Entrevistas
Levante Popular da Juventude quer renovar práticas da esquerda
Os "escrachos" realizados contra agentes
da ditadura deram visibilidade nacional ao Levante Popular da Juventude, um
movimento que nasceu em 2005, no Rio Grande do Sul, e que hoje está organizado
em dezessete estados do país. Reunindo estudantes, jovens da periferia e do
campo, o Levante se propõe a renovar as práticas de militância da esquerda em
defesa da construção de um projeto popular para o Brasil, em uma perspectiva
socialista. Em entrevista à Carta Maior, Lucio Centeno, Janaita Hartmann e
Lauro Duvoisin falam sobre o projeto do Levante.
Publicado
em 22.10.12 – Por Marco Aurélio Weissheimer, da Carta Maior
Porto
Alegre - O ano
de 2012 viu nascer uma novidade no cenário político brasileiro. Um grupo de
jovens, organizado em torno do Levante Popular da Juventude, realizou uma série
de atos denominados “escrachos” em frente às residências ou locais de trabalho
de acusados de praticar crimes durante a ditadura. Em várias cidades do país,
centenas de jovens saíram às ruas para denunciar esses crimes e defender a
instalação da Comissão Nacional da Verdade para restaurar a memória, a verdade
e a justiça desse período. Os atos contra os agentes da ditadura deram
visibilidade nacional a esse movimento cujas origens remontam a 2005, no Rio
Grande do Sul, a partir de militantes ligados à Via Campesina e à Consulta
Popular. Em entrevista à Carta Maior, concedida na sede da organização em Porto
Alegre, Lucio Centeno, Janaita Hartmann e Lauro Almeida Duvoisin falam sobre
esse novo movimento social que tem como objetivo estratégico maior a construção
de um projeto popular para o Brasil numa perspectiva socialista.
O marco
da nacionalização do movimento ocorreu em fevereiro de 2012, durante um
acampamento nacional em Santa Cruz do Sul (RS) que reuniu em torno de mil
jovens de dezessete estados. Reunindo estudantes universitários e
secundaristas, jovens das periferias das cidades e também do campo, o Levante
se propõe a resgatar práticas relegadas a um segundo plano pela esquerda
partidária, como o trabalho de base organizado a partir de células de
militância, e defende a unidade dos movimentos sociais e dos partidos de
esquerda em torno de alguns objetivos comuns: derrotar a direita e o projeto
neoliberal no Brasil e conquistar uma ampla maioria na sociedade para um
processo de transformação social, política e econômica no país.
O que é o Levante Popular da Juventude? Quando nasceu?
Lucio Centeno: Nenhum de nós aqui iniciou essa construção do Levante.
Ela foi fruto de um trabalho de mobilização e da iniciativa que alguns
companheiros tiveram no final de 2005, quando movimentos ligados à Via
Campesina, incentivados pela Consulta Popular, identificaram que era necessário
naquele momento fortalecer o processo de organização da juventude, em especial
da juventude urbana. No campo já havia um processo relativo de organização com
os movimentos da Via, mas muito pouco no meio urbano. A partir dessa leitura,
alguns companheiros assumiram a tarefa de construir o que viria a ser o Levante
Popular da Juventude. E o Levante nasce com a característica de ser uma
ferramenta da juventude e não apenas de um segmento desse setor. Desde o
início, se tinha a leitura da necessidade de se organizar não apenas os jovens
estudantes universitários, mas também os jovens das periferias urbanas e,
principalmente, articular essa juventude que não tinha um referencial de
organização como tinha a juventude camponesa, organizada em torno da Via. O
Levante nasce, então, com essa característica de aglutinar diferentes segmentos
da juventude a partir de diferentes meios de inserção.
Neste sentido, é um movimento original. Normalmente o que há são
movimentos de juventude ligados a partidos e a alguns segmentos específicos,
como é o caso do movimento estudantil...
Lucio Centeno: Sim, o Levante nasce com esse referencial da esquerda
social, do campo dos movimentos sociais. Ele se propõe a ser um movimento
social e não uma juventude partidária, com esse recorte de querer articular
jovens estudantes universitários, secundaristas e jovens da periferia urbana.
