Entrevistas
Arthur William: Regularização de rádios comunitárias é questão de vontade política
Por Rodrigo Otávio - portal Carta Maior
Uma das vitórias da
Cúpula dos Povos foi a união popular contra o fechamento da rádio
Cúpula, no domingo, 17 de junho, dia em que a mobilização recebia seu
maior público no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Presente ao
episódio, o jornalista Arthur William, representante brasileiro da
Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc), foi um dos
negociadores contra a interrupção das transmissões, que por fim
explicitou quão rápido uma licença pode ser emitida.
Em
entrevista à Carta Maior, ele relembra o episódio para denunciar como as
rádios comunitárias são oficialmente discriminadas e o quanto é
necessário a mudança legal para que elas contribuam com a realidade
política, social, econômica e tecnológica da democracia brasileira nos
anos 2010. “E também é preciso fiscalizar para que a concessão sirva à
comunidade e não a interesses pessoais, econômicos e políticos”,
acrescenta.
CARTA MAIOR - Como foi o quase fechamento da rádio Cúpula dos Povos, durante a Rio+ 20?
ARTHUR WILLIAM
- A rádio reunia diversos participantes da cúpula justamente para
transmitir o que estava acontecendo para todo mundo, através da
internet. E também pelas ondas de rádio através de uma frequência de FM.
O processo de legalização de uma rádio comunitária demora muito no
Brasil, hoje está até melhorando, mas em geral demorava 10, 20 anos,
então o coletivo da rádio optou por transmitir independentemente da
licença, porque era uma baixa potência e os equipamentos eram
homologados.
E no domingo da Cúpula dos Povos (17/6) a Anatel
(Agência Nacional de Telecomunicações) chegou, sem nenhum documento
requerendo os equipamentos, para lacrar e levar os transmissores. Devido
à mobilização de todos os participantes, com um abraço a radio, a
Anatel acabou se afastando do local e chamou a polícia militar para
garantir a entrada deles na rádio. Aí passamos a argumentar, através de
uma comissão de negociação da qual eu participei, que não era
competência da polícia militar a questão de radiodifusão. E entramos em
contato com o ministério das Comunicações para conseguir uma licença
provisória.
O Ministério das Comunicações, entendendo a
importância que a rádio tinha para o evento, conseguiu junto com a EBC
(Empresa Brasil de Comunicações) uma licença experimental, temporária,
para que a rádio pudesse continuar funcionando de forma legal durante a
cúpula. E foi o que aconteceu, conseguimos uma licença experimental, que
foi uma grande vitória do movimento, mostrando que na verdade quando se
há interesse político para que uma emissora funcione, ela pode
funcionar. Então a questão da radiodifusão no Brasil, das rádios
comunitárias, pode ser muito melhor do que está, basta vontade política.
CARTA MAIOR - Como avalia a atuação da Anatel no caso?
Na
reunião de negociação nós questionamos o papel da Anatel. Ela tem
outras coisas muito mais importantes para fazer. O STF (Supremo Tribunal
Federal) proibiu que a Anatel fizesse busca de equipamento de
radiodifusão, e o entendimento da Defensoria Pública da União é de que
não existe apreensão sem busca; o transmissor não apareceu lá no
escritório da Anatel, ela foi fazer uma busca e conseguiu encontrar de
onde a rádio estava sendo transmitida. Então, segundo entendimento da
defensoria pública, essas ações da Anatel são ilegais.
E o
conselho da sociedade civil na Anatel, até o Marcelo Miranda, que é do
instituto Telecom, se colocou à disposição para travar esse debate
dentro da Anatel. A Anatel não vai na Oi, não vai na Vivo, na Tim, sendo
que essas empresas são as que mais têm reclamações do consumidor.
Agora, contra a rádio comunitária, que está cumprindo o papel essencial
que é transmitir a cultura e informações locais de forma voluntária,
porque não recebe dinheiro para isso, ela só trata com repressão, com
criminalização.
CARTA MAIOR - Qual a situação da legislação sobre as rádios comunitárias?
As
rádios comunitárias têm uma lei de 1998 (Decreto 2615, para a Lei
9742/97) que é muito ultrapassada. Ela foi uma lei feita pelos
empresários para que as rádios comunitárias não significassem uma
concorrência. Ela é uma lei do pior momento do governo Fernando Henrique
Cardoso, que foi o momento das privatizações, da entrega do patrimônio
brasileiro para a iniciativa privada estrangeira, que foi ali entre 1997
e 1998. Essa lei reflete esse momento da democracia brasileira, que era
diferente do que a gente tem hoje.
É preciso mudar essa lei. Ela
traz uma série de amarras. Ela burocratiza a questão da legalização das
rádios comunitárias, então hoje grande parte das rádios comunitárias
está na ilegalidade por conta dessa lei. E algumas rádios comunitárias
acabam sendo controladas por políticos, por grupos religiosos, porque
eles têm o controle econômico e político de uma situação que requer
contratação de advogados, de funcionários. E que uma comunidade sem
dinheiro, sem poder captar através de publicidade, ou de outras fontes
de recursos, como o Fundo Público, voltado para isso, ou o percentual de
um imposto, como é o Fistel (fundo de Fiscalização das
Telecomunicações), ou do Fust (Fundo de Universalização dos Serviços de
Telecomunicações), para financiar rádio comunitária, fica
impossibilitada e alguns grupos políticos ou religiosos acabam se
aproveitando para controlar essa concessão de rádios comunitárias. E
também é preciso fiscalizar para que a concessão sirva à comunidade e
não a interesses pessoais, econômicos e políticos.
