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MP vai investigar incêndios em favelas paulistas, localizadas nas regiões de maior valorização imobiliária
Publicado em 25.9.12 - por Rodrigo Martins / Carta Capital
Na tarde da quarta-feira 19, a garçonete Rita Aparecida dos Santos,
de 50 anos, ainda fazia os cálculos das perdas sofridas durante o
incêndio que atingiu a favela do Moinho, no centro de São Paulo. Metade
do barraco de madeira foi completamente consumida pelas chamas, mas os
bombeiros conseguiram salvar o banheiro e um quartinho apertado, onde
ela tratava de ajeitar os poucos pertences resgatados. Panelas e
utensílios de cozinha, em sua maioria.
“Perdi fogão, geladeira, televisão e a maior parte das roupas. Na
hora em que ouvi a gritaria, o fogo já tava no meu telhado. Só deu tempo
de acordar meu marido e pegar alguns documentos”, conta, com o cachorro
Alex a tiracolo, um pouco chamuscado nas patas traseiras. “Aqui eu não
fico mais. É o segundo incêndio em menos de um ano. Não vou esperar o
terceiro”, conclui, com o olhar perdido para os escombros.
A favela do Moinho fica debaixo do viaduto Orlando
Murgel e às margens de uma linha de trens metropolitanos. Em dezembro do
ano passado, um incêndio de grandes proporções destruiu um terço da
comunidade e deixou ao menos 200 desabrigados. Duas pessoas morreram.
Desta vez, as chamas mataram um homem, destruíram 80 barracos e abalaram
a estrutura do viaduto, parcialmente interditado. Os bombeiros foram
chamados às 7h08 da segunda-feira 17 e só conseguiram controlar o fogo
cerca de uma hora e meia depois.
A tragédia é atribuída a uma briga de casal. A polícia prendeu o
travesti Fidélis Melo de Jesus, de 37 anos, conhecido como Eliete, que
teria ateado fogo no companheiro. Ambos eram usuários de crack.
A polícia trata o caso como uma fatalidade originada de um crime
passional. Mas a versão não convence a todos. Segundo as primeiras
informações passadas pelos bombeiros, havia três focos de incêndio na
favela, distantes cerca de 50 metros um do outro. “Curioso notar que os
moradores vitimados são os mesmos que há 15 dias tinham relatado a
ocorrência de forte pressão psicológica por parte da municipalidade, que
exigia que esses moradores deixassem o local até outubro”, afirma uma
nota da Associação de Moradores do Moinho. “Outra dúvida que cerca esse
novo episódio se refere aos três focos iniciais de incêndio, pondo em
dúvida a versão apresentada de briga de viciados em drogas.”
Segundo Francisco Miranda, presidente da entidade, desde 2006 a
prefeitura tenta remover a favela, onde vivem 532 famílias, que
totalizam 1.656 moradores, segundo dados do IBGE. Enquanto a
administração municipal tenta desapropriar a área e utilizá-la para
outros fins, os habitantes buscam conquistar o direito de permanecer no
local. “Estamos lutando para que o poder público ofereça opções de
moradia aqui mesmo, na região. Mas a prefeitura insiste em oferecer
bolsa aluguel, indenizações irrisórias ou a promessa de um apartamento,
só que longe daqui.”
Funcionário de uma confecção no Bom Retiro, Antonio Bezerra da Silva,
de 42 anos, teve parte da casa destruída com o recente incêndio e
reforça as desconfianças. “Não posso dizer que alguém veio aqui e tocou
fogo nos barracos para nos obrigar a sair. Mas uma coisa é verdade: a
prefeitura se aproveita da situação para interditar a área e forçar o
pessoal a sair”, diz. “Eu tive sorte, o fogo só atingiu o telhado. Mas e
os meus vizinhos que perderam tudo, vão para onde?”
A situação preocupa o promotor de Habitação e Urbanismo da capital,
José Carlos de Freitas, que pediu aos seus colegas do Grupo de Atuação
Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) para investigar a onda
de incêndios em favelas. “O número de casos é assustador. Além disso,
chama a atenção que a maioria dos incêndios ocorre em comunidades que
estão no caminho de alguma obra pública ou numa região em que o mercado
imobiliário tem interesse de construir empreendimentos para a classe
média ou a população de alta renda.” A Câmara dos Vereadores instalou
uma CPI para investigar esses episódios, mas pouco foi apurado em pleno
ano eleitoral.
De acordo com a assessoria de imprensa da Secretaria
de Segurança Pública de São Paulo, o recente incêndio na comunidade do
Moinho foi o 69º do ano. Entre 2005 e 2011, o Corpo de Bombeiros
registrou 849 ocorrências em favelas paulistanas. A fria análise dos
dados oficiais permite supor que, ano a ano, o número de casos tem
diminuído. Mas a urbanista Lucila Lacreta, diretora técnica do Movimento
Defenda São Paulo, alerta que a simples contagem de episódios pode
esconder a real dimensão do problema. “Uma ocorrência pode deixar
centenas de casas destruídas e milhares de desabrigados. Outra pode dar
conta de apenas dois barracos queimados. Certo é que eu nunca vi ser
noticiado, num intervalo de tempo tão curto, incêndios tão devastadores
como os de agora”, afirma a especialista. “Não há terrenos disponíveis
no centro expandido e muitos têm interesse nas áreas ocupadas
irregularmente.”
