Cidades
Ponha-se na rua: Há 200 anos é assim que o governo lida com as comunidades cariocas (RJ)
[Publicado em 03.05.2013 - Por Andrea Dip - Divulgação | Original em A Pública]
Jornalista, que pesquisou o histórico de despejos das comunidades no
Rio, vê agravamento da situação com a proximidade dos megaeventos. Com a chegada da família real ao Brasil, em
1808, 10 mil casas foram pintadas com as letras “PR”, de Príncipe Regente,
abreviatura que significava na prática que o morador teria que sair de sua casa
para dar lugar à realeza. Logo, a sigla “PR” ficou popularmente conhecida como
“Ponha-se na Rua”. Hoje, as casas removidas no Rio de Janeiro são marcadas com
as letras “SMH”, de Secretaria Municipal de Habitação. A população também criou
um apelido para a sigla: “Sai do Morro Hoje”.
Essa associação entre as duas eras de despejo – que afetam sempre a
mesma população – é feita em “Do ‘Ponha-se na Rua’ ao ‘Sai do Morro Hoje’: das
raízes históricas das remoções à construção da “cidade olímpica”, trabalho de
conclusão de curso da jornalista Paula Paiva Paulo. Em entrevista à Pública,
ela fala pela primeira vez sobre o estudo que revê as transformações no espaço
público carioca e as remoções compulsórias que preparam o cenário. E afirma: Os
despejos não acontecem por “falta de planejamento”
urbano. “É simplesmente privilegiar a especulação imobiliária ao invés do
direito a moradia”, explicita.
Por que você escolheu esse tema para o trabalho de
conclusão?
Quando comecei a pensar sobre o tema da minha monografia, não foi
difícil, o tema da habitação sempre me atraiu. A minha ideia inicial era
abordar tudo: um histórico de políticas públicas para habitação, o que diz a
Constituição sobre direito à moradia, qual o déficit do país, o que esse
déficit causa, o descaso do governo, o sonho da casa própria, e as histórias de
pessoas afetadas – pelo menos um relato de um morador de rua, um de ocupação
urbana e um de área de risco.
Em março de 2012 comecei a participar do Grupo de Trabalho (GT)
Remoções do Comitê Popular Rio para Copa e Olimpíadas, organização civil que
reúne representantes de ONGs, de movimentos sociais, estudantes e qualquer
pessoa que queira discutir e pesquisar sobre as violações de direitos humanos
na preparação para os megaeventos no Rio de Janeiro. Ao entrar em contato com
os moradores de comunidades ameaçadas, como Arroio Pavuna e Vila Autódromo,
achei o meu gancho. O meu trabalho seria uma grande reportagem sobre as
remoções que estavam acontecendo em razão da Copa do Mundo de 2014 e das
Olimpíadas em 2016.
Das comunidades removidas para os megaeventos, qual
ou quais você acredita serem as mais emblemáticas desta época?
Considero duas bem emblemáticas: a Restinga, no Recreio dos
Bandeirantes, e o Metrô-Mangueira, na Mangueira. Na Restinga aconteceu todo o
processo que tem sido padrão de reclamação dos moradores das comunidades
removidas: falta de informação relativa ao projeto, falta de participação
durante as remoções, oferecimento de alternativas desinteressantes para as
famílias e truculência policial no ato da remoção. Essa última queixa é que torna
a Restinga emblemática. O dia da remoção, dia 17 de dezembro de 2010, uma
sexta-feira, foi considerado muitíssimo traumático pelos moradores. Sem aviso
prévio, com forte aparato policial, remoções acontecendo madrugada adentro, sem
as famílias terem sido indenizadas. Para o defensor público que atendeu a
comunidade na época, Alexandre Mendes, foi a comunidade que mais sofreu nesse
processo.
Já o caso do Metrô-Mangueira, que fica a 500 metros do Maracanã é
emblemático pela situação que alguns moradores ficaram durante um ano e meio.
Após as primeiras remoções, as casas eram demolidas, e quem ficava tinha que
viver entre os entulhos, que não eram retirados, e acumulavam lixo, água
parada, ratos.Como me disse um ex- morador, Eomar Freitas: “Se você conseguir
entrar em alguma casa que ainda está de pé, vai ver o odor de merda que tem, e
a gente tinha de almoçar, a gente tinha de jantar, a gente tinha de conviver
com esse cheiro”.
