Entrevistas
Segundo Venício Lima, os grupos contrários à liberdade de expressão são os mesmos que empunham a sua bandeira
Publicado em 20.9.12 - por Jonas Valente / Brasil de Fato
Venício Lima durante o 17º Curso Anual do NPC
Atualmente, Venício Artur de Lima é colunista dos
sites Observatório da Imprensa e Agência Carta Maior. Um dos maiores
especialistas brasileiros em políticas de comunicação, Lima analisa a
forte monopolização do setor em nosso país. Segundo ele, a situação é
um empecilho para a consolidação da democracia e um impedimento para
que várias opiniões possam se manifestar no debate público. Venício
Lima aponta a saída: uma nova legislação que regulamente os artigos da
Constituição referentes ao tema, levando-se em conta os avanços
tecnológicos existentes desde então. Nesta
entrevista, Venício traça um panorama das políticas de comunicação e
defende a importância de um novo marco regulatório para o setor. O
objetivo, segundo ele, é garantir a universalização da liberdade de
expressão. Em suas palavras, o conceito foi apropriado pelos
conglomerados de mídia, exatamente para impedir sua plena realização.
Desafios
do Desenvolvimento - Alguns setores da sociedade defendem a necessidade
de uma nova regulação do setor de comunicações em nosso país. Mas a
proposta é atacada sob o argumento de que isso significaria um controle
social da mídia, com risco de resultar em censura. Qual sua opinião a
respeito? Venício Lima - A
expressão “controle social da mídia” entrou na narrativa da grande
mídia por ocasião do 3o Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH),
elaborado em 2009. Desde então, o termo passou a ser frequentemente
associado a intenções da gestão de Lula ou de seus apoiadores, embora
sua origem venha da segunda versão do Plano, elaborada no governo
Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Isso não tem nada a ver com
censura, fartamente utilizada para outras políticas públicas inscritas
na Constituição, como educação, saúde, assistência social, direitos dos
idosos. Ela expressa um processo de descentralização da administração
pública por meio da criação de conselhos com participação popular. A
grande mídia satanizou a expressão e passou a identificá-la como
tentativa de censura. Pergunto: em que proposta ou projeto essa
expressão pode ser identificada com censura? Não existe isso. Como isso se dá em outros países? A
regulação da área não tem nada a ver com censura. Na Inglaterra, há não
só um órgão estatal da radiodifusão, o Ofcom (Office of
Communications), como uma agência de autorregulação, a PCC (Press
Complaints Comission), que está sendo descontinuada para que surja outra
com mais poder de interferência, depois do escândalo envolvendo o
jornal News of the World, do grupo News Corporation, [de Rupert
Murdoch]. Mas por que os empresários de comunicação são contrários à regulação? Porque
está em jogo a própria ideia de liberdade. E, por extensão, do conceito
de liberdade de expressão. Na história brasileira, o liberalismo nunca
foi democrático. Ele pensa a questão da liberdade apenas do ponto de
vista da ausência de interferência do Estado. A liberdade é equacionada
com a liberdade individual desde que o individuo não seja impedido de
fazer o que quiser e a instituição adversária dessa liberdade é sempre o
Estado. Quando você traduz isso para área de política pública, e em
particular para a área dos meios de comunicação, qualquer interferência
do Estado é identificada como ausência de liberdade. A ideia de
liberdade de expressão é um conceito encontrado na experiência
democrática da Grécia de seis séculos antes de Cristo. Ela se realiza na
medida em que há a participação do homem livre na elaboração das regras
às quais ele deve se submeter. Ele é livre por participar da elaboração
das regras que confirmam a sua liberdade. Não tem nada a ver com a
ideia de ausência de interferência do Estado. Qual seria a diferença entre liberdade de expressão e liberdade de imprensa? A
primeira associação entre liberdade de expressão e liberdade de
imprensa é totalmente inadequada. A liberdade de expressão aparece seis
séculos antes de Cristo associada a uma capacidade de autogoverno, que
hoje se aproximaria da ideia de cidadania. Já a liberdade de imprensa
implica a existência da imprensa, que só aparece no final do século XV.
