Entrevistas
Houve extermínio sistemático de aldeias indígenas na ditadura
Perseguido pela ditadura, José Humberto Costa do
Nascimento, o Tiuré Potiguara, abandonou seu trabalho na Funai, viveu
escondido na floresta amazônica e, após conseguir deixar o Brasil, foi
reconhecido como refugiado pelo governo do Canadá. Agora, de volta ao
país, ele aguarda a Comissão de Anistia julgar seu pedido de
reconhecimento como vítima do regime e quer a ajudar a Comissão Nacional
da Verdade a resgatar a história do que classifica como “genocídio
indígena praticado pela ditadura”.
Por Najla Passos - Carta Maior - 5.8.12
Brasília - Em entrevista exclusiva à
Carta Maior, Tiuré descreve o que testemunhou das atrocidades cometidas
pela ditadura contra os índios, critica a participação dos irmãos Vilas
Boas no processo, cobra autonomia para as nações indígenas e reivindica
que o país dê o passo histórico necessário para o reconhecimento dos
povos originários que, segundo ele, embora não conste nos registros
oficiais, são tão vítimas dos militares quando estudantes, operários,
militantes e camponeses.
“Pode parecer irônico falar isso, mas a
repressão, as torturas, as atrocidades cometidas no meio urbano parecem
maior, parecem que doeram mais do que as que foram cometidas contra os
índios. Hoje se fala em 400 desparecidos nas cidades, mas nós podemos
falar em cinco mil desaparecidos indígenas, porque houve extermínio
sistemático de aldeias. Era uma política de estado”, afirma.
Qual a sua etnia, a sua região de origem? Eu
sou da etnia potiguara, do litoral da Paraíba. Antes, nós ocupávamos um
território que ia da Paraíba ao Maranhão. Hoje em dia, estamos
reduzidos somente ao norte do estado, na costa.
E como foi seu envolvimento com a ditadura militar? Na
década de 1970, eu era funcionário da Funai e, lá dentro, eu pude ver a
política oficial da ditadura com relação aos índios. Impossibilitado de
conviver com aquilo, abandonei o órgão e, convidado pelo líder de uma
aldeia parkatejê, fui embora para a Amazônia, ajudá-los a se organizar
para combater os militares. A aldeia ficava no sul do Pará, numa região
já marcada pelo combate à Guerrilha do Araguaia. Era uma região de forte
presença dos militares.
E a ditadura tinha, de fato, essa
política de dizimar aldeias, cometer abusos e violações de direitos
humanos contra os indígenas? Isso hoje tá comprovado.
Havia um coronel chamado Amauri, chefe da Funai em Belém, que usava de
todos os métodos para exploração, por exemplo, do ouro e da castanha do
Pará, obrigando os índios a trabalharem em sistema de escravidão. Ele
usava a repressão, a violência, atirava... o grupo parkatejê já era
considerado exterminado. De 1964 até 1975, a etnia perdeu mais de mil
pessoas. Um processo de dizimação mesmo, porque já estava em andamento a
tática da ditadura de ocupação da Amazônia, com os grandes projetos,
como a transamazônica. E todo esse projeto eu vi dentro da Funai, quando
ainda trabalhava lá. E era um projeto já ditado pelos americanos. Eu
tive acesso a diversos documentos. Eu não sabia ler em inglês, mas
compreendida os relatórios do adido militar americano no Brasil. Então,
já existia um entendimento para desocupação desta área para exploração
dos grandes projetos, como Carajás, Tucuruí, as grandes linhas de
transmissões, a ferrovia, Serra Pelada... e os índios atrapalhavam,
porque estavam em cima dessa região.
