Publicado em 2.1.13 - por Venício Lima / Obs. da Imprensa
Não há como ignorar certa monotonia nos balanços de fim de ano do setor de
comunicações. Sem muito esforço, um observador atento constatará que:
1.Os atores e interesses que interferem, de facto,
na disputa pela formulação das políticas públicas são poucos: governo,
empresários de mídia (inclusive operadores de telefonia e fabricantes de
equipamento eletroeletrônico) e parlamentares.
Há que se mencionar ainda o Judiciário que, por meio de sua mais alta corte, o
Supremo Tribunal Federal (STF), tem interpretado a Constituição de 1988 de
maneira a legitimar uma inusitada hierarquia de direitos em que prevalece a
liberdade da imprensa sobre a liberdade de expressão e os direitos de defesa e
proteção do cidadão (acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental – ADPF – nº 130, de 2009). Aguarda decisão, por exemplo, a Ação
Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº 2404 na qual os empresários de
radiodifusão, usando a sigla do PTB e representados pelo ex-ministro Eros Grau,
pedem a impugnação do artigo 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente – vale
dizer, questionam a política pública definida pelas portarias 1220/2006 e
1000/2007 do Ministério da Justiça que estabeleceram as normas para
Classificação Indicativa de programas de rádio e televisão.
Não me esqueci da chamada “sociedade civil organizada” – movimentos sociais,
partidos, sindicatos, ONGs, entidades civis, dentre outros. Todavia, como sua
interferência continua apenas periférica no jogo político real, prefiro tratá-la
como um não-ator.
2.Alguns atores ocupam posições superpostas, por exemplo:
ministro das Comunicações e/ou parlamentar (poder concedente) é,
simultaneamente, empresário de mídia (concessionário de radiodifusão); e,
3.As principais regras e normas legais são mantidas ou se
reproduzem, ao longo do tempo, mesmo quando há – como tem havido – um processo
de radicais mudanças tecnológicas.
Essa realidade pode ser verificada, em seus eixos principais, pelo menos
desde a articulação que levou à derrubada dos 52 vetos do então presidente João
Goulart ao Código Brasileiro de Telecomunicações – CBT (Lei 4.117/1962) e que
deu origem à criação da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão
(Abert), 50 anos atrás. Depois disso, no que se refere às concessões do serviço
de radiodifusão, mais ou menos a cada dez anos as regras se consolidam: primeiro
na Lei 5.785/1972; depois no Decreto 88.066/1983 e na Constituição de 1988 e,
mais recentemente, no Decreto 7670/2012.
O resultado é que, ano após ano, permanece praticamente inalterada a
supremacia de determinados grupos e de seus interesses na condução da politica
pública de comunicações.
Creio que as políticas de radiodifusão no Brasil constituem um exemplo
daquilo que, em Ciência Política, os institucionalistas históricos chamam de
“dependência de trajetória” (path dependency), isto é, “uma vez
iniciada uma determinada política, os custos para revertê-la são aumentados.
(...) As barreiras de certos arranjos institucionais obstruirão uma reversão
fácil da escolha inicial” (Levi).
O eventual leitor(a) poderá constatar esta “dependência de trajetória” nos
balanços que tenho publicado neste Observatório desde 2004 (ver “Adeus
às ilusões“, “Balanço
de muitos recuos e alguns avanços“, “Notas
de um balanço pouco animador“, “Balanço
provisório de um semestre inusitado“, “Mais
recuos do que avanços“ “Algumas
novidades e poucos progressos“, “O
que se pode esperar para 2009? (1)“, “O
que se pode esperar para 2009? (final)“, “Por
que a mídia não se autoavalia?“ e “Os
avanços de 2011“).
2011 versus 2012
No fim de 2011, escolhi fazer um breve “balanço seletivo” registrando fatos
que poderiam ser considerados como avanços no sentido da democratização da
comunicação (ver “Os
avanços de 2011“). Um ano depois, muito do que se esperava que acontecesse
no curto prazo, de fato, não se concretizou. Exemplos:
(a)o marco civil da internet não foi votado pelo Congresso
Nacional;
(b)o esperado crescimento e fortalecimento dos movimentos em
prol da criação dos conselhos estaduais de comunicação social em vários estados
da Federação não ocorreu: o movimento prossegue em Brasília; o conselho da Bahia
foi instalado, mas funciona precariamente; e o projeto no Rio Grande do Sul
ainda não foi encaminhado à Assembleia Legislativa; e,
(c)a Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o
Direito a Comunicação com Participação Popular (Frentecom), que havia sido
criada em abril e da qual se esperava um papel relevante no encaminhamento de
questões relativas às comunicações na Câmara dos Deputados, apesar do esforço de
vários de seus integrantes tem sido ignorada pela direção da Casa.
