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Entrevistas
Cidade é novo palco de conflito militar

Para o professor de História e escritor Mike Davis, a força de paz brasileira no Haiti é um laboratório para intervenções em áreas miseráveis - experiência que pode ser adotada em larga escala.

Publicado em 17.04.13 – Por Sergio Pompeu, de O Estado de São Paulo] 

O americano Mike Davis é hoje uma autoridade mundial quando se fala em riscos da urbanização desenfreada. Em 2006, no sombrio livro Planeta Favela (Editora Boitempo), retratou de forma avassaladora o pesadelo urbano do fim do século 20 e início do 21: o tsunami da migração, estimulado pela miséria no campo, e a explosão das favelas e de habitações irregulares, onde hoje vive 1 bilhão de pessoas. Professor de História na Universidade da Califórnia, Davis destacou a preocupação dos militares americanos com redutos pobres urbanos, apontados como o novo cenário do conflito geopolítico. Para ele, a força de paz brasileira no Haiti é um laboratório conjunto com os Estados Unidos para intervenções em áreas miseráveis. Uma experiência, diz, bem-sucedida até agora, que pode ser adotada em larga escala por causa do baixo custo - especialmente se comparado ao do atoleiro dos EUA no Iraque. A entrevista foi publicada originalmente em 3.08.08.


Em Planeta Favela, o senhor retrata a fuga do campo apesar da falta de emprego nas cidades, do desaparecimento do emprego industrial. A recente crise dos alimentos, com a explosão de preços, pode provocar um movimento inverso?
A crise pode garantir maior renda a pequenos produtores. Mas o grosso disso vai ficar com grandes produtores, como a indústria de soja no Brasil ou a do milho nos EUA. Os fatores que estão empurrando as pessoas para longe do campo são mais poderosos e, muitas vezes, independentes da condição da economia urbana. Infelizmente, haverá êxodos ainda maiores. Os subsídios agrícolas dos países ricos e a combinação de políticas que minam mecanismos de preços mínimos (que garantem renda a pequenos agricultores) criaram uma situação desastrosa. Quando a mudança climática começar a ter efeitos mais dramáticos, haverá um grande impacto na vida rural precisamente nos países mais prejudicados pela globalização da indústria de alimentos.
 
No livro, o sr. critica o papel do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional no inchaço das metrópoles nos anos 1980 e 1990. Mas, no Brasil pelo menos, a urbanização desenfreada começou bem antes. O poder de sedução das cidades não supera questões meramente econômicas?
Seu país é um exemplo traumático da destruição do equilíbrio racional entre crescimento urbano e economia rural. É quase uma superpotência agrícola, mas tem talvez a maior desigualdade do mundo em propriedade da terra e renda real. Isso se reflete em todos os níveis da vida na cidade. Em Planeta Favela, tento mostrar que a explosão das favelas ocorreu quando preços primários caíram em todo o mundo, a renda encolheu no campo e mais pessoas se mudaram para as cidades - mesma época em que programas de ajuste estrutural levaram a cortes no setor público e em investimentos urbanos. O efeito disso na crise urbana não se limitou aos países em desenvolvimento. Nos EUA houve um ônus crescente imposto às pessoas pela periferização da pobreza: congestionamentos, o custo das viagens para o trabalho. Na China, mais trabalhadores e pessoas da classe média são expulsos do centro das cidades do que realocados. Muitos governos viraram agências para a destruição da moradia acessível, mais que provedores de moradia.
 
Conferimos isso in loco em Xangai e Chongqing.
Provavelmente os Jogos Olímpicos serão o maior evento isolado de remoção de pessoas do último quarto de século. Mesmo arquitetos têm questionado aspectos como a corrida arquitetônica em Pudong (distrito financeiro de Xangai), questionam se ela deveria ser permitida em escala tão grande, bem no coração da cidade. E a decisão de desenvolver a indústria automobilística criando um enorme mercado interno apagou virtudes do desenvolvimento tardio, como o uso de bicicletas. É incrível o impacto que a opção pelo automóvel teve nas cidades.
 
