Por NPC
Rubens Casara: Só se pode falar em uma reforma efetiva do Judiciário se houver o controle social dos meios de comunicação de massa
O juiz Rubens Casara, da 43ª Vara Criminal do Estado do Rio de
Janeiro, investe na aproximação entre a sociedade civil e o poder
judiciário. Ele faz parte da Associação
de Juízes pela Democracia (AJD), instituição que tem como objetivo “dar voz a
quem normalmente não tem espaço nas decisões da Justiça, pois esta está
vinculada a uma tradição e uma prática conservadoras”, explica em
entrevista ao Boletim NPC. Em maio,
ele organizou o evento “Resistência
Democrática: Diálogos entre Política e Justiça”, com o objetivo de aproximar
militantes sociais a atores jurídicos que possuem uma visão progressista.
Casara
acredita que só será possível democratizar o Judiciário se houver a regulação
da mídia no Brasil. Segundo ele, muitas das decisões da Justiça são tomadas
para agradar a opinião pública, “que muitas das vezes é a opinião publicada
pela chamada grande mídia”. Na opinião dele, um exemplo a ser seguido é a Lei de Medios da Argentina, aprovada
após um amplo processo de mobilização social.
[Publicado em 6.5.13 - por Sheila Jacob]
Foto: Pablo Vergara
BoletimNPC - O senhor organizou recentemente o seminário “Resistência Democrática:
diálogos entre política e justiça”. Qual o objetivo?
Rubens Casara. O evento foi feito para mostrar que existe um pensamento
contra-majoritário dentro do poder judiciário, um pensamento que se identifica
com as tradicionais bandeiras da esquerda e com o respeito aos direitos
fundamentais. O objetivo, em resumo, foi
unir esses atores jurídicos mais comprometidos com a sociedade e os militantes
de movimentos sociais que lutam por melhorias na vida do povo.
BoletimNPC - Esta foi
a primeira edição. Por que realizá-la hoje?
Acredito que o momento que estamos vivendo é bem complicado,
um tempo de “fascismo societal”, como diz o jurista e sociólogo português
Boaventura de Sousa Santos. A defesa dos direitos humanos
e as ideias mais progressistas têm perdido espaço, e isso é algo que me assusta
bastante. Pessoas que antes tinham vergonha de assumir certas posturas
autoritárias hoje o fazem com muita naturalidade. Um exemplo é a transformação
do Capitão Nascimento, personagem do Tropa
de Elite, em herói nacional. O ídolo é o policial que, embora honesto, é um
torturador, um criminoso.
BoletimNPC - Como o senhor avalia o Judiciário em relação à sociedade?
O Judiciário é um reflexo das contradições da sociedade. A
sociedade é autoritária e, portanto, o poder judiciário é autoritário. A
maioria acredita, e é levada a acreditar, no uso da força para resolver os mais
variados problemas sociais. A população que sofre a violência policial muitas
vezes aceita e naturaliza essa violência, como, por exemplo, o “toque de
recolher” que existe em diversas comunidades. No Brasil, as pessoas se
acostumaram com autoritarismo, talvez porque a história do nosso país não é
marcada por fortes rupturas históricas; sempre que o povo em movimento começava
a se mobilizar e criar condições efetivas para transformações, surgiam soluções
sempre impostas de cima para baixo, e isso repercute no poder judiciário.
Foto: Leon Diniz
Rubens Casara participa de Jornada Nacional de Lutas do MST
BoletimNPC - Ainda hoje?
Este é um momento de crise do judiciário, que se encontra em
uma encruzilhada. Garapon [jusfilósofo francês] aponta que o Judiciário está
entre sua origem aristocrática, comprometida com a manutenção das coisas do
jeito que estão, e o que se convencionou chamar de “tentação populista”, que também é perigosa, pois é uma tendência de
agradar a “opinião pública”, que
muitas vezes não passa da opinião
publicada pelos meios de comunicação de massa, em especial os da chamada
“grande mídia”. Não raramente os juízes julgam para agradar a essa grande
mídia. Isso é extremamente complicado, pois o poder judiciário por definição
tem que ser contra-majoritário, isto é, tem que julgar contra maiorias e até
mesmo contra a unanimidade se isso for necessário para defender os direitos
fundamentais. Se a sociedade é autoritária, machista ou racista, o
judiciário tem o dever de se afastar
dessas concepções opressoras, pois elas desrespeitam os direitos fundamentais e
violam o projeto constitucional de vida
digna para todos.
BoletimNPC - O debate sobre a redução
da maioridade penal é uma dessas questões que a mídia toma a dianteira né? Exatamente. Dentro do
poder judiciário muita gente defende a redução da maioridade penal, isso em
contrariedade a todas as pesquisas sérias já feitas sobre o tema. Os dados
produzidos no Brasil apontam que é altíssimo o índice de reincidência no
sistema prisional, ou seja, muitos que ficaram presos acabam retornando ao
cárcere por cometerem novos crimes. Já
no sistema socioeducativo, a prática de novos atos infracionais após a
imposição de medidas sócio-educativas é muito inferior. Ou seja, a opinião
veiculada e naturalizada pela classe média brasileira contraria todos os dados
concretos sobre o assunto. Muita gente defende a ideia da redução da idade
penal, mas o faz a partir das lições do William Bonner ou de outros
“especialistas”.
BoletimNPC - E por que é tão difícil combater o
conservadorismo do poder judiciário?
Existem várias razões. Um problema é o seguinte: os juízes que atuavam no
período da ditadura civil-militar continuaram a atuar após a redemocratização.