Em menos de um mês, foram cinco incêndios de grandes proporções na
capital. Em 3 de setembro, 1,1 mil pessoas ficaram desabrigadas após a
destruição de 290 barracos na favela Sônia Ribeiro, conhecida como Morro
do Piolho, na zona sul de São Paulo. Na ocasião, o próprio prefeito,
Gilberto Kassab, admitiu a possibilidade de o incêndio ter sido
criminoso: “Existe a suspeita de que o fogo possa ter sido provocado,
como, aliás, ocorreu em outros casos”.
Dois dias antes, um incêndio destruiu parte de uma comunidade na Vila
Brasilândia, na zona norte da capital. Em 28 de agosto, ao menos 55
barracos de uma favela de São Miguel Paulista, na zona leste, foram
destruídos pelas chamas. Menos de uma semana antes, outra favela na Vila
Prudente, também na zona leste, pegou fogo. Cerca de 150 moradias foram
destruídas.
João Finazzi, pesquisador do Programa de Educação Tutorial do curso
de Relações Internacionais da PUC-SP, recentemente publicou um artigo
que comprova o que boa parte dos urbanistas denuncia há tempos.
Primeiro, ele verificou a distribuição das mais de 1,5 mil favelas
existentes no território paulistano. Depois, mapeou as ocorrências de
incêndio mais recentes (São Miguel, Alba, Buraco Quente, Piolho,
Paraisópolis, Vila Prudente, Humaitá, Areão e Presidente Wilson). O
episódio na favela do Moinho só ficou de fora porque o artigo foi
escrito antes da tragédia. Conclusão: as chamas atingiram regiões que
concentram apenas 7,28% das favelas da cidade. Em outras áreas, que
concentram mais de 21% dos assentamentos irregulares da capital, como
Capão Redondo, Jardim Ângela, Campo Limpo e Grajaú, nenhum incêndio foi
registrado.
O estudo, coordenado pelo professor Paulo Pereira,
identificou ainda que as áreas atingidas pelos incêndios sofreram grande
valorização imobiliária entre 2009 e novembro de 2011, segundo a
Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe). “Todas as nove
favelas citadas estão em regiões de valorização imobiliária: Piolho
(Campo Belo, 113%), Vila Prudente (ao lado do Sacomã, 149%) e Presidente
Wilson (a única favela do Cambuci, 117%). Sem contar com Humaitá e
Areião, situadas na valorizada Marginal Pinheiros, e a já conhecida
Paraisópolis, vizinha incômoda do rico bairro do Morumbi”, afirma
Finazzi. “Onde não houve incêndio, a valorização imobiliária foi bem
menor nos últimos anos, em alguns casos até decrescente, como Grajaú
(-25,7%) e Cidade Dutra (-9%)”.
Para o urbanista Kazuo Nakano, do Instituto Pólis, a casuística é
realmente estranha. “Precisamos ampliar essa análise estatística, mas é
muita coincidência só pegar fogo nas favelas mais bem localizadas”,
afirma. “Há uma forte demanda por moradias na capital paulista,
impulsionada pelo crédito imobiliário farto, e não restam muitos
terrenos disponíveis. Também há o preconceito da classe média, que vê as
favelas como algo que deprecia o bairro e diminui o valor dos seus
imóveis. As autoridades precisam estar atentas.”
Responsável pela abertura do inquérito que investiga
as circunstâncias do incêndio no Morro do Piolho, o promotor Freitas
encaminhou ao Gaeco duas outras denúncias curiosas. Em um dos casos, um
fiscal da prefeitura teria oferecido indenizações de 15 mil reais para
moradores saírem de uma comunidade em Jurubatuba, sob a alegação de que
passaria uma obra pública no local. Ocorre que a prefeitura não tinha
qualquer projeto para aquela área. Em vez disso, uma grande construtora é
que teria o interesse de remover as famílias para erguer um
empreendimento. Em outro caso, moradores da Rocinha Paulistana, que
deverá ser removida para a construção de um túnel, denunciaram a atuação
de criminosos que incendiavam barracos desocupados para obter
indenizações do município.
“Esses episódios só refletem a falta de habilidade do poder público
em resolver o déficit habitacional. Primeiro, as autoridades são
coniventes com as ocupações irregulares, por vezes em áreas de risco.
Depois, tentam solucionar o problema com indenizações irrisórias ou
moradias em bairros afastados”, diz Freitas. “Mas, se ficar comprovado
que algum desses incêndios teve a intenção de forçar a remoção daquela
população, os responsáveis serão denunciados e punidos.”
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