Por Antonio Ozaí da Silva Florestan Fernandes escreve com paixão e razão. Se posiciona, mas não abre mão da análise sociológica. “Talvez o traço principal da obra madura de Florestan Fernandes seja o profundo sentido revolucionário, nutrido pela fusão entre o conhecimento rigoroso e a força da convicção. O esforço quase obsessivo de harmonizar o saber sociológico com a paixão política do socialista faz dos seus escritos uma vigorosa militância”, ressalta Antonio Candido (p. 9). Florestan não esconde sua posição ideológica, nem sucumbe às análises simplistas que transformam a experiência cubana numa espécie de “paraíso terrestre”. Ele “não escamoteia os aspectos negativos, como a tendência ao centralismo estatal, o perigo de hipertrofia e a esclerose burocrática, as falhas devidas a erros etc.”, observa Antonio Candido (p.15). Sua obra tem um significado especial por resultar das suas aulas no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais na Pontifícia Universidade de São Paulo, no primeiro semestre de 1979. Trata-se dos roteiros utilizados pelo autor, cujo objetivo era “introduzir os estudantes ao estudo da revolução cubana” (p. 17). Ele manteve a forma original, “como uma homenagem” aos estudantes “e também como uma evidência de que as salas de aula ainda constituem uma fronteira de luta pela liberdade e pela autonomia da cultura” (pp.17-18). Bela homenagem! Também é bela a sua atitude, em especial se considerarmos a conjuntura histórica da época. Com efeito, em tempos sombrios é mais cômodo se resguardar através dos biombos de uma pretensa cientificidade e conteúdos acadêmicos neutros. Este estudo foi uma importante contribuição ao diálogo com a militância dos movimentos sociais que, em muitos casos, se formou sobre a influência da Revolução Cubana. Sua postura foi corajosa e significativa. A sala de aula deixa de ser o lócus do discurso professoral e passa a ser mais um espaço de afirmação da liberdade e da crítica, num tempo em que era perigoso afirmar tais valores. Aos que apregoam uma educação neutra e imparcial, como se os conteúdos, professores e alunos vivessem nas nuvens, isto parece uma heresia. E, no entanto, a imparcialidade também é ideológica e se traduz na seleção dos conteúdos e na maneira como são trabalhados. Por outro lado, não significa aceitar que a sala de aula se transforme em templos nos quais profetas da utopia fazem proselitismo. A iniciativa do autor também tem o mérito de apontar criticamente para a nossa formação acadêmica colonialista. O fato de eventos históricos como a Revolução Cubana não serem incorporados ao currículo universitário com a mesma facilidade com que se incorporam temas eurocêntricos tem muito a ver com isso. Como observa Florestan, também “decorre, claramente, do teor provinciano de nosso “espírito universitário” (p. 21). A interpretação de Florestan Fernandes sobre a Revolução Cubana foge aos estereótipos teóricos que se pretendem universais. Ele apreende o significado dos acontecimentos que sacudiram a ilha e influenciaram o continente a partir das suas especificidades. É coerente com o estudo do marxismo na América Latina a partir das particularidades culturais e históricas da região. A estrutura da obra, discussões e conclusões demonstram a acuidade da sua análise. Após a introdução, na qual o autor esclarece o seu ponto de vista, como embasará a sua argumentação e discorre sobre a importância do tema e as questões em debate, passa a analisar o passado colonial e neocolonial cubano. Neste momento, o leitor é convidado a resgatar as raízes da sociedade cubana, da colonização espanhola ao novo colonialismo estadunidense. Trata-se dos caminhos e descaminhos que produziram a revolução. Esta surge como a possibilidade de desatar o nó górdio da ordem neocolonial, definindo as forças sociais que a impulsionaram e o seu caráter popular. Assim, é possível compreender como a “revolução dentro da ordem gravitou rapidamente na direção oposta” (p. 85). A guerrilha é o seu instrumento. Analisada na segunda parte do livro, a guerrilha põe em foco a originalidade da Revolução Cubana e sua importância para a América latina. Ela desafia a revolução na ordem, as teses etapistas que grassaram sob a hegemonia stalinista e os modelos teóricos dogmatizados: “O fascínio da Revolução Cubana está em que ela desmente todos os dogmatismos possíveis, tanto os “especificamente científicos” quanto os “puramente socialistas”. O dogmatismo, é certo, não passa de uma simplificação, feita em nome do pensamento dobre a “essência”, a “verdade, o “modo de ser” da realidade pensada. Feito em termos científicos, o dogmatismo desloca a crítica das teorias em favor da verdade absoluta; feito em termos socialistas, ele desloca a crítica dos fatos em favor da única escolha possível” (p. 87).
