Pol�tica
Trauma de tortura na ditadura transmitido entre gerações, diz psicanalista
A violência sofrida por vítimas da ditadura
militar no Brasil e por suas famílias não foi compartilhada e elaborada pela
sociedade como um todo e é como uma "chaga aberta" que está sendo
transmitida de geração para geração, segundo um psicanalista ouvido pela BBC
Brasil.
Moisés
Rodrigues da Silva Júnior, presidente da instituição de saúde mental paulistana
Projetos Terapêuticos, disse, no entanto, que o Estado brasileiro acaba de dar
um passo decisivo e histórico para tentar remediar isso.
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Um projeto piloto que
oferece atendimento a algumas das vítimas acaba de ser inaugurado pela Comissão
de Anistia do Ministério da Justiça. As chamadas Clínicas do Testemunho são parte de uma política que visa reparar
erros cometidos por agentes do Estado brasileiro durante a ditadura. Entre
estes, perseguições, tortura, desaparecimentos e assassinatos de supostos
oponentes políticos. O governo já oferece reparação econômica às vítimas e seus familiares, mas
segundo o presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, não basta reparar
economicamente. “É obrigação do Estado reparar também psicologicamente”.
Cinco instituições de saúde mental – em São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro
e Recife – estão participando da fase inicial do programa, que vai durar dois
anos e deve atender cerca de 700 pessoas. Entre as instituições está a clínica
onde Moisés atende.
Dor inexplicável
"Como
não houve o compartilhamento ou elaboração (do trauma sofrido), a violência se
torna um material tóxico que habita as pessoas na forma de medos, ameaças e
sofrimento", disse Moisés.
Ele citou como exemplo o caso de uma família que atendeu, um casal e seus
filhos. Moisés não sabia que um dos avós das crianças havia desaparecido
durante a ditadura.
A família parecia bem ajustada. Mas os netos adolescentes do desaparecido
faziam uso abusivo de drogas, explicou Moisés.
"Tinham uma dor que não sabiam referir exatamente. Fomos conversando, até
que começou a aparecer, por parte do pai - o filho do desaparecido - a ideia de
que ele sentia a vida como uma tortura."
"Mas de onde vinha essa palavra, tortura? Eu não sabia que o pai dele
tinha sido torturado, mas essa palavra me chamou a atenção e eu quis saber de
onde vinha. Encontramos isso na história do avô. Não é que a partir daí tudo se
fez luz, mas isso foi importante no tratamento dessa família."
Moisés disse que as vivências traumáticas, quando não são expressas, ficam num
limbo atemporal onde não podem ser reconhecidas como causa do sofrimento e tão
pouco esquecidas.
"São uma presença ausente, ou uma ausência presente, que pode invadir (o
presente) a qualquer momento, reativando os sentimentos de terror. Formam uma
grande rede, que passa de uma geração para outra, como uma chaga aberta",
explicou. "Então, temos de falar disso".
"Fazer circular aquilo que ficou estagnado provoca terror e, ao mesmo
tempo, começa a arejar o terror. O tóxico é compartilhado e dividido por
todos."
O psicanalista admitiu que o processo não é fácil e disse não saber quantas
pessoas vão querer participar das Clínicas do Testemunho.
Tortura legítima
Uma
pesquisa divulgada no ano passado pelo Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da
Universidade de São Paulo (USP) constatou que 47,5% dos entrevistados eram
favoráveis ao uso, em tribunais, de provas obtidas a partir de tortura
policial. O estudo foi feito em onze capitais brasileiras.
Nesse contexto, a decisão do Ministério da Justiça de oferecer atendimento às
vítimas da ditadura representa um marco histórico, disse o psicanalista.
"A tortura é feita no Brasil com o apoio forte da população",
reconhece. "Mas não podemos esquecer o lugar do Estado na organização
social e simbólica".
Para Moisés, a decisão do Estado de oferecer atendimento às vítimas da ditadura
estabelece um precedente fundamental.
"O que é importante aqui é o reconhecimento, pelo Estado, de que não
cumpriu seu dever (de proteger o cidadão), de que impingiu sofrimento e está
pronto a reparar o mal realizado."
"Isto muda tudo. A partir de agora, a história não é mais eu atendendo aos
netos do desaparecido, que se drogam."
