MÃdia
Grande mídia usa as estórias do povo a seu favor
Por Sérgio Domigues Segundo sua editora, “Sou + Eu” é uma revista semanal “totalmente feita pelos leitores”. O diretor de redação da nova publicação, Kaíke Nanne, disse à reportagem do jornal “O Estado de São Paulo” de 13/11/2006 que trata-se de uma tendência internacional. Na Inglaterra, por exemplo, existem publicações com o mesmo perfil que vendem mais de 2,5 milhões de exemplares por semana. A editora da revista brasileira pretende chegar a esses números rapidamente. “Sou + Eu” sai com 850 mil exemplares, a R$ 2,50 cada. Como a nova publicação é da mesma editora que publica o panfleto de direita que atende pelo nome de “Veja”, todo cuidado é muito pouco. A mesma reportagem do “Estado” afirma que o público-alvo de “Sou + Eu” é formado pelos leitores de menor renda. Provavelmente, os mesmos que não são atingidos pela revista “Veja” e sua propaganda aberta contra as forças de esquerda e populares em geral. Mas, que não se espere temas abordando política, economia, governos, ideologias etc. Pelo menos, por enquanto. No primeiro número, por exemplo, a manchete foi a história de uma leitora que abandonou (e foi abandonada) a família rica para se casar com um agente de segurança. A autora recebeu R$ 300,00 pelo relato. Outra narrativa é a jovem portadora de Síndrome de Down, que mostra como leva uma vida normal e está às vésperas de se casar. Tem ainda a experiência de um empresário que escapou do porta-malas de seu próprio automóvel durante um seqüestro relâmpago. Uma seqüência de fotos ensina a destravar o porta-malas por dentro. Também fazem parte da pauta, receitas culinárias, dicas de remédios e cosméticos caseiros, etc. Ou seja, a tendência é a revista publicar depoimentos de “pessoas comuns”, enfrentando situações e problemas da “vida comum” com final feliz e animador. É sem dúvida uma forma competente de ganhar e manter um público leitor fiel. Afinal, quem tiver sua história publicada vai mostrar a seus conhecidos, orgulhoso de ver seu caso em letras impressas numa revista de grande circulação. E quem fica à espera de sua vez faz o mesmo na esperança de ter suas duas páginas coloridas de fama. Mas, além disso, trata-se de uma forma de reproduzir a ideologia dominante. A ideologia do conformismo. Da “vida como ela é” e só vai mudar com o esforço de cada um, individualmente. Um exemplo mais antigo dessa técnica é “Retrato Falado” do “Fantástico”, em que pessoas “normais” enviam casos engraçados ou exemplares para serem interpretados por Denise Fraga. Mais recentemente, no entanto, essa abordagem foi aperfeiçoada. É o caso da “Turma do Gueto”, na Record e de “Central da Periferia”, na Globo. Trata-se de falar de temas que antes só apareciam nas telinhas como noticiário policial, geralmente de caráter apelativo. Ou seja, já que é preciso abordar assuntos como violência, criminalidade, drogas, racismo etc, deixem por conta da grande mídia. Relaxemos em nossas poltronas porque as grandes emissoras e editoras nos explicarão tudo. Não é difícil que nas próximas edições de “Sou + Eu” apareça a lição do dependente de droga que se livrou do vício. Ou do garoto que trabalhava para o tráfico e hoje é Office-boy. Como já foi dito em outro texto, “parece um seqüestro da possibilidade de debater e buscar soluções. O debate entre as comunidades, lideranças sociais, estudiosos, autoridades acaba prisioneiro dos termos que foram pautados pelos aparelhos da grande mídia” (A periferia como centro nas manipulações da Globo). “Storytelling”: estórias para aumentar a exploração e fazer guerras No entanto, este não parece ser um fenômeno a atingir apenas as faixas de menor renda. Um artigo publicado no “Le Monde Diplomatique” de novembro 2006, ajuda a entender a lógica desse tipo de iniciativa. Em “A máquina de fabricar histórias”, Christian Salmon procura explicar o método “storytelling”. Em português, “contar estórias”. Segundo ele, “depois de conquistar a Casa Branca, essa técnica espraia-se para o mundo dos negócios, das ciências sociais, do universo da internete ...”. O artigo cita o professor de jornalismo na Universidade de Columbia, Evan Cornog: “A chave da hegemonia norte-americana é, em grande parte, o storytelling”. E diz que trata-se de uma tendência surgida nos anos 1980, sob a presidência de Ronald Reagan. Seria a partir dessa época que “as stories vieram substituir os argumentos lógicos e as estatísticas nos discursos oficiais”. E parece ter se consolidado. As armas de destruição em massa nunca foram encontradas no Iraque. Qual o problema? Exagerando um pouco, teria sido só um elemento do roteiro que não foi bem resolvido. Enquanto isso, continua o “filme de ação” que já matou mais de 600 mil iraquianos e 3 mil soldados invasores. Não à toa, o “storytelling” foi inventado na terra de Hollywood. Ainda segundo o artigo, essa técnica surgiu de escolas de administração que utilizam narrativas para empolgar os trabalhadores de empresas e, claro, convencê-los a trabalhar mais por menos salário. Salmon ouviu a opinião de Robert McKee, famoso roteirista de Hollywood que em 10 anos tornou-se um “guru” do “storytelling”. Segundo ele: “Motivar o pessoal, é a função essencial dos dirigentes de empresas. Para tanto, é preciso mobilizar suas emoções. E a chave para abrir seus corações é uma story”. Abrir seus corações e fechar suas mentes, óbvio. “Story” em inglês é como “estória” em português. Não se trata exatamente de um relato exato, histórico, com evidências. Mas teria sua validade porque o objetivo é contar a “moral da estória”. E, nestes casos, a moral da estória costuma ser o da perseverança no lugar da contestação, da passividade no lugar da revolta, da competição entre os empregados e da solidariedade em relação aos chefes e gerentes. Mas, também é uma técnica para vender mais. O artigo do “Le Monde Diplomatique” cita Doug Stevenson, presidente do “Story Theater International”: “Vocês venderão melhor se apresentarem uma estória de sucesso, ao invés de descrever as características e vantagens do seu produto ou serviço. Apenas uma história, e está vendido. As pessoas adoram as histórias”. Como a confirmar isso, está em cartaz em diversas salas de cinema uma propaganda em forma de curta-metragem. É sobre o automóvel da Fiat, “Idea Adventure”. Com produção da “O2”, o curta dirigido por Rodrigo Meirelles propõe que o roteiro final seja escolhido pelo público. São 16 combinações que podem ser selecionadas por celular na própria sala de exibição ou pela internete. O interessado deve responder a uma pergunta do tipo: “que tipo de aventura está faltando em sua vida?”. Quem já viu, notou que o automóvel quase não aparece, mas a estória faz rir e fica gravada na memória. Aí é que está o centro da questão. Todo esse mecanismo tenta passar a ilusão de que é possível fazer parte da grande mídia. Uma ilusão de que é possível democratizar a mídia sem mexer com seus monopólios. É mais uma inteligente reciclagem da dominação pelos que detêm o controle dos meios de comunicação. Novembro de 2006
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Piratininga
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