Esta imprevisibilidade caracteriza a riqueza da revolução. Os esquemas teóricos aceitos pelo pensamento da época foram subvertidos. O autor examina as características da guerrilha, seus líderes, métodos e o significado para os latino-americanos. Ele alerta para a necessidade do desapego ao “europeucentrismo e à poluição cultural estadunidense” (p. 91) e para as peculiaridades nacionais cubanas. Cuba subverte o nacionalismo das elites e vincula-o aos interesses das massas populares. É este caráter popular que tornou possível a vitória da guerrilha e a resistência às investidas estadunidenses. Florestan analisa os desafios enfrentados pelos guerrilheiros diante da conquista do poder, sua importância para a consolidação do poder popular e a construção do socialismo. Ao assumir a direção do Estado, os guerrilheiros têm a tarefa de organizar a economia e a sociedade sob novos parâmetros. Este é o tema da terceira parte do livro. Ele avalia as condições e efeitos do planejamento socialista, as transformações econômicas e as dificuldades para a construção da nova sociedade e do novo homem em Cuba. Para o autor, os trabalhadores se reconhecem na vanguarda e no Estado. A “revolução para os trabalhadores” teria se convertido na “revolução dos trabalhadores, pelos trabalhadores e para os trabalhadores”. Assim, o socialismo torna-se uma possibilidade concreta e “dele brota uma nova Cuba, a Cuba socialista” (p. 261). Isto pressupõe a institucionalização do poder revolucionário. Trata-se da substituição do Estado neocolonial pelo Estado Socialista. A revolução precisa instituir sua legalidade. É este processo que o autor expõe na última parte do livro. Para ele, é nesta fase que a revolução alcança “sua etapa mais construtiva, na qual ela liga-se “para baixo” a todos os estratos do povo e assume um caráter democrático-popular, institucionalizando-se como poder popular organizado” (p. 265). O que está sob foco é a relação das massas com Estado, a forma como este se organiza e se dá a participação popular. Eis uma obra que destoa da realidade que vivenciamos no campus acadêmico. Ela rompe com a ideologia da neutralidade, travestida de objetividade científica. Também diverge do estilo panfletário dos que imaginam transformar a realidade social através do recurso às frases de efeito e o abuso dos argumentos de autoridade. O leitor crítico dos rumos tomados pela revolução cubana – e não me refiro à crítica liberal e/ou de direita – poderá divergir da exposição, em especial sobre temas emblemáticos como a organização do poder popular e sua relação com o Estado. Não há como fugir a isso diante de um assunto dos mais polêmicos, ontem e hoje. Por outro lado, demonstra a complexidade da análise quando se mantém o compromisso entre a paixão revolucionária e a objetividade do cientista social. De qualquer forma, esta obra permanece atual. Militantes, intelectuais, sociólogos e congêneres têm muito a aprender com a sua leitura. A atitude do sociólogo militante Florestan Fernandes é exemplar. Sua obra contribui para a reflexão crítica sobre o papel da intelectualidade e do campus diante da sociedade. Com efeito, temas como a Revolução Cubana estão presentes no campus. Mas de que forma? Enquanto temas curriculares pretensamente isentos de ideologia, isto é, tratados enquanto conteúdos a serem apreendidos e avaliados e/ou, o que não é menos grave, como doutrinas para a conversão dos pequenos profetas, professores/as que confundem seu papel e abusam da autoridade intrínseca ao desempenho da docência. Esta obra é, também, uma importante contribuição àqueles que não sucumbem aos dogmatismos. Mesmo para divergir é preciso estudar a fundo. Por fim, é preciso salientar que os fatos históricos são construções de homens e mulheres que, com acertos e erros, buscam alternativas. Ousam o diferente, merecem respeito. “Assim lutam os povos”! E se não participamos diretamente das suas lutas, devemos, no mínimo, sermos condescendentes. Afinal, nos oferecem a oportunidade de aprender.
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