O que mais te chocou ou entristeceu durante a
pesquisa?
O que mais me entristeceu foi o tratamento recebido pelas famílias
removidas. É tudo feito com muita brutalidade, desde o anúncio da remoção. É
pressão o tempo inteiro, e os moradores são tratados como “ilegais”,
independente de sua situação fundiária, mesmo com os direitos adquiridos que
nossas leis nos reservam.
A moradia vai muito além de quatro paredes, ela está ligada ao direito
ao trabalho, ao lazer, à saúde. É um processo muito traumático, e no qual não
se faz nada para que ele seja menos traumático, muito pelo contrário. O ideal
seria que esses processos fossem acompanhados de assistência psicológica aos
moradores. Na verdade, ideal mesmo é que se buscassem outras soluções em vez da
remoção forçada.
Apesar de não ser novidade na história do Rio de Janeiro, agora vivemos
situação específica inaugurada por dois megaeventos esportivos e pelas
transformações urbanísticas que eles impõem à cidade. E há um grande agravante:
as remoções estão acontecendo de forma sistêmica e integrada nas 12
cidades-sede da Copa no Brasil, com a justificativa da urgência e com uma
paixão nacional como bandeira. É praticamente um herege quem vai de encontro a
um projeto desses.
Em seu estudo você fala de várias outras
transformações no espaço público carioca. Quais foram as principais? Elas
também removeram muita gente?
Acredito que a principal tenha sido a reforma realizada pelo engenheiro
Francisco Pereira Passos, nomeado prefeito do Rio de Janeiro pelo então
presidente Rodrigues Alves, em 1904. Inspirado em Haussmann, o prefeito de
Paris responsável pela sua reforma urbana no final do século XIX, a reforma de
Pereira Passos teve como principais características o alargamento das
principais artérias do Centro, a criação da Avenida Beira Mar para melhorar o
acesso da Zona Sul ao Centro; a construção do Teatro Municipal; a ligação da
Lapa com o Estácio; guerra aos quiosques e ambulantes; inauguração de estátuas
imponentes e arborização no centro. Na maioria dos casos, a prefeitura
desapropriou mais prédios do que eram necessários para depois vender o que
ficou valorizado. Em paralelo às obras da prefeitura, a União também realizou
grandes obras, como a construção da Avenida Central, atual Rio Branco, que
demoliu de duas a três mil casas, o novo porto do Rio de Janeiro, e a abertura
das avenidas que lhe davam acesso, a Francisco Bicalho e a Rodrigues Alves. É a
partir daí que os morros do Centro (Providência, Santo Antônio, Castelo e
outros) até então pouco habitados, passam a ser rapidamente ocupados. Ainda
assim, a maior parte das pessoas que perderam suas casas não foi para as
favelas centrais, e sim para o subúrbio, principalmente Engenho Novo e Inhaúma.
O que você chama de era das remoções?
Esse termo foi retirado do excelente livro do historiador Mário Brum,
“Cidade Alta – História, memórias e estigma de favela num conjunto habitacional
do Rio de Janeiro”.
Ele se refere ao período de 1963 a 1975, no qual foram removidas mais
de 175 mil pessoas somente no Rio de Janeiro. O então governador do Estado da
Guanabara, Carlos Lacerda, trabalhou com as duas perspectivas, primeiro, com o
criado Serviço Especial de Recuperação de Favelas e Habitações Anti-Higiênicas
(Serfha), com a perspectiva da urbanização. Depois, com a extinção do Serfha e
a subordinação dos órgãos habitacionais à Secretaria de Serviços Sociais,
criada em 1963, a política habitacional passou a trabalhar com muito empenho
com a perspectiva remocionista, já que, com a especulação imobiliária,
políticos e construtoras tinham interesse na “desfavelização” da Zona Sul.
De acordo com Mário Brum, as primeiras remoções foram em áreas de
obras, como as favelas da Avenida Brasil, removidas para a construção do
Mercado de São Sebastião, e a favela do Esqueleto, retirada para a construção
da UERJ, no Maracanã. Em um segundo momento, as remoções visaram favelas em
terrenos de alto valor imobiliário, como o caso da Favela do Pasmado, em
Botafogo.