E você participou ativamente da resistência indígena? Sim,
e em consequência disso, tive que ficar dois anos escondido na mata,
porque o Exercito estava atrás de mim, a Polícia Federal tinha ordem
para me prender. Como eu não pertencia à aldeia, eles achavam que era eu
que estava acirrando os índios. Fui considerado subversivo, agitador,
não podia sair. Eles iam até de helicóptero atrás de mim. A perseguição
fui muito grande, não só para mim, mas para outras lideranças também. E
houve mortes, sequestros, torturas que, por ocorrerem na floresta, por
não se darem no ambiente urbano, era muito mais impune, muito mais
abafada. Tanto é que até hoje se procuram os guerrilheiros do Araguaia.
Na
floresta, os militares usaram de todas as atrocidades possíveis, porque
acharam que iam ficar totalmente cobertos, que não haveria testemunhas e
que esta história nunca viria à tona, como está acontecendo hoje. E
obrigavam os índios, por exemplo, a ajudá-los a eliminar os
guerrilheiros. Colocavam os índios na frente, como bate-paus, para
identificar os acampamentos. Como foi o caso dos suruís.
E esses índios ainda estão vivos, podem ajudar a recontar a história, a localizar ossadas? Eu
mesmo passei por um cemitério de guerrilheiros quando estava na
companhia dos suruís. Nós estávamos fazendo um levantamento da área
suruí para saber se havia possibilidade de extrair castanha. Já havíamos
feito isso com os parkatejês, que são vizinhos, e eles também queriam
uma fonte de renda própria, para não ter mais que depender da Funai. E
eu fui designado para ir ajudá-los. A gente andava muito pela mata e, em
uma dessas caminhadas, o grupo que estava comigo falou: “Tiuré, aqui
estão enterrados os camará”. Camará são os brancos que estavam na área,
os guerrilheiros do Araguaia. Devem ter alguns desses índios vivos até
hoje. Eles eram mais velhos do que eu. E se eu estou com 63 anos, então
devem ter 70 ou 80 anos. E no lugar dava pra ver realmente que não tinha
mata, que existiam algumas covas rasas, bem na beira de um rio. É claro
que, depois, os índios viram também militares voltarem lá para as tais
“operações limpeza”, a retirada dos ossos. Mas os militares não eram
assim tão minuciosos. Ainda podem haver alguns vestígios da presença de
guerrilheiros por lá. Neste cemitério específico, eu soube que haviam
sido enterrados três guerrilheiros.
Como os suruís lidavam com a violência praticada pelos militares? Isso
acabava com eles. Os suruís tiveram muitas índias estupradas. Se você
for hoje na aldeia, ainda há filhos de militares do Exército, de
soldados e mesmo dos de patentes altas. Os militares fizeram campos de
aviação na área. Os índios não podiam sair da aldeia. Toda a liberdade
que eles tinham foi reduzida. E aqueles que não participavam das ações
militares eram reprimidos e até mortos. Uns tinham que fugir dali.
Então, os suruís foram vítimas, foram amordaçados dentro de seu próprio
território, e obrigados a caçar os guerrilheiros, com quem eles já
haviam estabelecido contato e relação de amizade. Porque, entre os
guerrilheiros tinham dentistas, médicos que mantinham relações amistosas
com eles. Iam na aldeia, trocavam milho, enfim, tinham um bom
relacionamento antes da repressão chegar na floresta. Eles conheciam
mesmo os guerrilheiros, e tinham conhecimento da região como a palma da
mão. E, numa das ações, eles localizaram um acampamento, foram na
frente, e o Exército chegou atrás, pegou os guerrilheiros totalmente
desprevenidos, sem condições de reação. Os militares executaram todos
eles e ainda obrigaram os índios a participar do ritual de corte de
cabeças. Quando eu cheguei na aldeia, uns dois anos depois, esse ritual
ainda afetava muito os suruís. Achavam que foi uma prática tão bárbara
contra outro ser humano que não conseguiam superar.