Lauro Duvoisin: Essa iniciativa surgiu também com base numa leitura que
identifica, nos anos 2000, uma mudança nos setores mais dinâmicos da luta
social. Embora exista ainda uma dinâmica grande lutas do MST, por exemplo, que
foi uma referência nos anos 90, já ficava claro neste período que, sozinho, o
MST não conseguiria seguir adiante. Neste período havia também uma crítica
muito grande ao trabalho urbano sindical mais clássico da esquerda. Então, o
Levante surge nesse contexto com o objetivo de renovar as práticas da esquerda
e de resgatar uma prática que foi sendo negligenciada, que é o trabalho de
base, aquilo que as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) faziam nos anos 70 e
80 e que sustentou boa parte do acúmulo que a esquerda teve neste período.
A ideia é que a juventude pode ser o setor dinâmico para voltar a impulsionar a
luta. Daí a decisão de não segmentar a juventude como uma categoria no sentido
econômico-corporativo, e fazer com que ela irradie sua força e sua prática para
outros setores da sociedade, seja da classe trabalhadora urbana, do meio
camponês ou do meio popular urbano. O objetivo é que ela forme novas
referências e novos militantes para que o movimento cresça em todas essas
frentes.
Qual é o horizonte estratégico do trabalho do Levante que transita em um
espaço comum ao dos partidos de esquerda e ao dos movimentos sociais? Qual é o
objetivo das lutas e das mobilizações?
Lucio Centeno: Esse é outro aspecto diferencial do Levante na medida em
que ele não tem uma bandeira econômica setorial definida. O MST, por exemplo,
tem claramente um horizonte que é a construção de uma reforma agrária popular.
Já o Levante, por aglutinar diferentes setores da juventude e, principalmente,
por ter uma perspectiva de luta política por um projeto de sociedade, e não só
por demandas específicas, desenvolve um conjunto de lutas a partir daquilo que
entendemos como um projeto popular para o Brasil. Então, embora não tenhamos
uma bandeira claramente definida, pretendemos fortalecer e contribuir para a
construção de um conjunto de bandeiras que apontam para esse projeto popular
para o Brasil, para o fortalecimento de um projeto democrático e popular, que
passa pela reforma agrária, pela descentralização dos meios de comunicação,
pela garantia dos direitos básicos de educação, saúde, moradia, transporte.
Dentro desse guarda-chuva maior do projeto popular, os militantes do Levante,
conforme sua inserção em um meio específico, trabalham contradições que
envolvem esses jovens, relacionando esses problemas com a construção de um
projeto maior para o país.
Lauro Duvoisin: A gente fala muitas vezes que o Levante não nasceu para
dar conta de uma demanda específica, mas para buscar qual é a pauta capaz de
levantar a juventude. E como o Lúcio afirmou, o Levante também se insere em uma
estratégia que é maior do que ele, que é a construção, pelo campo da esquerda
popular, de um projeto para o Brasil. Temos clareza que esse projeto não será
construído só pela juventude. O Levante é uma parte de todo esse movimento. Sua
tarefa é organizar a juventude por demandas específicas e por um projeto
político maior, procurando também formar militantes para todas as outras
frentes que compõem essa estratégia.
Nos últimos meses, o Levante ganhou maior visibilidade nacional com os
escrachos contra agentes da ditadura realizados em várias cidades do país. Como
surgiu essa ideia e qual o lugar desse tema na agenda da organização, no
momento em que a Comissão da Verdade investiga crimes praticados por agentes do
Estado naquele período?
Lucio Centeno: O Levante nasceu no Rio Grande do Sul em 2006, como um
movimento estadual. Em outros estados, já havia mobilizações com a juventude
que eram chamadas de juventude do campo com a cidade, mas ainda não havia uma
proposta organizativa. Aqui no Rio Grande do Sul conseguimos transformar essa
mobilização em um movimento social autônomo da juventude. Passaram-se cerca de
cinco anos até que, em 2011, iniciou um processo de nacionalização do Levante,
juntando experiências parecidas do mesmo campo político. Assim, o Levante se
constituiu em dezessete estados. O marco de lançamento dessa nacionalização
ocorreu agora em fevereiro de 2012, quando realizamos um acampamento nacional
em Santa Cruz do Sul que reuniu em torno de mil jovens desses dezessete
estados.
A partir dessa nacionalização, se constituiu uma organicidade nacional, com uma
coordenação representativa desses estados e desses movimentos. Essa coordenação
nacional começou a elaborar a estratégia da organização e, naquele momento, se
identificou na conjuntura que essa bandeira da memória, verdade e justiça não
estava sendo efetivamente empunhada com a devida importância por praticamente
nenhum setor, para fazer um contraponto a movimentação que os militares vinham
fazendo para tentar desconstituir a Comissão Nacional da Verdade. Então,
naquele momento tínhamos os militares atuando nos bastidores, o governo acuado
e a imprensa de alguma forma sendo conivente com esse processo de ocultação dos
crimes da ditadura. Concluímos então que seria necessário uma mobilização da sociedade
para que a Comissão da Verdade fosse efetivada.