Com o financiamento americano (Usaid), entre 1962 e 1965, foram
construídas a Cidade de Deus e as Vilas Kennedy, Aliança e Esperança. Por outro
lado, algumas favelas foram urbanizadas. Em 1964, com o golpe militar e o
início da ditadura no Brasil, o fechamento dos canais democráticos criou as
condições necessárias para as remoções arbitrárias. Além disso, na conjuntura
da Guerra Fria, o favelado era um revolucionário em potencial aos olhos do
governo.
Nesse mesmo ano foi criado o Banco Nacional de Habitação (BNH), órgão
financiador e responsável por programas habitacionais. As construções dos
conjuntos habitacionais acompanhavam a remoção de favelas. Em 1964, 2273
famílias perderiam suas casas com a remoção completa de comunidades em
Botafogo, Leblon, Ramos, Duque de Caxias; e despejos parciais no Humaitá, na
Gávea, no Caju.
E as remoções continuaram no ano seguinte, sendo a maior delas a da
comunidade do Esqueleto, no Maracanã. Segundo dados da Cohab, no governo
Lacerda foram removidas 6.290 famílias, sendo 4.800 de janeiro de 64 a julho de
65. Até 1965, 30 mil pessoas foram removidas, o que foi pouco perto do que
estava por vir.
Em 1968, a Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara
(Fafeg) ainda realizou seu 2º Congresso. No entanto, com traumáticas remoções
na região da Lagoa Rodrigo de Freitas, a resistência perdeu espaço para o
receio: a resistência dos moradores da Praia do Pinto, por exemplo, terminou
com um misterioso incêndio na favela. Nese mesmo ano, o governo federal criou a
Coordenação da Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana do Grande
Rio (Chisam), com o objetivo de criar uma política única de favela para o Rio.
A Chisam definia a favela como um “espaço urbano deformado” e sua missão
declarada era erradicá-las. Na ditadura, a Chisam virou a “autoridade” do
programa remocionista. Era ela quem decidia quais favelas a serem removidas e
onde ficariam os conjuntos, pois muitos terrenos eram do governo federal. E, na
prática, quem executava as coisas era o governo do Estado.
A Chisam, extinta em 1973, removeu mais de 175 mil moradores de 62
favelas (remoção total ou parcial), transferindo-os para novas 35.517 unidades
habitacionais em conjuntos nas zonas Norte e Oeste. A construção desses
conjuntos habitacionais nem de longe resolveu o problema da habitação popular,
mas modificou substancialmente a forma-aparência dos subúrbios, além de levar
uma demanda grande de pessoas para onde não havia a infraestrutura necessária.
Após esse período, houve o esvaziamento do programa de remoções que
tinha um alto custo político pela resistência dos moradores e que já tinha
cumprido sua função de desocupar áreas de grande valor imobiliário e
desmantelar a organização política dos favelados. Com a redemocratização do
país, houve a revalorização da “moeda voto”.
O que você vê de diferente entre este histórico de
remoções no Rio e o que está acontecendo agora? Há diferença de abordagem?
Antes era imperativa a ideia de remoção total das favelas como solução
para a cidade. Isso foi superado depois da grande força dos movimentos sociais
dos anos 80 e da nossa Constituição de 88. No Plano Diretor do Rio de Janeiro
de 1992 se consolida o pensamento de integração das favelas à cidade; o Plano
prevê a urbanização e a regularização fundiária, e a favela é definida por
características técnicas de sua estrutura, e não mais por características
morais dos moradores. Sem dúvida isso é uma evolução e deu partida a projetos
como o Favela-Bairro.
No entanto, os movimentos que lutam pelos direitos humanos, sendo o
direito à moradia um deles, não conseguir garantir esse direito na prática. E
esse é um grande passo para trás. Outro passo para trás: apesar de não haver
mais a justificativa da remoção como solução urbanística, ela está mais
mascarada. E há um grande agravante, que são as remoções acontecendo de forma
sistêmica e integrada nas 12 cidades-sede da Copa no Brasil, com a
justificativa da urgência e com uma paixão nacional como bandeira. As obras
para mobilidade urbana e construção de equipamentos esportivos não são
consideradas questionáveis, e quem questiona é chamado de “do contra,
baderneiro”.
A que você acha que se deve este histórico?
A primeira coisa que me vem à cabeça é “falta de planejamento urbano”.
Mas na verdade o que não faltou foi planejamento. Acho que esse histórico se
deve a predominância do interesse do capital na construção e ocupação da
cidade. Preferiu-se e ainda se prefere privilegiar a especulação imobiliária ao
direito à moradia.
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