mote para a entrevista abaixo, publicada originalmente no blog BLDG.  Na obra Davis aborda o processo de favelização e empobrecimento das cidades do terceiro mundo.  Alvo de diversas traduções, em especial de trechos que parecem ser os mais tocantes para a questão das cidades no terceiro mundo, a entrevista recebeu, para ser publicada na ComCiência, uma tradução livre da versão em espanhol publicada pelo Instituto Argentino para o Desenvolvimento Econômico.

Os subúrbios das cidades do terceiro mundo são o novo cenário geopolítico decisivo

Em poucos anos, pela primeira vez na história da humanidade, a população urbana superará em número a população rural.  Entretanto, a maior parte dessas pessoas não vive no que normalmente entendemos por cidades, mas em imensos subúrbios sem infra-estrutura e serviços, os quais escapam a qualquer conceituação tradicional.  Mike Davis, um dos pensadores mais recomendados dos últimos anos aborda esta nova realidade em Planet of slums (traduzido no Brasil como Planeta favela), que é um desses livros que podemos chamar de imprescindíveis.

Na sua descrição de uma nova “geografia pós urbana”, o senhor utiliza um vocabulário inovador: corredores regionais, conurbações difusas, redes policêntricas, periurbanização .... Mike Davis - Trata-se de uma linguagem em pleno processo de desenvolvimento e é nela que apenas reside o consenso.  Os debates mais interessantes têm surgido a partir do estudo da urbanização no sul da China, Indonésia e no sudeste da Ásia e giram, principalmente, em torno da natureza da periurbanização na periferia das grandes cidades do terceiro mundo.  Com este termo refiro-me ao lugar no qual encontram-se o campo e a cidade e a pergunta que se coloca é: estamos diante de uma fase temporária de um processo complexo e dinâmico ou esta natureza híbrida será mantida ao longo do tempo?

A nova realidade periurbana apresenta uma mistura muito complexa de subúrbios pobres, deslocados do centro das cidades e, no meio deles, pequenos enclaves de classe média, freqüentemente de construção recente e com muros.  Nessa periurbanização encontramos também trabalhadores rurais atraídos pela manufatura de baixa remuneração e moradores dos centros urbanos que se deslocam diariamente para trabalhar na indústria agrícola.  Curiosamente, este fenômeno despertou também o interesse de analistas militares do Pentágono, que consideram essas periferias labirínticas um dos grandes desafios com o qual irá se deparar o futuro com tecnologias bélicas e projetos imperialistas.  Após uma época em que se centraram no estudo dos métodos de gestão empresarial moderna – o just-in-time e o modelo Wal Mart – esses militares parecem estar agora obcecados com a arquitetura e o planejamento urbano.  Os Estados Unidos desenvolveram uma grande capacidade para destruir os sistemas urbanos clássicos, mas não tiveram nenhum êxito nas "Sader Cities" do mundo.  O caso de Faluya é sintomático: depois que a destroçaram com tanques de guerra e bombas cluster, os mesmos insurgentes com os quais se quis acabar a reocuparam quando acabou a ofensiva.  Acredito que tanto a esquerda quanto a direita concordam que os subúrbios das cidades do terceiro mundo são o novo cenário geopolítico decisivo.

Qual é a representação cultural mais adequada para os subúrbios do terceiro mundo que o senhor descreve em Planeta favela?  Davis - Se Blade Runner foi um dia o ícone do futuro urbano, o Blade runner dos subúrbios é Black hawk down 1.  Reconheço que não posso deixar de vê-lo: sua entrada em cena e sua coreografia são incríveis.  O filme representa com perfeição esta nova fronteira da civilização: a "missão do homem branco" nos subúrbios do terceiro mundo e seus exércitos ameaçadores com aspecto de videogame, enfrentando-se com heróicos tecnoguerreiros e com os cavaleiros da Força Delta.  É claro que, do ponto de vista moral, é um filme aterrador: é como um videogame no qual é impossível contar todos os somalis que morrem.

Além disso, a realidade é que os brancos não são maioria entre os cavaleiros deslocados para o estrangeiro: são americanos, sim, mas quase todos eles são também procedentes dos subúrbios.  O novo imperialismo, como o velho, tem essa vantagem: a metrópole é tão violenta e aloja tanta pobreza concentrada que produz excelentes guerreiros para este tipo de campanha militar.  Um professor que tive escreveu um livro magnífico que mostrava, contra todo prognóstico, que nas vitórias nas campanhas militares do Império Britânico o fator decisivo não era a tecnologia armamentista, mas a habilidade dos soldados britânicos no corpo-a-corpo com a baioneta, uma habilidade que era conseqüência direta da brutalidade da vida cotidiana nos bairros baixos ingleses.