Você já pediu reparação ao estado brasileiro pelos crimes cometidos contra você? Eu
já dei entrada no pedido de anistia política. Não pelo dinheiro, mas
por acreditar que meu reconhecimento como anistiado vai abrir uma porta
para que outros índios, como os suruís, também consigam. Eu também já me
coloquei à disposição para voltar a área, recuperar a confiança dos
suruís e pedir que eles ajudem os brancos a localizar os corpos dos
camarás, para que as respectivas famílias possam fazer os devidos
rituais para os seus mortos. Para que possam vencer essa etapa da sua
história. Estou aguardando o retorno das autoridades, mas até agora
nada.
Você acha que existe algum tipo de resistência em
incluir os índios como vítimas da ditadura? Como se os índios fossem os
excluídos dos excluídos? A sociedade brasileira vem de
uma herança colonizadora que já soma 500 anos de exclusão indígena. Até
hoje nós não temos nossa história contada por nós mesmos. Há sempre uma
história oficial que se sobrepõe. Então, esse reencontro da sociedade
branca com a sociedade indígena, a tal reconciliação de que tanto se
fala hoje, passa por esse reconhecimento do outro, pela aceitação dos
primeiros habitantes desta terra, da sua cultura, da sua herança
cultural para o povo brasileiro. Infelizmente, ainda não temos esse
respeito. A resistência à aceitação dos índios como vítimas da ditadura é
muito grande. Pode parecer irônico falar isso, mas a repressão, as
torturas, as atrocidades cometidas no meio urbano parecem maior, parecem
que doeram mais do que as que foram cometidas contra os índios. Hoje se
fala em 400 desparecidos nas cidades, mas nós podemos falar em cinco
mil desaparecidos indígenas, porque houve extermínio sistemático de
aldeias. Era política de estado. Então, nós estamos tentando levantar
essa documentação para comprovar isso. Tem muita coisa que foi publicada
no exterior, e também estamos buscando os documentos existentes no
Brasil. E, principalmente, os relatos de pessoas que ainda estão vivas.
Que estão velhos, mas estão vivos.
É a oportunidade do estado
brasileiro dar um passo a frente no reconhecimento do outro, do índios
brasileiro que foi afetado não só pela ditadura, mas é até hoje. É a
questão da terra, do desenvolvimento impulsionado de cima para baixo.
Seja a soja, o minério, a exploração dos recursos hídricos dos
territórios indígenas. No Canadá, eu participei do movimento indígena
canadense e é muito diferente daqui.
Você viveu no Canadá, quando? Eu
fui em 1985 porque, quando se fala em abertura política, estamos
falando de uma questão teórica, porque a ditadura continuava,
principalmente no meio do mato, no interior. Dura até hoje. O
coronelismo ainda está lá. O poder político, os currais eleitorais,
estão lá. Os assassinatos das lideranças indígenas e das lideranças
rurais, as queimas de arquivo, a impunidade, tudo isso continua. E se eu
saí do país em 1985, é porque já não existia mais nenhuma possibilidade
para mim. Se eu não saísse, eu não estaria hoje aqui contando essa
história. Foi a possibilidade de consciência, porque muitos outros
índios não tiveram condições de sair. No Canadá, pedi reconhecimento
como refugiado político. Foi um processo longo, que levou cinco anos de
investigações. O governo canadense até veio ao Brasil investigar minha
história. E eu consegui provar tudo o que dizia. Considero o meu
reconhecimento como refugiado como uma condenação do Brasil. A primeira
condenação por violações aos direitos de um índio. O assunto teve grande
repercussão na imprensa internacional.
E como é no Canadá? É
claro que o Canadá não é um paraíso para os índios, mas eles estão bem
mais avançados nessas questões de direitos humanos. Eles já participam
dos royalties, por exemplo, das companhias que exploram petróleo, que
utilizam os recursos hídricos, através de hidrelétricas. Eles participam
dos lucros das empresas e os gerem de forma mais autônoma.
Então, você discorda dessa política brasileira de tutela dos índios? Claramente.
