Comunica��o Alternativa
Jornalista se torna réu em ação criminal por escrever crônica ficcional sobre coronelismo
Já entrou
para a história do Judiciário em Sergipe a decisão inédita da juíza Brígida
Declerc, do Juizado Especial Criminal em Aracaju, de receber a denúncia do
Ministério Público Estadual, contra o jornalista Cristian Góes, 42, por ele ter
escrito em seu blog uma crônica ficcional que trata do coronelismo. A magistrada reconhece que o artigo, literário e escrito em primeira pessoa,
não tem qualquer indicação de locais, datas, cargos públicos e não cita
ninguém, mas mesmo assim a juíza acatou a denúncia do MP, que por sua vez
entende que a crônica quando fala de um “coronel” estaria o jornalista a se
referir ao governador de Sergipe, Marcelo Déda (PT). Para o MP quando o artigo
literário cita uma vez a expressão “jagunço das leis” estaria fazendo referência
objetiva ao desembargador do Tribunal de Justiça, Edson Ulisses, cunhado do
governador.
A última audiência do processo criminal movido pelo desembargador contra o
jornalista ocorreu na sexta-feira, 22, na sede do Tribunal de Justiça de
Sergipe, onde o irmão do governador Marcelo Déda, o desembargador Cláudio Déda
é o presidente, e o seu cunhado, o desembargador Edson Ulisses é o
vice-presidente, este último escolhido e nomeado pelo governador. Atendendo ao
pedido do desembargador Edson Ulisses, o Ministério Público, ainda na primeira
audiência de conciliação já denunciou criminalmente o jornalista pelo crime de
ter escrito a crônica ficcional. Por coincidência, dias depois da denúncia, a
promotora de Justiça Allana Costa, que era substituta e trabalhava no interior
de Sergipe, foi premiada com a promoção para a capital, em cargo de
coordenadoria.
Na audiência da última sexta-feira, 22, vários representantes de movimentos
sociais que lutam pela liberdade de expressão e até familiares do jornalista
foram impedidos de participar da audiência. A segurança da Polícia Militar
dentro do tribunal foi reforçada. Todos os lugares da sala de audiência foram
tomados desde cedo por funcionários com cargos comissionados e terceirizados do
Tribunal de Justiça. A audiência durou mais de quatro horas e a juíza Brígida
Declerc proibiu qualquer registro fotográfico e sonoro.
As ações - O desembargador Edson Ulisses, cunhado do governador Marcelo
Déda, alegou que a crônica literária “Eu, o coronel em mim”, escrita pelo jornalista
Cristian Góes em maio de 2012 em seu blog acata diretamente o governador de
Sergipe e a ele, por consequência. Por isso, ingressou com duas ações
judiciais. Na criminal, o desembargador pede a prisão de quatro anos do
jornalista. Na cível, pede que o juiz estabeleça um valor de indenização por
danos morais e já estipula os honorários dos seus advogados em R$ 25 mil. Na
audiência da última sexta-feira, o desembargador foi ouvido pela juíza e disse
se referindo ao jornalista e a crônica literária: “Todo mundo sabe que ele
escreveu contra o governador e contra mim. Não tem nomes e nem precisa, mas
todo mundo sabe que o texto ataca Déda e a mim”.
O advogado Antônio Rodrigo, que faz a defesa do jornalista, chegou a apresentar
uma peça jurídica que é uma decisão do próprio desembargador Edson Ulisses. Em
13 de março do ano passado, na Apelação Criminal 1506, da 9ª Vara Criminal,
Edson Ulisses decide um caso parecido alegando que “é imprescindível a
demonstração da intenção do querelado de ofender a imagem ou a honra objetiva
do querelante”. Para o advogado Antônio Rodrigo é completamente impossível na
crônica literária assinada por Cristian Góes encontrar a mínima prova da
intenção de ofender a honra de ninguém. “Esse alguém não existe no texto. É
fato. É concreto. Não é uma questão de interpretação. Falta, portanto, justa
causa para que a ação se processe”, disse o advogado.
Também na audiência foram ouvidas duas testemunhas de acusação. Uma delas foi o
conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de Sergipe, Clóvis Barbosa, que foi
secretário do governador e foi nomeado por Marcelo Déda para o cargo de
conselheiro. Ele disse que o jornalista é “porta-voz de um grupo político
aliado do governador, mas que fez críticas ao governador. O texto foi contra o
governador e atacou o desembargador Edson Ulisses diretamente, aliás, acatou
todo o Judiciário sergipano. Eu aconselhei a ele que tinha que processar esse
rapaz”, afirmou Clóvis. Questionado pelo advogado Antônio Rodrigo sobre onde
estaria na crônica literária alguma referência concreta ao governador e ao
desembargador e qual o grupo político que o jornalista é porta-voz, Clóvis
Barbosa disse: “todo texto é um ataque a Marcelo Déda. Não fala nomes, mas todo
mundo sabe que é. Sobre o grupo político tudo mundo sabe qual é”.
