Entrevistas
Venício: “Regulação da mídia não tem nada a ver com censura”
Publicado em 16.10.12 - Por Jonas Valente, reproduzido pelo Observatório da Imprensa a
partir da versão original publicada na revista Desafios do
Desenvolvimento nº 73, do IPEA
Atualmente, Venício Artur de Lima é colunista dos
sites Observatório da Imprensa e Carta Maior. Nesta entrevista, Venício traça
um panorama das políticas de comunicação e defende a importância de um novo
marco regulatório para o setor. O objetivo, segundo ele, é garantir a
universalização da liberdade de expressão. Em suas palavras, o conceito foi
apropriado pelos conglomerados de mídia, exatamente para impedir sua plena
realização.
Um dos maiores especialistas brasileiros em políticas de comunicação analisa a
forte monopolização do setor em nosso país. Segundo ele, a situação é um
empecilho para a consolidação da democracia e um impedimento para que várias
opiniões possam se manifestar no debate público. Venício Lima aponta a saída:
uma nova legislação que regulamente os artigos da Constituição referentes ao
tema, levando-se em conta os avanços tecnológicos existentes desde então. E
observa:”Isso não tem nada a ver com censura”.
Revista Desafios do Desenvolvimento: Alguns setores da sociedade
defendem a necessidade de uma nova regulação do setor de comunicações em nosso
país. Mas a proposta é atacada sob o argumento de que isso significaria um
controle social da mídia, com risco de resultar em censura. Qual sua opinião a
respeito?
Venício A. de Lima: A expressão “controle social da mídia” entrou na
narrativa da grande mídia por ocasião do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos
(PNDH), elaborado em 2009. Desde então, o termo passou a ser frequentemente
associado a intenções da gestão de Lula ou de seus apoiadores, embora sua
origem venha da segunda versão do Plano, elaborada no governo Fernando Henrique
Cardoso (1995-2002). A expressão “controle” é fartamente utilizada para outras
políticas públicas inscritas na Constituição, como educação, saúde, assistência
social, direitos dos idosos. Ela expressa um processo de descentralização da
administração pública por meio da criação de conselhos com participação
popular. A grande mídia satanizou a expressão e passou a identificá-la como
tentativa de censura. Pergunto: em que proposta ou projeto essa expressão pode
ser identificada com censura? Não existe isso.
Como isso se dá em outros países?
A regulação da área não tem nada a ver com censura. Na Inglaterra, há não só um
órgão estatal da radiodifusão, o Ofcom (Office of Communications), como uma
agência de autorregulação, a PCC (Press Complaints Comission), que está sendo
descontinuada para que surja outra com mais poder de interferência, depois do
escândalo envolvendo o jornal News of the World, do grupo News Corporation [de
Rupert Murdoch].
Mas por que os empresários de comunicação são contrários à regulação?
Porque está em jogo a própria ideia de liberdade. E, por extensão, do
conceito de liberdade de expressão. Na história brasileira, o liberalismo nunca
foi democrático. Ele pensa a questão da liberdade apenas do ponto de vista da
ausência de interferência do Estado. A liberdade é equacionada com a liberdade
individual desde que o individuo não seja impedido de fazer o que quiser e a
instituição adversária dessa liberdade é sempre o Estado. Quando você traduz
isso para área de política pública, e em particular para a área dos meios de
comunicação, qualquer interferência do Estado é identificada como ausência de
liberdade.
A ideia de liberdade de expressão é um conceito encontrado na experiência
democrática da Grécia de seis séculos antes de Cristo. Ela se realiza na medida
em que há a participação do homem livre na elaboração das regras às quais ele
deve se submeter. Ele é livre por participar da elaboração das regras que
confirmam a sua liberdade. Não tem nada a ver com a ideia de ausência de
interferência do Estado.
Qual seria a diferença entre liberdade de expressão e liberdade de imprensa?
A primeira associação entre liberdade de expressão e liberdade de imprensa
é totalmente inadequada. A liberdade de expressão aparece seis séculos antes de
Cristo associada a uma capacidade de autogoverno, que hoje se aproximaria da
ideia de cidadania. Já a liberdade de imprensa implica a existência da
imprensa, que só aparece no final do século 15. Quando se estuda a história dos
meios de comunicação, se pode ver como a ideia original de liberdade de
expressão está longe dessa instituição que hoje se constitui de grandes
conglomerados multimídia. O que há são as expressões das posições desses grupos
empresariais. De forma nenhuma podem ser entendidas como portavozes da
liberdade de expressão coletiva.