Por outro lado, 2012 poderá ser lembrado por alguns acontecimentos
protagonizados direta ou indiretamente pela grande mídia, no Brasil e no
exterior.
Inglaterra e Argentina
O primeiro registro há de ser para Inquérito Leveson (The Leveson Inquiry) cujo relatório
final foi apresentado em novembro. Nele está uma descrição/diagnóstico de
práticas “jornalísticas” que, infelizmente, não ocorrem apenas na Inglaterra. Há
também um conjunto de propostas de ações institucionais para evitar o
desvirtuamento completo da liberdade da imprensa, inclusive a criação de uma
instância reguladora autônoma, tanto em relação ao governo quanto aos
empresários de mídia. Independente dos resultados concretos, o relatório Leveson
deveria ser lido e discutido entre nós (ver, neste Observatório, “Um
documento com lugar na história“, “Areopagítica,
368 anos depois“ e “O
vespeiro do controle externo“).
O segundo registro é a batalha judicial que ocorre na Argentina entre o
governo e o Grupo Clarín. Um projeto que surgiu de amplo debate nos mais
diferentes segmentos da sociedade foi submetido ao Congresso Nacional – onde
tramitou, recebeu emendas, foi aprovado e transformado em lei. Mesmo tendo essa
origem, a Ley de Medios de 2009 vem enfrentando, por parte de um dos principais
oligopólios de mídia da América Latina e de seus aliados, inclusive no Brasil,
uma resistência feroz, como se constituísse uma ameaça – e não uma garantia – à
liberdade de expressão. Como afirmou recentemente o relator especial da ONU para
liberdade de expressão, a Ley de Medios argentina deveria ser estudada como um
exemplo de regulação democrática, protetora da liberdade de expressão plural e
diversa.
Discurso único
No Brasil, o ano de 2012 foi dominado pelo discurso único da grande mídia –
antes, durante e depois das eleições municipais – em torno do julgamento da Ação
Penal nº 470 e da CPI do Cachoeira. O macarthismo praticado no tratamento de
vozes discordantes confirma ad nauseamo papel da grande mídia de
julgar, condenar e/ou omitir, seletiva e publicamente, ignorando o princípio da
presunção de inocência e/ou a ausência de provas.
A defesa corporativa e intransigente de jornalistas envolvidos em práticas
suspeitas, a transformação do julgamento no STF em espetáculo, o massacre
seletivo a determinados políticos e partidos e a mitificação (ou a execração)
pública de juízes, reafirmam o papel político/partidário que a grande mídia tem
desempenhado em momentos decisivos de nossa história, a rigor, desde o início do
século 19.
Numa época em que os impressos atravessam uma crise de variadas dimensões;
jornais e revistas tradicionais são fechados (Jornal da Tarde
eNewsweek, por exemplo) e “práticas jornalísticas” são questionadas
(exemplo: o Inquérito Leveson, na Inglaterra), não deixa de surpreender a
intolerância arrogante dos pronunciamentos na reunião anual da Sociedade
Interamericana de Imprensa (SIP, na sigla em espanhol), ocorrida em outrubro, em
São Paulo, e manifestações e documentos provenientes dos institutos Millenium e
Palavra Aberta (think tankse lobistas do empresariado), como se os
donos da imprensa se constituíssem no inquestionável padrão ético de referencia
para a liberdade e a democracia.
Inércia governamental
O ano de 2012 ficará também marcado pela inquietante inércia do governo
federal em relação ao setor de comunicações. Salvo o decreto que regulamentou a
Lei de Acesso à Informação (Decreto 7.724, de 16/05/2012) e a norma do
Ministério das Comunicações que regulamenta o Canal da Cidadania (previsto no
Decreto 5820/2006 para a transmissão de programações das comunidades locais, e
para a divulgação de atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos dos poderes
públicos federal, estadual e municipal), não há praticamente nada.
Onde estão as propostas (mais de seiscentas) aprovadas na 1ª Conferência
Nacional de Comunicação (Confecom) e encaminhadas ao governo federal em dezembro
de 2009?
Onde está o projeto de marco regulatório elaborado no fim do governo Lula e
encaminhado pelo ministro Franklin Martins ao ministro Paulo Bernardo, em
janeiro de 2011?