Vimos, a partir da experiência de organizações parceiras da América Latina, a
metodologia dos escrachos como a melhor forma de fazer ecoar essa bandeira.
Mapeamos então quais Estados poderiam fazer essa ação e trabalhamos de forma
coordenada nacionalmente para que tivéssemos um dia de ação nacional
denunciando os torturadores e a impunidade dos crimes da ditadura. A partir
disso, conseguimos uma grande adesão de vários setores da sociedade que impulsionaram
o governo para garantir a instalação da Comissão da Verdade.
Lauro Duvoisin: Foi a junção de um momento, de uma oportunidade, com a
condição que tínhamos alcançado. Se não tivéssemos uma organização de âmbito
nacional naquele momento, talvez não conseguíssemos fazer uma intervenção
daquela dimensão. A oportunidade estava ali. Conseguimos fazer uma leitura que
se demonstrou correta no sentido de que aquela pauta (Comissão da Verdade)
atingia o centro da conjuntura nacional. Pela primeira vez, o Levante conseguiu
influenciar a conjuntura nacional efetivamente, embora já estivéssemos
envolvidos em outras lutas locais.
Outra coisa importante nessas ações tem a ver com a questão do método que
empregamos, que diz um pouco do que o Levante quer fazer, que é renovar os
métodos de luta. Acreditamos que a luta que precisamos fazer é uma luta de
massas. No entanto, no atual período, uma forma de luta como os escrachos se
mostrou de grande valia para criar um impacto público sobre o tema da ditadura.
É isso que queremos fazer, renovar os métodos de luta. A gente carece disso na
esquerda.
Uma coisa que chamou muita atenção com os escrachos foi a grande
participação da juventude nesses atos, algo que até bem pouco tempo não
acontecia. Até então, o tema da ditadura não mobilizava a juventude. O que
mudou?
Janaita Hartmann: Acho que isso tem muito a ver com a recuperação que o
Levante faz da tradição de agitação e propaganda da esquerda. Desde 2008, a
gente faz intervenções para lembrar os mortos do massacre de Eldorado de
Carajás, com um teatro em lugar público. Então já temos uma história de ações
desse tipo. Nós acertamos ao juntar esse trabalho de agitação que a gente já
vinha fazendo com um tema da conjuntura que há muito tempo não era resgatado
dessa forma, e por uma geração que não passou pela ditadura.
Lauro Duvoisin: Parece que houve uma quebra de continuidade geracional
no Brasil. Na Argentina, desde muito tempo há a luta das Madres que se tornou
um símbolo continental. No Brasil, embora exista a luta dos familiares, essa
luta teve muito menos projeção social do que no caso da Argentina ou do próprio
Chile. Então, parece que houve um atraso um pouco maior no Brasil. Mas essa
pauta está viva na sociedade e não se esconde a história dessa forma. Isso
mostra também que a questão da anistia, tal como foi conduzida pelos militares
no final da ditadura, não está resolvida no Brasil.
Lucio Centeno: As intervenções do Levante conseguiram gerar adesões em
diferentes setores da sociedade, que até então não estavam se posicionando
muito sobre esse tema. A partir dos nossos atos, todo um campo se configurou em
defesa dessa bandeira e isolou quem defendia a ocultação da verdade e a
manutenção da impunidade. Essa é uma questão muito importante para nós:
desenvolver lutas que dê sustentação para um projeto popular para o país.
Esse projeto popular a que vocês se referem é um projeto de poder? Se é,
em algum momento, o Levante terá que se colocar a questão do partido. Vocês
fazem esse debate, tem a pretensão de, em algum momento, se constituir como
partido?
Lauro Duvoisin: A gente acredita que o projeto popular passa, sim, por
um projeto de poder. Mas o grande desafio no momento é conseguir retomar as
grandes lutas de massa no Brasil para que esse projeto se torne uma necessidade
da sociedade. Um projeto de poder não é um projeto de um pequeno grupo ou de
uma vanguarda isolada. Ele tem que se precedido de um processo que questione a
organização social e a estrutura econômica da sociedade. É com esse espírito
que o Levante entra na história. É evidente que os partidos e outras
organizações têm uma grande contribuição a dar nesse processo. Mas sem a
retomada das mobilizações de massa nenhuma organização conseguirá levar adiante
esse projeto.