Isso muda com a internet?
Sim, ela possibilita o surgimento de um espaço que pode ser acessado por
qualquer um e se aproxima mais da ideia de universalização da liberdade de
expressão do que a atuação de poucos grupos que fazem negócio com a atividade
de mídia que reivindicam para si a expressão de uma opinião pública coletiva, a
condição de representantes de uma diversidade de vozes. No caso brasileiro, na
Constituição Federal, a expressão liberdade de imprensa só aparece uma vez,
quando se trata da situação de Estado de Sítio. E inventaram essa da liberdade
de expressão comercial, o que inclusive, do ponto de vista legal, é uma
rebeldia contra a Carta de 1988. Os empresários que reivindicam esse conceito o
fazem resistindo a normas constitucionais que preveem restrições à publicidade
de alimentos nocivos à saúde, classificação indicativa para orientar horários
de transmissão de programas e restrições à publicidade de cigarro e bebidas.
Então a regulação estaria mais associada à liberdade de expressão sob uma
perspectiva coletiva?
Quando você fala em regulação, no caso brasileiro, se fala em regulamentar
primeiramente as normas da Constituição de 1988. A posição do governo Dilma
parece ser clara em relação a isso. Os temas principais são a proibição da
prática de monopólio e oligopólio e a prioridade à produção independente e
regional. A segunda coisa é contemplar o avanço tecnológico imenso pelo qual
passou a área depois da promulgação da Carta Magna. Esse avanço diluiu a
divisão que havia entre telecomunicações e radiodifusão.
Quais os critérios para orientar a regulação?
O grande critério deve ser aumentar o número de vozes que participam do
debate público. Por isso, os conselhos [de comunicação social] são tão
fundamentais. Eles possibilitam a ampliação da participação na gestão das
políticas públicas.
As regras existentes conseguem garantir a liberdade de expressão?
Para entender o modelo atual, é preciso discutir os vetos que o então
presidente João Goulart havia feito ao projeto do Código Brasileiro de
Telecomunicações (CBT). Eles foram derrubados por pressão dos empresários no
Congresso, em 1962. Havia uma disputa de poder entre concessionários do serviço
público e o poder concedente, vale dizer, entre o Poder Executivo e os
radiodifusores. Os vencedores queriam – e conquistaram – prazos dilatados para
as concessões (10 e 15 anos), renovação automática delas, ausência de
penalidade (mesmo após julgamento pelo Poder Judiciário) em casos de divulgação
de notícias falsas e assimetria de tratamento em relação a outros
concessionários de serviços públicos – alteração da lei de mandado de
segurança. A derrubada dos vetos se constituiu na espinha dorsal da regulação
da radiodifusão no Brasil. Algumas dessas normas os radiodifusores conseguiram
incluir na Constituição de 1988. Assim, para a Associação Brasileira de
Emissoras de Rádio e TV (Albert), não há necessidade de novo marco. É como se
nada justificasse uma mudança das regras de meio século atrás. A necessidade de
uma nova regulação hoje, entre as várias razões, passa pela atualização da
legislação em razão das mudanças tecnológicas.
Quais são as principais insuficiências do modelo brasileiro?
A regulação atual perpetua um problema histórico da sociedade brasileira,
que é a exclusão da imensa maioria da população da gestão da coisa pública. As
questões básicas têm a ver com a impossibilidade da universalização da
liberdade de expressão. E aí há o paradoxo: exatamente os grandes meios de
comunicação, que impedem essa universalização, empunham a bandeira da liberdade
de expressão.
Que mecanismos o novo marco regulatório precisa criar?
É fundamental definir uma agência autônoma para a área de radiodifusão, que
expresse a separação entre telecomunicações e radiodifusão. Isso existe nas
principais democracias liberais do mundo. Outro ponto importante é a criação de
conselhos estaduais de comunicação, como órgãos auxiliares do Poder Executivo.