Em São Paulo, são 800 veículos a mais por dia.
Esses problemas unem Primeiro e Terceiro Mundo: dispersão urbana, opção pelo automóvel, incapacidade de regular a vida urbana. No caso de países em desenvolvimento, há uma questão freqüentemente ignorada: a classe média e os ricos escapam à taxação, deixando o governo local sem recursos para planejar o crescimento. Na América Latina, na Ásia, houve a revolução da democratização, só que eleger pessoas não significa que elas terão recursos para reformas. Na Índia, embora haja governos locais eleitos, o poder está nas agências regionais de desenvolvimento. Não sei qual é a solução institucional, mas acho que a questão do socialismo continua relevante. Mesmo que soe fora de moda, não vejo nenhum mecanismo numa economia dominada por 500 corporações capaz de gerar o tipo de investimento que tornará as cidades viáveis.
 
O sr. parece resistir a uma conexão muito freqüente que se faz entre pobreza e crescimento populacional.
Projeções das Nações Unidas mostram que chegaremos ao pico de crescimento nos anos 2050, 2060 e os números parecem estar dentro das possibilidades da agricultura mundial. O problema é o emprego. É o fato de que você tem hoje 1 bilhão de pessoas nas cidades, a maioria jovens, alijadas da economia formal. Mas, ao contrário da Guerra Fria, ninguém está falando em incorporar classes urbanas informais em alguma forma aceitável de futuro - exceto, talvez, o Programa das Metas do Milênio da ONU.
 
Do que trata o novo livro que o sr. está preparando?
É um pouco diferente. O projeto - que está congelado, porque não tenho tido tempo para viajar -, chamado de Governo para os Pobres, é o de olhar a globalização nos últimos 25 anos e seu impacto. No mundo em desenvolvimento o que se vê é que a globalização enfraquece o Estado, especialmente na periferia das cidades. Outras formas de poder surgiram para lidar com as necessidades complexas do cotidiano: milícias étnicas e raciais, gangues, entidades assistencialistas, novos tipos de máquinas políticas. Quero analisar isso à luz do fato de que o preço da habitação formal cresce muito rápido e, simultaneamente, o ritmo das oportunidades no mercado informal está caindo.
 
O sr. afirma que militares americanos consideram as áreas pobres das cidades o próximo cenário de conflito geopolítico e alertam para a falta de know-how e equipamentos para intervir nelas. Haverá pressão para a adoção de soluções militares para a questão das favelas?
Agora mesmo no Haiti, em Porto Príncipe, Brasil e EUA estão colaborando no desenvolvimento de um modelo de intervenção para espaços urbanos pobres que implica investimentos e reformas módicas, mas permite, por exemplo, a volta da polícia a esses locais ou baixar o custo de forças de manutenção da paz - que, no caso do Iraque, é altíssimo. É uma tentativa de combinar o estado da arte em tecnologia militar com algum tipo de presença física mínima para legitimar o Estado ou governo local.
 
O projeto está funcionando? E essas intervenções não podem se tornar apenas um meio de conter revoltas sociais?
Está funcionando, até porque em Porto Príncipe não existem grupos que contem com recursos críticos, como a ideologia nacionalista no Iraque. É uma situação mais parecida com a que você encontra nos EUA, nas favelas brasileiras ou na África, onde há misturas locais de milícias, gangues e até grupos parcialmente ideológicos. Os militares têm desenvolvido tecnologias, ditas não-letais, para controlar protestos, mas você ainda tem a questão do magma social desses vulcões urbanos borbulhando sob a superfície. No seu país e no México a questão do controle urbano se tornou absolutamente aguda.
 
