Às vésperas da votação do projeto de lei do deputado Osmar Terra (PMDB-RS) que endurece a pena para traficantes e a punição para usuários, inclusive com internação forçada, o Congresso Internacional sobre Drogas foi uma rara oportunidade para a exposição de dados e argumentos em sentido contrário. O evento decorreu entre os dias 3 e 5 de maio e lotou os 700 lugares do Museu da República, em Brasília, reunindo alguns dos mais qualificados pesquisadores das áreas correlatas ao tema – medicina, psicologia, saúde pública, direito, segurança pública –, além de representantes do Ministério da Saúde, mas não foi capaz de atrair a atenção dos principais jornais e redes de televisão do país.
Não que isso seja surpresa, pois a cobertura de temas-tabu como o das drogas ilícitas costuma seguir uma lógica terrorista, demonizadora e moralista, mas por isso mesmo é importante apontar o papel nefasto que a mídia hegemônica desempenha nesses casos, agindo no sentido contrário ao do esclarecimento, que seria um pressuposto para a sua atividade.
Oferecer a oportunidade do confronto de diferentes pontos de vista é princípio recorrente do jornalismo, mas frequentemente se resume a isso mesmo: um princípio, que não se concretiza. Caso houvesse interesse em promover o debate, não seria possível ignorar o que se discutiu naquele encontro, encerrado com documento que propõe uma nova política de drogas para o Brasil:
“A tentativa de voltar a criminalizar usuários e aumentar penas relacionadas ao tráfico de drogas é um desastre, na contramão do que ocorre em diversos países da América e Europa, contribuindo para aumentar ainda mais o superencarceramento e a criminalização da pobreza. A exemplo das supremas cortes da Argentina e da Colômbia, é preciso que o Supremo Tribunal Federal declare com urgência a inconstitucionalidade das regras criminalizadoras da posse de drogas ilícitas para uso pessoal. Em última instância, legalizar, regulamentar e taxar todas as drogas, priorizando a redução de riscos e danos, anistiando infratores de crimes não violentos, e investir em emprego, educação, saúde, moradia, cultura e esporte são as únicas medidas capazes de acabar efetivamente com o tráfico, com a violência e com as mortes de nossos jovens. É um imperativo ético e científico de nosso tempo, em defesa da razão e da vida humana”.
Contra o proibicionismo
Uma das mesas do congresso demonstrou o uso terapêutico da maconha, inclusive para casos de câncer e para a diminuição dos sintomas de abstinência do crack. A propósito, o psiquiatra Dartiu Xavier e o médico Elisaldo Carlini criticaram a perspectiva prevalecente do combate ao vício, baseada na imposição da abstinência, e que falha recorrentemente: daí a defesa de ações voltadas para a redução de danos. Apontaram também o preconceito existente no meio científico, que chegou a inviabilizar as pesquisas interessadas em investigar hipóteses na contramão das tendências hegemônicas.
Em relação à política proibicionista, vários dos debatedores contestaram as propostas que separam usuários de traficantes e que, em decorrência, sustentam a liberação das drogas apenas para uso pessoal. “A arbitrária distinção entre traficantes e usuários é uma forma de perpetuar a situação de morte de pobres desprovidos de poder”, disse a juíza aposentada Maria Lúcia Karam, presidente da seção brasileira da Law Enforcement Against Prohibition (LEAP). Ela defendeu a legalização de todas as drogas como forma de eliminar o tráfico e as várias formas de violência que ele promove. “Se as drogas são ruins, a guerra às drogas é muito pior”, argumentou. “Eu não posso fazer um discurso desonesto. Quem é a favor só de descriminalizar tem de assumir o proibicionismo e a manutenção da guerra.” E guerras, como apontou outro conferencista, são sempre contra pessoas: por isso a expressão “guerra às drogas” é tão mistificadora.
Um tema delicado
Cesar Gaviria, ex-presidente da Colômbia e integrante da Comissão Global de Políticas sobre Drogas, fez um discurso contundente contra a internação compulsória de dependentes químicos – “uma barbaridade, o caminho para se cometer os maiores abusos” – e reconheceu que a legalização, de fato, seria a política mais eficaz, porém argumentou que a proposta “desperta muitos temores nas famílias”.
As famílias: as certezas domésticas que não querem ser abaladas. Daí, ao mesmo tempo, a necessidade de se acolher o debate e a dificuldade no momento de enfrentá-lo: porque é preciso encontrar formas de quebrar tabus, ou simplesmente a comunicação não se realiza.
Caso desejasse cumprir seu papel declarado de promover o confronto de distintas perspectivas em relação a tema tão sensível, a mídia hegemônica teria, portanto, um belo desafio pela frente. No entanto, preferiu ignorar o debate ocorrido em Brasília: embora sem mencionar o congresso encerrado na véspera, apenas a Folha de S.Paulo, na segunda-feira (6/5), abre espaço para o questionamento do proibicionismo, em entrevista de página inteira com Cesar Gaviria, que demonstra a articulação entre a intensificação da repressão ao uso de drogas e o cometimento de crimes, sobretudo por jovens. A propósito, Gaviria condena também as propostas de redução da maioridade penal – tema de vários articulistas nos últimos dias –, numa página aberta com foto de manifestação pública a favor dessas medidas: não é preciso muito esforço para perceber como o jornal “fala” por esse jogo de contrastes.
Restam as alternativas: as redes sociais que podem romper esse bloqueio. Podem mesmo? O Congresso Internacional sobre Drogas foi transmitido pela internet, mas dificilmente terá alcançado um público maior do que o que já se mobiliza em torno dessa questão. Como ampliar esse público e atrair a atenção de quem não percebe a gravidade do que está em jogo é o principal problema para quem está empenhado em promover o debate.
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*Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)