C - Professora, como começou o seu trabalho sobre a reestruturação produtiva?
Lúcia Freire - Eu a senti na pele quando trabalhava no Serpro. Todo este processo começa em 89, com a entrada do Maílson da Nóbrega no governo Sarney. Não foi à toa que naquele momento o Sarney disse: agora começa o meu governo. Maílson implantou no Serpro a reestruturação neoliberal, com terceirização, redução de quadro e fim de programas de forma autoritária.
C- Por que você escolheu uma empresa estatal, uma ex-estatal e uma privatizada?
Lúcia - Porque eu queria pesquisar o universo do Rio de Janeiro e aqui nós temos a maior empresa estatal, uma ex-estatal totalmente privatizada e uma empresa privada estratégica. Todas muito poderosas e muito ricas. O grande poder das primeiras é que elas produzem insumos básicos, petróleo e aço. E a privada, fundada em 1912, produz gases industriais. A privada representa os primórdios da industrialização. A privatizada representa o início da independência industrial do Brasil no pós-guerra. Eu vi que no Rio nós tínhamos três casos que representam a história das relações de produção no Brasil.
C - Quais os efeitos da reestruturação na vida dos trabalhadores da estatal privatizada?
Lúcia - A empresa usou primeiro a repressão durante a greve de 88 e depois o convencimento. Usou o discurso de que tudo vai melhorar se houver colaboração. O Sindicato, filiado à Força Sindical, ajuda muito nisso. O discurso do Sindicato é o da colaboração, da parceria, do consenso. Como se houvesse interesse semelhante entre empresários e trabalhadores. O representante do Sindicato que tem assento no Conselho diretivo da empresa, compactua com as demissões.
C - Como assim?
Lúcia - Houve um período, próximo a uma eleição no sindicato. A entidade entrou na justiça contra o número excessivo de demissões depois que já havia um acordo negociado com a empresa. Bom, este fato gerou a demissão de um diretor executivo da empresa. O que acontece? O representante do Sindicato ofereceu ao diretor demitido, o lugar dos trabalhadores no conselho da empresa.
C - Qual era o discurso da fábrica?
Lúcia - De que havendo o consenso não haveria mais demissões. Todos ficariam em situação melhor. O resultado é que de 89 a 96 quase 50% dos trabalhadores foram demitidos. E os trabalhadores foram percebendo que com a parceria eles começaram a adoecer mais. As demissões geraram uma sobrecarga do trabalho. Um supervisor me disse que a cada vez que vinha uma leva de demissão, ele pensava: não, não é possível, agora vai parar. Seis meses depois vinha nova ordem para mais cortes.
C - E os salários?
Lúcia - Os engenheiros desta empresa chegaram a ter o menor salário de engenheiro metalúrgico do país.
C - Outro exemplo, além das demissões?
Lúcia - Os benefícios, além de serem reduzidos, saem do critério social para o critérios de méritos. São beneficiados os colaboracionistas.
C - Quais os efeitos da reestruturação na saúde do trabalhador?
Lúcia - A saúde é onde se manifesta a realidade independentemente de qualquer discurso. Os trabalhadores começam a adoecer mais, quer pelas novas tecnologias, quer pelo aumento do caso de doenças que já existiam, como é o caso do benzenismo.
Outro efeito é a doença mental e o alcoolismo. Tanto nos que ficam quanto nos que saem. E também a dependência química.
C - Como é isso na privatizada?
Lúcia - Na privatizada, os casos de pessoas vítimas de alcoolismo e dependência química foram multiplicados por cinco. No hospital local constatei que 90% das pessoas internadas por problemas psíquicos são funcionários da empresa.
Neste caso, os efeitos são ainda mais sérios porque a cidade gira em torno da fábrica. Então aumenta a violência e a prostituição, inclusive a prostituição infantil.
C - E na estatal?
Lúcia - Dependência química, alcoolismo, stress e desarticulação sindical. Nas terceirizadas, o trabalhador é mal remunerado, sem direitos, sem sindicatos.
C - O que é desarticulação sindical?
Lúcia - A reestruturação e novas formas de gestão dividem a classe trabalhadora entre trabalhadores centrais e periféricos. É um tipo de nazismo. Divide a classe trabalhadora entre superiores e inferiores. Os superiores são os indispensáveis, os que têm um conhecimento nobre ou gerentes, que são os que fazem a ponte da idéia neoliberal com a produção. É uma fragmentação interna da classe trabalhadora. Os centrais recebem treinamento, incentivo e até benefícios. O outro não tem direito a nada. Na Petrobras, por exemplo, o funcionário das plataformas trabalha 8 dias e folga 15. O das empreiteiras trabalha 15 dias e folga 8. Este é um dos principais problemas.
O outro, é que o petroleiro hoje não sente mais orgulho em trabalhar na Petrobras. Eles se sentem como se estivessem devendo à sociedade.
C - E na multinacional?
Lúcia - A multinacional é competente na exploração e no obscurecimento. Ela camufla o conflito dos interesses. Não age como na privatizada acabando com o trabalhador, não cumprindo os compromissos. Ela impede o desenvolvimento social e político do trabalhador. O discurso é o mesmo: colaboração, parceira e todos os engodos atuais. É uma participação gerencialista. Tem os assuntos que podem ser debatidos e os que não podem. Só entra o que é para aumentar a produção e diminuir custos. Não entra nem a qualidade. Agora, eles sabem que precisam dos trabalhadores. Por isso, cuidam para que não ocorram grandes acidentes. Não ter acidente é também uma questão de marketing.
C - Qual o perfil do trabalhador desta multinacional?
Lúcia - Já na seleção começa o pro–cesso. São escolhidos aqueles que têm uma ficha tranqüila, que vêm de em–presas piores e se encantam com uma empresa onde haja, por exemplo prevenção contra acidentes. Com o desemprego a valorização de não ter acidente aumenta.
C - Mesmo com salários baixos?
Lúcia - Os salários são abaixo da média do mercado.
C - E a organização sindical?
Lúcia - Na privatizada nunca deixaram acontecer nenhum movimento sindical. Um grande complicador é o fato de haver mais de 120 categorias profissionais, com 120 sindicatos e com 120 acordos.
C - O que se conversa nas reunião dos gerentes com os trabalhadores?
Lúcia - O que o gerente permite. Na Petrobras antes se discutia salário. Debatia-se além dos muros da empresa. Hoje, a idéia é que só se pode discutir o que o gerente pode resolver.
C - Com a reestruturação, sabemos que o trabalhador perde. O que as empresas ganham?
As empresas vão ficando muito mais ricas. Elas vão comprando, comprando. Vão se fundindo e se tornam mega empresas. Se elas eram enormes, elas se tornam megas. A filosofia é se tornar a melhor do mundo. Isto é uma meta nazista. Como todas podem ser a maior? Destruindo o trabalhador e umas às outras. As maiores, que eram 300, que fazem as leis do mercado e que dominam os países, já viraram 210. É uma concentração absurda.