Então esse tipo de intervenção é válido para restabelecer a presença de um Estado legitimamente eleito?
Nos EUA, a compreensão mais racional do padrão atual de conflito global surgiu não dos téoricos de política externa, mas dos analistas do Pentágono. Eles lidam empiricamente com o problema de controle urbano e estão procurando soluções. Porto Príncipe é o caso mais interessante, porque envolve uma coalizão entre poderes regionais e organizações não-governamentais. Acho que essa é a moldura para políticas que vão surgir numa administração Barack Obama, com estímulos a níveis intensos de intervenção por todo o mundo, mas em parceria com poderes regionais, como o Brasil. Acho que os brasileiros sabem que a experiência de Porto Príncipe será introduzida nas suas cidades.
 
Há uma ocupação em curso no Rio, mas surgiu um escândalo quando se descobriu que militares entregaram criminosos para serem "punidos" por traficantes - os três foram mortos.
Li sobre os 11 militares afastados. Uma das ironias do mundo hoje é o fato de que, em nome de restabelecer o poder de governos civis e o papel da polícia, você vê militares nas ruas. Na Itália, acho que pela primeira vez desde o assassinato de Aldo Moro, eles puseram militares nas ruas de Roma e Nápoles.
 
O que se deve fazer com as favelas? No Brasil, há um certo consenso de que o caminho passa pela legalização da posse. Mas o sr. critica esse instrumento no livro.
A legalização é uma demanda justa e antiga na América Latina. O que eu critico é a expectativa quase mítica de que a legalização criaria alguma forma de capitalismo dinâmico nas classes baixas (derivada das idéias do guru peruano liberal Hernando de Soto, que foram abraçadas pelo Banco Mundial). Achar que ela ou o microcrédito permitirão aos pobres transformar cidades é subestimar radicalmente a questão central, a desigualdade social.
 
O cenário de urbanização que o sr. descreve é infernal. As cidades não podem ser parte da solução dos problemas do planeta?
Na crise global prevista para a década de 2030 - impactos das mudanças climáticas na agricultura, exaustão de combustíveis fósseis e, em alguns lugares, água -, as cidades são parte do problema e da solução. O modo como elas cresceram nos últimos 30 anos acelerou a crise ambiental, a desigualdade social. Ao mesmo tempo, parte da genialidade da vida na cidade é a possibilidade de fornecer espaços públicos ricos, mais capazes de satisfazer as necessidades humanas do que qualquer nível de consumo privado - é inútil falar de crise ambiental sem falar de justiça social. A reabilitação das nossas cidades passa pelo modo pelo qual vamos atacar as mazelas dessa rápida urbanização.
 
Quais os modelos para o futuro?
O Brasil, nos últimos 20 anos, criou uma enorme enciclopédia de soluções urbanas. A idéia por trás do orçamento participativo de Porto Alegre tem uma relevância enorme - vide o caso da política fiscal no sul da Califórnia, onde cidades pobres têm ficado cada vez mais pobres e as ricas, mais ricas. Quando se fala de desigualdade, um bom parâmetro é analisar de que forma as cidades tratam as crianças. Aí, provavelmente as melhores do mundo estão na Escandinávia. Los Angeles é um lugar onde jovens são mortos numa violência desnecessária. Na Califórnia, 20% das crianças das cidades são muito pobres. Para ser modelo, as cidades devem seguir o senso comum ético: como crianças, mulheres e velhos são tratados? Por esses parâmetros, muitas cidades exuberantes se saem mal. Paris, por exemplo, me choca.
 
Por que Paris é tão ruim?
Paris não tem crianças, não tem pobres. Se você é rico e adulto, é o paraíso. Mas metrópoles precisam preservar sua herança cultural, a cultura popular, senão viram só parques temáticos arquitetônicos. E os verdadeiros heróis da vida urbana não estão mais lá em Paris, estão em algum conjunto habitacional nos subúrbios. Cidades brasileiras supostamente têm isso, como o Rio, onde os pobres estão nas áreas centrais, não só na periferia.


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