Por outro lado, uma leitura equivocada das normas legais de distribuição de
recursos publicitários pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da
República (Secom-PR) vem sufocando financeiramente a chamada mídia alternativa e
consolidando ainda mais a concentração de grupos oligopolísticos. A mídia
alternativa, por óbvio, não tem condições de competir com a grande mídia se
aplicados apenas os chamados “critérios técnicos” de audiência e CPM (custo por
mil).
Se fossem cumpridos os princípios constitucionais (muitos ainda não
regulamentados), o critério de distribuição de recursos deveria ser “a máxima
dispersão da propriedade” (Edwin Baker), isto é, a garantia de que mais vozes
fossem ouvidas no espaço público promovendo a diversidade e a pluralidade – vale
dizer, mais liberdade de expressão.
E o Parlamento?
Além da não votação do marco civil da internet, impedida pelos poderosos
interesses das empresas de telecom em relação à neutralidade da rede, há de se
mencionar a reinstalação, em julho, do Conselho de Comunicação Social (CCS),
depois de quase seis anos de inatividade ilícita. A mesa diretora do Congresso
Nacional, presidida por José Sarney, cuja família é historicamente vinculada a
concessões de radiodifusão, ignorou a Frentecom e articulou a nova composição do
CCS fazendo que nele prevaleçam interesses oligárquico-empresariais e
religiosos.
Os não-atores
Por fim, os não-atores. O destaque é o lançamento pelo renovado coletivo do
Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) dacampanha nacional
“Para expressar a liberdade – Uma nova lei para um novo tempo”(em abril) e seus
vários eventos regionais e locais, incluindo a vinda ao Brasil de Frank La Rue,
o relator especial pela liberdade de expressão da ONU (em dezembro). Apesar do
boicote sistemático da grande mídia, a atenção que a campanha tem recebido na
mídia alternativa constrói um embrionário espaço público onde circulam
informações que não estão disponíveis nas fontes dominantes.
Registre-se ainda que partidos políticos – sobretudo a partir do julgamento
da Ação Penal nº 470 – finalmente parecem se dar conta da importância
fundamental das comunicações no jogo político. Salvo raras exceções, todavia,
não se tem até agora resultados concretos na atuação partidária no Congresso
Nacional, nem na proposta de projetos e/ou ações junto à sociedade.
Não será fácil
O mundo não acabou, como muitos acreditavam. Os índices de desemprego nunca
foram tão baixos e o salário médio tão elevado. A ascensão social fez as classes
A e B crescerem 54% na última década e, nos próximos três anos, outras oito
milhões de pessoas serão a elas incorporadas. O Corinthians, patrocinado pela
Caixa Econômica Federal, é campeão mundial de futebol. O nível de satisfação do
brasileiro nunca esteve tão elevado (de acordo com pesquisas do Data Popular,
IBGE e Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República).
A novela Avenida Brasil dominou as telas de TV ao longo de seis
meses com audiências médias de 50% (Ibope). A grande mídia – sustentada em boa
parte por verbas oficiais (70% dos recursos distribuídos nos primeiros 19 meses
do atual governo foram destinados a apenas 10 grupos privados, de acordo com a
Secom-PR) – celebra a condenação dos “corruptos” na Ação Penal nº 470; se
apresenta como defensora da ética pública e das liberdades – sobretudo da
liberdade de expressão –; e prossegue na sua obsessão seletiva de mobilizar a
“opinião pública” contra determinados políticos e partidos.
As médias de aprovação tanto do governo como da presidente Dilma Rousseff
batem recordes após recordes: 62% e 78%, respectivamente, de acordo com a última
pesquisa CNI/Ibope (dezembro).
Diante desses fatos, sejamos razoáveis.
Como fazer que uma população majoritariamente feliz se dê conta de que seu
direito fundamental à liberdade de expressão está sendo exercido apenas por uns
poucos oligopólios que defendem os seus (deles) interesses como se fossem o
interesse publico?
Mais ainda: como esperar que um governo em lua-de-mel com a “opinião pública”
corra o risco de enfrentar o enorme poder simbólico de oligopólios de mídia,
capaz de destruir reputações públicas construídas ao longo de uma vida inteira
em apenas alguns segundos?
Em 2013 não será fácil – como, aliás, nunca foi.
A ver.
***
[Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, pesquisador visitante no
Departamento de Ciência Política da UFMG (2012-2013), professor de Ciência
Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor de Política de
Comunicações: um Balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher
Brasil, 2012, entre outros livros]