Muitos desses juízes, que fechavam os olhos para a tortura e a violação aos
direitos humanos, tornaram-se desembargadores, e novos juízes, para ter facilidades
na carreira, acabavam reproduzindo as opiniões e decisões daqueles velhos
juízes. O professor Raúl Zaffaroni, da Suprema Corte Argentina, diz exatamente
isso: que a maneira mais fácil de se fazer carreira é reproduzir a opinião de
quem já está dentro da instituição. É o que ele chama de “comodismo crônico”.
Isso faz com que o judiciário continue sendo conservador. Ou seja: novos
juízes, que poderiam representar elementos de ruptura com esse sistema,
reproduzem o autoritarismo que encontram dentro do Poder Judiciário.
BoletimNPC - É interessante citar a ditadura, pois os
crimes daquele tempo continuam ocorrendo...
A ditadura produziu um fenômeno interessante: a “democratização da
tortura”. A tortura sempre existiu no Brasil, mas antes era voltada
exclusivamente para o pobre, para o capoeira ou o negro fujão. Na época da
ditadura militar, essa violência foi democratizada para a parcela da classe
média que se opôs ao regime, o que deu visibilidade para a tortura. O que mais
choca é que, quando ocorre a abertura política, a tortura volta a ser
direcionada ao seu público preferencial, ressurgindo também o silêncio em torno
do tema. A tortura é naturalizada sempre que é usada contra o pobre, contra
aquele que não interessa à sociedade de consumo. Da mesma maneira, o tiro que
atinge um menino da favela ou da periferia tem repercussão diferente do tiro
dado na Zona Sul.
BoletimNPC - E essa diferenciação também está
presente nas decisões judiciais?
Infelizmente sim. Por exemplo, isso ocorre na desqualificação do espaço
público historicamente destinado às camadas populares. Já vi colegas emitirem
mandados de busca e apreensão coletiva que autorizam a polícia a entrar,
inclusive com o uso de força, em qualquer casa de uma favela, mesmo que nada
exista de concreto contra os moradores da grande maioria dessas residências.
Nunca vi um mandado desse tipo ser cumprido na Avenida Vieira Souto.
BoletimNPC - O conservadorismo da “grande mídia” contribui para o conservadorismo do poder
Judiciário?
Não raro se julga para agradar a chamada “grande mídia”, ou seja, para
agradar interesses econômicos, sociais e de classe muito bem definidos. Só se
pode falar em uma reforma efetiva do Judiciário se houver também o controle
social dos meios de comunicação de massa, por causa dessa interferência direta
de um no outro. Sobre o tema, há também muitos mitos; muitas vezes a garantia
da liberdade de imprensa é distorcida para justificar crimes praticados através
dos meios de comunicação de massa. Qualquer pessoa que tenha estudado
minimamente o processo de mobilização social na Argentina que resultou na Lei de Medios, por exemplo, sabe que o
controle dos meios de comunicação proposto nada tem de censura. No Brasil,
hoje, em qualquer horário do dia, tem gente defendendo tortura e violações aos
direitos fundamentais na televisão, e isso é inadmissível. Os meios de
comunicação de massa produzem subjetividades e cultura. Se você quer uma
cultura comprometida com a democracia, não há como defender a legitimidade de
programas que incentivam o ódio, a violação de direitos e a eliminação das
diferenças.
BoletimNPC - E muitas vezes essas formas de controle e participação são divulgadas como censura...
A concentração da mídia é absurda no Brasil. São poucas famílias
controlando muitos meios e produzindo muitas subjetividades. As grandes
corporações de mídia têm as falas autorizadas: escolhem determinados
“especialistas” para falar aquilo que querem que seja dito. Por mais que as
novas mídias tenham disputado um pouco de espaço, ainda há um poder absurdo e
sem controle nas mãos de poucos. Os meios alternativos são o espaço para se
produzir um discurso contra-hegemônico. Existem blogs criteriosos, sérios, e
também outros com posturas questionáveis. Mas já é positivo o simples fato de
existirem espaços que divulguem essa pluralidade de ideias. O Marcelo Semer,
ex-presidente da Associação de Juízes pela Democracia (AJD), foi um dos primeiros juízes a ter um blog (Sem Juízo) e a corajosamente se lançar
nessa batalha por corações e mentes. Ele era um dos meus candidatos a ministro
do Supremo Tribunal Federal, pois possui uma visão progressista no campo do
direito e é extremamente comprometido com as lutas populares.
BoletimNPC - Como o senhor avalia a indicação do novo ministro do STF? O [professor Luis
Roberto] Barroso é um bom nome, excelente intelectual e acadêmico, mas não sei se é o homem
ideal para incorporar a resistência necessária às posturas opressoras que estão
em toda sociedade, inclusive no próprio Supremo. Não sei até que ponto ele será
capaz de resistir às pressões da grande mídia, por exemplo. Circula o boato de que a presidenta Dilma se convenceu de que o ministro ideal deve ser um técnico e não pode se manifestar, do ponto de vista político, sobre variados assuntos de interesse da sociedade. Para mim, isso é um tremendo equívoco, pois em nome da melhor técnica se produziram as maiores barbaridades da história do Poder Judiciário.
BoletimNPC - Um exemplo? A decisão que não impediu a deportação da Olga Benário. Foi um caso em que o recurso à técnica foi utilizado para permitir a barbárie. Para mim, o ideal é que a sociedade conheça e que se levem em conta as posições políticas de quem vai ser indicado ao STF.
Núcleo
Piratininga
de Comunicação
—
Voltar —
Topo
—
Imprimir
|