São fundamentais para o exercício da liberdade de expressão. Isso está previsto
na Constituição em nível federal. Temos de regulamentar o Artigo 221 da
Constituição, que trata da comunicação social. É preciso lutar para que as
garantias do Artigo 5o também sejam incluídas. O direito de resposta é uma
delas e está descoberto desde a derrubada da Lei de Imprensa pelo Supremo
Tribunal Federal.
Se a Constituição proíbe os monopólios, como os grandes grupos de mídia
constituem seu poder?
Este é um dos temas mais graves: a concentração da propriedade, que passa
pela questão da propriedade cruzada. Ela se forma quando um mesmo grupo num
mesmo mercado é proprietário de jornal, detém concessões de rádio AM e FM e de
televisão e, em seguida, passa a ter uma operadora de TV por assinatura e um
portal de internet. Tanto os grupos nacionais como os regionais se formaram a
partir da propriedade cruzada. No Brasil, nunca houve controle dessa prática.
Uma nova regulação – a exemplo do que existe nos Estados Unidos e na Argentina
– deveria prever normas que valessem com prazos para a desconstrução de
monopólios já constituídos. O prazo dilatado da concessão provoca uma distorção
no entendimento dos concessionários. Eles se julgam proprietários da concessão.
A proprietária é a União.
A formação de redes nacionais de TV e rádio aumenta o poder dos grandes
grupos?
Segundo a legislação do setor, um grupo concessionário, que no limite pode
ter cinco concessões na faixa VHF em todo o território nacional, exerce, pelo
processo de filiação, um controle de fato sobre um conjunto enorme de
emissoras. Só que a caracterização de rede não é bem definida pela legislação.
Apesar do decreto 236 de 1967 apresentar uma provisão específica sobre o tema,
a interpretação do órgão controlador, o Ministério das Comunicações, nunca
considerou a filiação exercida pelos grandes grupos de mídia como sendo
formação de rede, tanto na área de rádio quanto na de TV. Isso é um absurdo. No
Brasil, a ausência de controle tem levado a formas de produção inéditas no
mundo inteiro. Vamos pegar o exemplo de uma novela. Um grupo poderoso, mantém
sob contrato os autores, os atores e os técnicos.
Os artistas que produzem as trilhas sonoras têm suas músicas nas novelas
divulgadas pelo selo musical e pelos jornais e revistas do próprio grupo. É uma
integração tanto vertical quanto horizontal completa. E isso sufoca a
possibilidade de manifestação de outras vozes.
Como é a relação dos grupos de mídia com o poder político e econômico?
Há um modelo tradicional de barganha política, consolidado na ditadura
militar. Os coronéis eletrônicos exercem uma influência na formação da opinião
pública de duas formas. A primeira é direta, porque controlam o acesso ao
debate público. A segunda é indireta por impedirem eventuais concorrentes em
uma disputa eleitoral de terem acesso a esse debate. Há um desvirtuamento do
processo democrático, que favorece a esses grupos políticos em vez de facilitar
a universalização da liberdade de expressão. Um dos pontos críticos na
legislação brasileira, que favorece essa apropriação, é o artigo 54 da
Constituição, que trata da presença de eleitos para cargos públicos em
concessões de rádio e TV. Como o Congresso Nacional ratifica as concessões
definidas pelo Executivo, existe a situação absurda de concessionários
interferirem diretamente no processo de aprovação das licenças. Uma mesma
pessoa é poder concedente e concessionário. Isso não pode existir.
Como o sistema político de rádio e TV opera nesse universo?
A Constituição instituiu o princípio da complementaridade entre os sistemas
público, privado e estatal. Desde a década de 1930, quando o Estado priorizou a
exploração pela iniciativa privada, as concessões têm sido dadas especialmente
a grupos privados. Na Carta, há a intenção de se buscar um equilíbrio entre os
setores. Até há poucos anos não existia a figura de uma empresa pública, o que
acontece com a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC). O fortalecimento do
sistema público busca cumprir um preceito constitucional. Só que ele nunca foi
regulamentado por completo. A EBC, com todos os problemas e os emperramentos,
tem avançado. É um modelo em construção.
Por Jonas Valente, reproduzido pelo Observatório da Imprensa a partir da versão
original publicada na revista Desafios do Desenvolvimento nº 73, do IPEA;
título original “Os grupos contrários à liberdade de expressão são os mesmos
que empunham a bandeira da liberdade de expressão”.
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