Quando se estuda a história dos meios de comunicação, se pode ver como a
ideia original de liberdade de expressão está longe dessa instituição
que hoje se constitui de grandes conglomerados multimídia. O que há são
as expressões das posições desses grupos empresariais. De forma nenhuma
podem ser entendidas como portavozes da liberdade de expressão coletiva. Isso muda com a internet? Sim,
ela possibilita o surgimento de um espaço que pode ser acessado por
qualquer um e se aproxima mais da ideia de universalização da liberdade
de expressão do que a atuação de poucos grupos que fazem negócio com a
atividade de mídia que reivindicam para si a expressão de uma opinião
pública coletiva, a condição de representantes de uma diversidade de
vozes. No caso brasileiro, na Constituição Federal, a expressão
liberdade de imprensa só aparece uma vez, quando se trata da situação de
Estado de Sítio. E inventaram essa da liberdade de expressão comercial,
o que inclusive, do ponto de vista legal, é uma rebeldia contra a Carta
de 1988. Os empresários que reivindicam esse conceito o fazem
resistindo a normas constitucionais que preveem restrições à publicidade
de alimentos nocivos à saúde, classificação indicativa para orientar
horários de transmissão de programas e restrições à publicidade de
cigarro e bebidas. Então a regulação estaria mais associada à liberdade de expressão sob uma perspectiva coletiva? Quando
você fala em regulação, no caso brasileiro, se fala em regulamentar
primeiramente as normas da Constituição de 1988. A posição do governo
Dilma parece ser clara em relação a isso. Os temas principais são a
proibição da prática de monopólio e oligopólio e a prioridade à produção
independente e regional. A segunda coisa é contemplar o avanço
tecnológico imenso pelo qual passou a área depois da promulgação da
Carta Magna. Esse avanço diluiu a divisão que havia entre
telecomunicações e radiodifusão. Quais os critérios para orientar a regulação? O
grande critério deve ser aumentar o número de vozes que participam do
debate público. Por isso, os conselhos [de comunicação social] são tão
fundamentais. Eles possibilitam a ampliação da participação na gestão
das políticas públicas. As regras existentes conseguem garantir a liberdade de expressão? Para
entender o modelo atual, é preciso discutir os vetos que o então
presidente João Goulart havia feito ao projeto do Código Brasileiro de
Telecomunicações (CBT). Eles foram derrubados por pressão dos
empresários no Congresso, em 1962. Havia uma disputa de poder entre
concessionários do serviço público e o poder concedente, vale dizer,
entre o Poder Executivo e os radiodifusores. Os vencedores queriam – e
conquistaram – prazos dilatados para as concessões (10 e 15 anos),
renovação automática delas, ausência de penalidade (mesmo após
julgamento pelo Poder Judiciário) em casos de divulgação de notícias
falsas e assimetria de tratamento em relação a outros concessionários de
serviços públicos – alteração da lei de mandado de segurança. A
derrubada dos vetos se constituiu na espinha dorsal da regulação da
radiodifusão no Brasil. Algumas dessas normas os radiodifusores
conseguiram incluir na Constituição de 1988. Assim, para a Associação
Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Albert), não há necessidade de
novo marco. É como se nada justificasse uma mudança das regras de meio
século atrás. A necessidade de uma nova regulação hoje, entre as várias
razões, passa pela atualização da legislação em razão das mudanças
tecnológicas. Quais são as principais insuficiências do modelo brasileiro? A
regulação atual perpetua um problema histórico da sociedade brasileira,
que é a exclusão da imensa maioria da população da gestão da coisa
pública. As questões básicas têm a ver com a impossibilidade da
universalização da liberdade de expressão. E aí há o paradoxo:
exatamente os grandes meios de comunicação, que impedem essa
universalização, empunham a bandeira da liberdade de expressão. Que mecanismos o novo marco regulatório precisa criar? É
fundamental definir uma agência autônoma para a área de radiodifusão,
que expresse a separação entre telecomunicações e radiodifusão. Isso
existe nas principais democracias liberais do mundo. Outro ponto
importante é a criação de conselhos estaduais de comunicação, como