A juíza negou - O advogado Antônio Rodrigo indicou como testemunhas de
defesa do jornalista o governador Marcelo Déda, mas a juíza Brígida Declerc
negou qualquer possibilidade de ouvir o governador porque, segundo ela, Déda
não é “parte” no processo. A juíza também indeferiu uma série de perguntas do
advogado ao desembargador Edson Ulisses e as suas testemunhas por conta das
respostas vazias, como “todo mundo sabe”. A magistrada também não permitiu que
fosse relacionado como testemunha de defesa do jornalista o representante da
organização Repórteres Sem Fronteiras, Beoit Hervieu. Serão ouvidos por carta
precatória o jornalista Paulo Henrique Amorim e o jornalista Celso Schroder,
presidente da Federação Nacional dos Jornalistas.
A crônica literária “Eu, o coronel em mim” é um texto em estilo de confissão de
um coronel imaginário dos tempos de escravidão que se vê chocado com o momento
democrático. Não há citação de nomes, locais, datas, cargos públicos. “É
impossível que qualquer pessoa concreta possa se reconhecer no texto. Para se
condenar é preciso ter agressor e vítima devidamente identificados. Nesse caso
não há nada. Se esse caso prosperar no Judiciário em Sergipe será algo inédito
e de repercussões muito graves ao Estado Democrático de Direito. É um ataque
violento à liberdade de expressão. Ter liberdade de expressão não é ter
liberdade para elogiar”, disse o advogado Antônio Rodrigo.
A presidente do Sindicato dos Jornalistas, Caroline Rejane, lamenta que a
liberdade de expressão esteja sendo gravemente atacada pelo poder Judiciário em
Sergipe. “Nós estamos nos solidarizando ao companheiro Cristian Góes, mas não
só por ele, por todos os profissionais da área de Comunicação que estão
seriamente ameaçados”, disse.
A próxima audiência está marcada para o dia 19 de abril.
FONTE: Sindicato dos
Jornalistas de Sergipe
Veja
a íntegra da crônica que causou os processos:
Eu, o
coronel em mim
Está
cada vez mais difícil manter uma aparência de que sou um homem democrático. Não
sou assim, e, no fundo, todos vocês sabem disso. Eu mando e desmando. Faço e
desfaço. Tudo de acordo com minha vontade. Não admito ser contrariado no meu
querer. Sou inteligente, autoritário e vingativo. E daí?
No entanto, por conta de uma democracia de fachada, sou obrigado a manter
também uma fachada do que não sou. Não suporto cheiro de povo, reivindicações e
nem conversa de direitos. Por isso, agora, vocês estão sabendo o porquê apareço
na mídia, às vezes, com cara meio enfezada: é essa tal obrigação de parecer
democrático.
Minha fazenda cresceu demais. Deixou os limites da capital e ganhou o estado.
Chegou muita gente e o controle fica mais difícil. Por isso, preciso manter
minha autoridade. Sou eu quem tem o dinheiro, apesar de alguns pensarem que o
dinheiro é público. Sou eu o patrão maior. Sou eu quem nomeia, quem demite. Sou
eu quem contrata bajuladores, capangas, serviçais de todos os níveis e bobos da
corte para todos os gostos.
Apesar desse poder divino sou obrigado a me submeter à eleições, um absurdo.
Mas é outra fachada. Com tanto poder, com tanto dinheiro, com a mídia em minhas
mãos e com meia dúzia de palavras modernas e bem arranjadas sobre democracia,
não tem para ninguém. É só esperar o dia e esse povo todo contente e feliz vota
em mim. Vota em que eu mando.
Ô povo ignorante! Dia desses fui contrariado porque alguns fizeram greve e
invadiram uma parte da cozinha de uma das Casas Grande. Dizem que greve faz parte
da democracia e eu teria que aceitar. Aceitar coisa nenhuma. Chamei um jagunço
das leis, não por coincidência marido de minha irmã, e dei um pé na bunda desse
povo.
Na polícia, mandei os cabras tirar de circulação pobres, pretos e gente que
fala demais em direitos. Só quem tem direito sou eu. Então, é para apertar
mais. É na chibata. Pode matar que eu garanto. O povo gosta. Na educação,
quanto pior melhor. Para quê povo sabido? Na saúde...se morrer “é porque Deus
quis”.
Às vezes sinto que alguns poucos escravos livres até pensam em me contrariar.
Uma afronta. Ameaçam, fazem meninice, mas o medo é maior. Logo esquecem a raiva
e as chibatadas. No fundo, eles sabem que eu tenho o poder e que faço o quero.
Tenho nas mãos a lei, a justiça, a polícia e um bando cada vez maior de
puxa-sacos.
O coronel de outros tempos ainda mora em mim e está mais vivo que nunca. Esse
ser coronel que sou e que sempre fui é alimentado por esse povo contente e
feliz que festeja na senzala a minha necessária existência.
José
Cristian Góes
29/05/2012 - 09:57
Núcleo
Piratininga
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