Considerando a grande participação nos escrachos promovidos pelo Levante
e outras mobilizações de juventude, como essa que ocorreu em Porto Alegre
recentemente contra a privatização de espaços públicos, parece haver uma
ebulição de demandas na juventude que não está encontrando expressão nos partidos
de esquerda...
Lucio Centeno: Quando começamos a fazer os escrachos fomos questionados
sobre as mobilizações espontâneas da juventude na Europa e nos Estados Unidos.
É evidente que são protestos importantes e que expressam uma inconformidade com
o sistema, mas, enquanto movimento social, acreditamos que esses processos de
mobilização requerem organização. Existe um certo fetiche em torno dessa ideia
da capacidade das redes sociais e de novas ferramentas tecnológicas serem
grandes atores mobilizadores no próximo período. Consideramos esses atores
importantes, mas é imprescindível o processo organizativo na sociedade, que as
pessoas tenham uma referência de organização, que não fiquem refém de vontades
individuais ou de ativistas que atuam pontualmente.
Lauro Duvoisin: É por isso também que a gente preza a unidade tanto dos
movimentos sociais como dos partidos de esquerda. Acreditamos que todas as
organizações que tenham referência num projeto de democratização, de ampliação
dos direitos, de resgate da liberdade na sociedade e na perspectiva do
socialismo, devem fazer um esforço de unidade que hoje, muitas vezes, parece
ser um esforço de fragmentação, seja no campo eleitoral, seja em torno de
disputas menores e elementos táticos secundários que não são estratégicos. Para
isso, é preciso também dar exemplos de unidade. O Levante procura dar esse
exemplo.
Como é que o Levante se posiciona frente a períodos eleitorais. Qual foi
a posição nestas eleições municipais?
Lauro Duvoisin: A nossa linha é de combate à direita, não só nas eleições, mas
em todos os espaços da sociedade.
O que é a direita hoje no Brasil?
Lauro Duvoisin: Existe mais ou menos um consenso sobre o que é a direita
no Brasil. Há um bloco político-partidário formado por PSDB, DEM e alguns
partidos menores, que aglutina as forças defensoras do projeto neoliberal. Para
nós, quem se opõem ao neoliberalismo não é direita. Mas o Levante é um
movimento social autônomo que não tem vinculação partidária.
Janaita Hartmann: O Levante nasce da Via Campesina e da Consulta
Popular, como uma organização autônoma de jovens. Essas organizações ajudaram a
criar o Levante, mas ele é autônomo e passou a ter vida própria, tem uma
organicidade própria. Ele permite a presença de militantes que tenham vinculação
partidária desde que se respeite a autonomia do movimento.
Quais são os planos do Levante para os próximos meses. O tema da ditadura
e da Comissão da Verdade seguirá ocupando um lugar central na agenda do
movimento?
Lucio Centeno: O Levante se engaja num conjunto bastante diverso de
lutas. Nós nos organizamos a partir de células, grupos de jovens militantes que
estão inseridos em algum território, seja uma universidade, um assentamento, um
bairro ou uma comunidade. Essa célula tem a tarefa de fazer trabalho de base e
estimular as lutas nestes locais procurando mobilizar os jovens destes espaços.
Temos uma célula, por exemplo, na região da Cruzeiro, aqui em Porto Alegre, que
está sendo atingida pela duplicação da avenida Tronco, que é uma das chamadas obras
da Copa.
Nesta região, temos uma atuação prioritariamente voltada para organizar os
jovens e suas famílias e pressionar a prefeitura para que garanta o direito à
moradia dessas pessoas. É uma luta local, específica, mas que está associada a
um projeto mais amplo. Assim, cada célula está envolvida em alguma luta
específica. Mas entendemos que há a necessidade de convergência dessas lutas
específicas para lutas mais gerais, como essa em defesa da memória, da verdade
e da justiça, que terá continuidade, agora juntamente com os comitês populares
que se multiplicaram em vários Estados. O Levante não vai atuar isolado neste
processo.
Uma segunda pauta que estamos começando a desenvolver é a defesa da construção
de um projeto popular de educação. O Brasil sofreu durante muitos anos a
implementação de uma educação neoliberal. A partir das gestões do PT tivemos um
relativo avanço nesta área, com a criação de novas universidades e escolas
técnicas. Em comparação ao paradigma neoliberal foi um avanço, mas em comparação
com as demandas históricas da juventude em termos de acesso à educação, ainda
há muito que avançar.
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