órgãos auxiliares do Poder Executivo. São fundamentais para o exercício
da liberdade de expressão. Isso está previsto na Constituição em nível
federal. Temos de regulamentar o Artigo 221 da Constituição, que trata
da comunicação social. É preciso lutar para que as garantias do Artigo
5o também sejam incluídas. O direito de resposta é uma delas e está
descoberto desde a derrubada da Lei de Imprensa pelo Supremo Tribunal
Federal. Se a Constituição proíbe os monopólios, como os grandes grupos de mídia constituem seu poder? Este
é um dos temas mais graves: a concentração da propriedade, que passa
pela questão da propriedade cruzada. Ela se forma quando um mesmo grupo
num mesmo mercado é proprietário de jornal, detém concessões de rádio AM
e FM e de televisão e, em seguida, passa a ter uma operadora de TV por
assinatura e um portal de internet. Tanto os grupos nacionais como os
regionais se formaram a partir da propriedade cruzada. No Brasil, nunca
houve controle dessa prática. Uma nova regulação – a exemplo do que
existe nos Estados Unidos e na Argentina – deveria prever normas que
valessem com prazos para a desconstrução de monopólios já constituídos. O
prazo dilatado da concessão provoca uma distorção no entendimento dos
concessionários. Eles se julgam proprietários da concessão. A
proprietária é a União. A formação de redes nacionais de TV e rádio aumenta o poder dos grandes grupos? Segundo
a legislação do setor, um grupo concessionário, que no limite pode ter
cinco concessões na faixa VHF em todo o território nacional, exerce,
pelo processo de filiação, um controle de fato sobre um conjunto enorme
de emissoras. Só que a caracterização de rede não é bem definida pela
legislação. Apesar do decreto 236 de 1967 apresentar uma provisão
específica sobre o tema, a interpretação do órgão controlador, o
Ministério das Comunicações, nunca considerou a filiação exercida pelos
grandes grupos de mídia como sendo formação de rede, tanto na área de
rádio quanto na de TV. Isso é um absurdo. No Brasil, a ausência de
controle tem levado a formas de produção inéditas no mundo inteiro.
Vamos pegar o exemplo de uma novela. Um grupo poderoso, mantém sob
contrato os autores, os atores e os técnicos. Os
artistas que produzem as trilhas sonoras têm suas músicas nas novelas
divulgadas pelo selo musical e pelos jornais e revistas do próprio
grupo. É uma integração tanto vertical quanto horizontal completa. E
isso sufoca a possibilidade de manifestação de outras vozes. Como é a relação dos grupos de mídia com o poder político e econômico? Há
um modelo tradicional de barganha política, consolidado na ditadura
militar. Os coronéis eletrônicos exercem uma influência na formação da
opinião pública de duas formas. A primeira é direta, porque controlam o
acesso ao debate público. A segunda é indireta por impedirem eventuais
concorrentes em uma disputa eleitoral de terem acesso a esse debate. Há
um desvirtuamento do processo democrático, que favorece a esses grupos
políticos em vez de facilitar a universalização da liberdade de
expressão. Um dos pontos críticos na legislação brasileira, que favorece
essa apropriação, é o artigo 54 da Constituição, que trata da presença
de eleitos para cargos públicos em concessões de rádio e TV. Como o
Congresso Nacional ratifica as concessões definidas pelo Executivo,
existe a situação absurda de concessionários interferirem diretamente no
processo de aprovação das licenças. Uma mesma pessoa é poder concedente
e concessionário. Isso não pode existir. Como o sistema político de rádio e TV opera nesse universo? A
Constituição instituiu o princípio da complementaridade entre os
sistemas público, privado e estatal. Desde a década de 1930, quando o
Estado priorizou a exploração pela iniciativa privada, as concessões têm
sido dadas especialmente a grupos privados. Na Carta, há a intenção de
se buscar um equilíbrio entre os setores. Até há poucos anos não existia
a figura de uma empresa pública, o que acontece com a Empresa
Brasileira de Comunicação (EBC). O fortalecimento do sistema público
busca cumprir um preceito constitucional. Só que ele nunca foi
regulamentado por completo. A EBC, com todos os problemas e os
emperramentos, tem avançado. É um modelo em construção.
Núcleo
Piratininga
de Comunicação
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