Hoje se fala muito em autossuficiência, se fala em
autossustentabilidade, mas não se dar autonomia financeira para os
índios. O que se tem hoje são migalhas, reparações financeiras que só
resolvem o problema temporário. Essas indenizações não significam nada.
Nós queremos é participar dos lucros dessas empresas. Nós queremos ter a
nossa universidade. Eu estudei numa universidade indígena canadense
financiada com os recursos dos indígenas, com professores indígenas. Nós
queremos universidades nas nossas áreas, queremos hospitais para
atendimento 24 horas nos nossos territórios. Nós temos um problema grave
em educação e saúde que não se resolve com indenizações pontuais. Na
minha área potiguara, ainda há uma usina funcionando que foi instalada
pela ditadura. A maior reserva de titânio do Brasil tá lá na nossa área.
E uma mineradora explora. E tem uma aldeia há 4 Km dessa exploração em
que as pessoas estão morrendo à míngua. É uma situação insustentável.
Tem que haver uma mudança. Temos que discutir a participação nos lucros
dessas empresas.
Assim como os estados estão brigando pelos
royalties, nós também, os primeiros povos, queremos royalties, porque
estamos sendo explorados em nosso território. Na época da ditadura, o
Exército entrou na nossa área [Potiguara] e garantiu terras para grandes
latifundiários e grandes companhias internacionais. Nós perdemos um
terço do nosso território durante a ditadura. Eles deram até um atestado
de óbito para nosso povo, dizendo que não existiam mais potiguaras na
área. E com esta certidão negativa, conseguiram financiamento do Banco
Mundial. A Funai é responsável por tudo que aconteceu com o povo
indígena.
Na sua experiência na Funai, você deve ter convivido com os irmãos Villas Boas. Qual foi o papel deles neste contexto todo? Eu
tenho uma crítica muito grande aos Villas Boas. Eles são considerados
os humanistas, não sei nem como ainda não foram laureados pelo Nobel,
porque conseguiram uma publicidade incrível. Mas eles participaram desse
processo de aprisionamento das nações indígenas, como se quisessem
criar um zoológico. O Xingu é isso. Na época da ditadura, os interesses
de deslocar as aldeias para desenvolvimento da economia levou os
militares a usar os Villas Boas para criar aquele Parque do Xingu, que
não é nada mais do que você colocar diferentes aldeias, muitas delas que
viviam em guerra culturais seculares, todas juntas. Línguas diferentes,
culturas diferentes, tudo no mesmo território. E os Villas Boas
participaram disso e acabaram criando um cenário de propaganda do
regime.
O Xingu virou o cartão postal da política indigenista.
Aquela coisa mais supérflua, mais teatral, para os militares promoverem
festas e lotarem aviões de gente par aos verem sendo fotografados com os
índios. Para mim, os Villas Boas foram complacentes com a ditadura.
Olha, eu entrei na Funai com a visão de que a política dos militares
para os índios era aquela do Marechal Rondon: “morrer se for preciso,
mas matar nunca”. Mas, na verdade, a cartilha deles era o contrário, era
a cartilha americana: “índio bom é índio morto”. Então, temos que
desmistificar essas histórias impostas pelo regime e contar a nossa
história. É isso o que esperamos da Comissão Nacional da Verdade, da
Comissão da Anistia.
Hoje, você milita em alguma organização indígena? Não.
Eu estou ligado a minha aldeia, uma aldeia pequena. Não sou de partido
nenhum, não pertenço a nenhuma ONG. A minha intenção é criar uma
resistência indígena nacional. É com este intuito que voltei ao Brasil. O
movimento indígena, na minha época, tentava se organizar. Hoje, há
muitas lideranças cooptadas, com cargos no governo, na Funai, com
acordos desvantajosos com a iniciativa privada. Por isso, minha intenção
é ajudar na conscientização pra gente fazer um levante revolucionário,
para retomarmos nossas terras.
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