"Agora, sou contratado pelo Ministério da Justiça para exercer ações
reparatórias".
O projeto Clinicas do Testemunho foi inaugurado em abril, em um evento na
Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.
Moisés estava presente.
"Tinha uma população muito comocionada, de afetados, familiares,
simpatizantes, profissionais da saúde. Foi muita satisfação poder viver essa
vitória, porque até outro dia dizia-se que isso tudo (os relatos de tortura e
desaparecimentos) era uma fantasia, que no Brasil não tinha havido uma ditadura
e, sim, uma ditabranda".
Um testemunho
A
militante política carioca Eliete Ferrer, de 66 anos, também saudou o
lançamento das Clínicas do Testemunho. Ela é organizadora do livro 68, A
Geração que Queria Mudar o Mundo, publicado em 2010.
No final da década de 1960, professora de história do nível primário, Eliete
passou a integrar a Aliança Libertadora Nacional (ALN) em protesto contra o
golpe militar.
Inicialmente, o grupo apenas realizava manifestações, mas com o endurecimento
na política do governo, o movimento também se radicalizou e passou à luta
armada.
Em 1973, o então companheiro de Eliete, jornalista Luiz Carlos Guimarães, foi
preso e torturado. Quando foi solto, dois meses depois, o casal caiu na
clandestinidade e saiu do Brasil.
"Fomos para o Chile, fomos direto para o terror", ela explicou.
"Nós não sabíamos".
Presos em 11 de setembro de 1973, dia do golpe militar no Chile, Eliete e o
companheiro sofreram violência nas mãos da polícia chilena.
Houve espancamentos, simulações de fuzilamento e ameaças de estupro. Mas eles
conseguiram escapar e, com ajuda da ONU e de entidades ligadas a direitos
humanos, se exilaram na Suécia.
Eliete só retornaria ao Brasil em 1979, quando entrou em vigor a Lei da
Anistia.
Traumatizada, ela recebeu atendimento psicológico por voluntários do Grupo
Tortura Nunca Mais/Rio de Janeiro (GTNM/RJ).
"Quando cheguei ao Brasil, tinha muitos problemas. Não conseguia falar
sobre o Chile ou sobre a prisão do Luiz Carlos."
"Eu tinha muitos pesadelos, sempre acordava gritando, duas, três vezes por
noite", contou. "Sonhava que as pessoas queriam me matar."
"Fiz terapia durante muitos anos, mais de dez. O GTNM/RJ foi pioneiro em
oferecer esse atendimento".
Ela disse que a terapia a ajudou a viver melhor consigo mesma.
"Quando a gente fala, o assunto duro, pontudo, que machuca como um ouriço,
vai se polindo e todo mundo consegue segurá-lo."
Por tudo isso, Eliete aplaude a iniciativa do Estado brasileiro, de assumir a
responsabilidade pelo atendimento às vítimas.
"As clinicas são uma forma de olharmos para a ferida, junto a um profissional,
uma pessoa que estudou a alma humana, e vai te ajudar a curar aquela
ferida."
Próximo passo
Mas
a militante acrescentou que, para ela, o processo de reparação ainda não está
completo.
"Se o torturador não é punido, a tortura continua, nas delegacias."
"Éramos militantes, mas quem é torturado hoje é o preto pobre nas
periferias das cidades."
E finalizou: "O próximo passo, em termos institucionais, seria o
julgamento dessas pessoas. Não queremos que sejam torturados como fomos, mas
que sejam julgados pelas leis do país."
A Lei da Anistia, que permitiu que presos políticos e exilados como Eliete
voltassem a viver em liberdade no Brasil, também garantiu o perdão político aos
torturadores que trabalharam a serviço do regime.
Além do atendimento às vítimas e familiares de vítimas da ditadura militar, o
projeto Clínicas do Testemunho inclui atividades paralelas: o treinamento de
profissionais para atender pessoas afetadas pela violência de Estado e
pesquisas sobre as consequências psíquicas e sociais da violência de Estado.
Interessados em participar das clínicas devem procurar a Comissão de Anistia do
Ministério da Justiça.
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2013/05/130430_clinicas_testemunho_mv.shtml
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