Para além do giro em torno da violência e da insurgência, está surgindo algum sistema de auto-governo nos subúrbios?  Mike Davis - A organização nos subúrbios é extraordinariamente diversa.  Em uma mesma cidade latino-americana, por exemplo, existem desde igrejas pentecostais, até Sendero Luminoso, passando por organizações reformistas e ONGs neoliberais.  A popularidade de uns e outros coletivos varia muito rapidamente e é muito difícil encontrar uma tendência geral.  O que está claro é que na última década os pobres – e refiro-me não apenas aos dos bairros urbanos clássicos que já mostravam níveis altos de organização, mas também aos novos pobres das periferias – têm se organizado em grande escala, seja em uma cidade iraquiana como Sader City ou em Buenos Aires.  Os movimentos sociais organizados colocaram sobre a mesa reivindicações de participação política e econômica sem precedentes, que impulsionaram um avanço na democracia formal.  Sem dúvida, em geral os votos têm pouca relevância: os sistemas fiscais do terceiro mundo são, com raras exceções, tão regressivos e corruptos, e dispõem de tão poucos recursos, que é quase impossível colocar em marcha uma redistribuição real.  Ademais, inclusive naquelas cidades em que existe maior grau de participação nas eleições, o poder real é transferido para agências executivas, autoridades industriais e entidades de desenvolvimento de todo tipo, sobre as quais os cidadãos não têm nenhum controle, e que tendem a ser meros veículos locais dos investimentos do Banco Mundial.  A via democrática em direção ao controle das cidades – e, sobretudo, dos recursos necessários para realizar as reformas urbanas – segue sendo incrivelmente difícil.

Em quase todos os programas governamentais ou estatais que procuram abordar a pobreza urbana, o subúrbio pobre é compreendido como um simples subproduto da superpopulação.  Não tenho nenhuma confiança no conceito de superpopulação.  A questão fundamental não é se a população tem aumentado muito, mas como fechar a equação de ter, por um lado, a justiça social e o direito a um nível de vida decente e, por outro lado, a sustentabilidade ambiental.  Não há pessoas demais no mundo, o que existe é, obviamente, um consumo excessivo de recursos não renováveis.  Claro que a solução deve passar pela própria cidade: as cidades verdadeiramente urbanas são os sistemas mais eficientes, ambientalmente falando, que criamos para a vida em comum.  Oferecem altos níveis de vida por meio do espaço e do luxo públicos, ou permitem satisfazer necessidades que o modelo de consumo privado suburbano não pode permitir-se.  O problema básico da urbanização mundial atual é que não tem nada a ver com o urbanismo clássico.  O autêntico desafio é conseguir que a cidade seja melhor como cidade.  Planeta favela dá razão aos sociólogos que assinalaram nos anos 50 e 60 os problemas da suburbanização norte-americana: ocupação caótica do território, incremento dos tempos de deslocamento do domicílio ao trabalho e dos recursos associados a esse deslocamento, deterioração da qualidade do ar e falta de equipamentos urbanos clássicos.

Mas não existem cidades excessivamente povoadas para um entorno escasso em recursos, no qual estão implantadas?  Davis - A inviabilidade de uma megacidade tem menos a ver com o número de pessoas que vivem nela do que com seu modo de consumir: se são reutilizados e reciclados os recursos e se compartilha o espaço público, então é viável.  Tem que se levar em conta que a pegada ecológica varia muitíssimo segundo os grupos sociais.  Na Califórnia, por exemplo, a ala direita dos movimentos conservacionistas sustenta que há uma enorme onda de imigrantes mexicanos que é responsável pelos congestionamentos e pela poluição, o que é completamente absurdo: não existe população com menor pegada ecológica ou que tenda a utilizar o espaço público de forma mais intensa que os imigrantes da América Latina.  O verdadeiro problema são os brancos que passeiam em seus carrinhos de golfe pelos cento e dez campos que existem em Coachella Valley.  Em outras palavras, um homem da minha idade, ocioso, pode estar usando dez, vinte ou trinta vezes mais recursos que uma chicana que tenta seguir adiante com sua família num apartamento do centro da cidade.

Não se pode deixar levar pelo pânico do crescimento da população ou da chegada dos imigrantes; o que se deve fazer é pensar como se podem fomentar as atitudes do urbanismo para conseguir, por exemplo, que subúrbios como os de Los Angeles funcionem como uma cidade no sentido clássico.  Também se deve respeitar a necessidade absoluta de conservar as zonas verdes e as reservas ambientais sem as quais as cidades não podem funcionar.  A tendência atual em todo o mundo é que os pobres busquem acomodação em zonas úmidas (de mananciais) de importância vital, que se instalem em espaços abertos cruciais para o metabolismo da cidade.  Aí está o exemplo de Bombaim, onde os mais pobres assentaram-se em um Parque Nacional adjacente e que, de vez em quando, são comidos pelos leopardos, ou de São Paulo, onde se empregam enormes quantidades de substâncias químicas para purificar a água para se livrar de uma batalha perdida contra a poluição na cabeceira de suas fontes de abastecimento.  Se se permite esse tipo de crescimento, se são perdidas zonas verdes e os espaços abertos, os aquíferos são bombeados até esgotá-los e se são contaminados os rios, danifica-se fatalmente a ecologia da cidade.

Tradução: Marta Kanashiro


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