A gente
precisa avançar, porque a rádio comunitária tem que ser vista como um
ator importante na questão da comunicação pública, que hoje está se
fortalecendo com a EBC, as rádios Nacional e MEC (Ministério da Educação
e Cultura), as rádios públicas estaduais, a TV Brasil e a rede pública
de televisão. E as rádios comunitárias fazem parte desse processo, então
elas precisam ser tratadas e reconhecidas com a importância devida, e
hoje não têm.
CARTA MAIOR - A portaria 1462, de 2011, não mudaria esse panorama?
Não.
A norma 462 na verdade regulamenta essa lei de 98. Então você
regulamentar uma lei que é ruim, você só intensifica o grau de
perseguição, o grau de burocracia, o grau de desimportância que o poder
público está tendo com as rádios comunitárias. Ela trouxe uma maior
transparência nos processos, que na verdade é uma condição que o estado
deveria dar sempre, e que até hoje não tinha, por exemplo, na disputa
por uma frequência.
Mas por outro lado os pontos piores da lei
foram aprofundados. Como a questão, que para a gente é a principal, de
que quem transmite sem legalização fica automaticamente desclassificado
de um processo de legalização. Ou seja, foi uma forma de impedir que as
pessoas exerçam seu direito à comunicação independentemente da
legislação burocrática que criminaliza os movimentos sociais, as rádios
comunitárias.
Hoje na própria lei não há uma isonomia entre as
rádios comunitárias e comerciais. Se uma rádio comercial interferir em
uma rádio comunitária, nada acontece. Agora, se uma comunitária
interferir em uma comercial, ela tem que desligar o seu transmissor. E a
rádio privada, na verdade não é nem rádio comercial, é rádio privada,
ela pode ter anúncio na sua programação, o que em grande parte é o que
viabiliza sua sustentabilidade. E a rádio comunitária é proibida de
fazer publicidade, ou seja, a rádio comunitária, no Brasil, é sinônimo
de rádio pobre, por conta da lei.
CARTA MAIOR - Há como mudá-la?
A
norma 1462 foi um retrocesso. Os movimentos sociais reclamaram, tanto a
Abraço (Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária), como a
Amarc fizeram mobilizações e agora o governo está com uma proposta de
alteração da norma. Esse processo está na Casa Civil e toca em pontos
que para o movimento são muito importantes. Um exemplo é a autorização
de publicidade comercial, desde que essa publicidade seja do comércio
local e desde que não sejam veiculados os preços e condições de
pagamento. E a rádio comunitária é muito importante para incentivar o
comércio local, porque o pequeno comerciante não consegue anunciar na
grande rádio (NR: No Rio de Janeiro, por exemplo, média de R$ 700 por 30
segundos de veiculação). Então quem tem acesso aos meios de comunicação
vai comprar nas grandes lojas, e o comércio local fica enfraquecido. A
rádio comunitária é um espaço para fazer essa economia local girar.
Outra
questão é o alcance do transmissor. A norma de 1998 colocava o alcance
do transmissor em um quilômetro. Ou seja, além de 25 watt ser uma
transmissão de muito baixa potência, a questão de 1 Km de raio é até
aonde a rádio pode pegar. E isso desconsidera a formatação territorial
da comunidade. Pode haver uma rádio comunitária que atende a um
município que tem muito mais do que 1 km de raio. Então a proposta de
modificação da norma é que o alcance do transmissor seja equivalente ao
território da comunidade atingida. Mas de qualquer forma essas pequenas
melhorias não atendem ao que a gente precisa, que é mudar a lei.
CARTA MAIOR - Um novo marco regulatório?
O
marco regulatório brasileiro das telecomunicações está fazendo 50 anos.
E não dá para continuar, ele é muito antigo, não contempla rádios
comunitárias, sites e comunicação digital. Ele precisa ser atualizado do
ponto de vista tecnológico e do ponto de vista da comunicação que hoje
temos, porque não dá para 99% das rádios e 99% das televisões serem
privadas comerciais. É preciso ter maior democracia nas comunicações e
hoje isto não existe. O marco regulatório precisa tratar disso.
O
marco regulatório é a principal pauta do movimento de comunicação como
um todo hoje. O FNDC (Fórum Nacional pela Democratização da
Comunicação), do qual a Amarc faz parte, luta pela aprovação do marco
regulatório. A partir das contribuições da Conferência Nacional de
Comunicação (Confecom) o governo fez um esboço do que seria esse marco e
está prometendo colocar em consulta pública o mais breve possível.
Então o movimento social pressiona o governo para que isso aconteça e
que esse processo também seja o mais democrático possível, com
audiências públicas discutindo os pontos do marco e que ele seja
aprovado o mais urgentemente.
É importante também que o debate
sobre comunicação seja feito junto. Seja feito com uma certa coerência
entre as leis. A Amarc verifica que o governo tem aprovado leis
recentemente, a lei da EBC em 2008, a norma de rádio comunitária em
2011, a lei de TV por assinatura, o marco civil da internet, que também
está quase sendo aprovado, ou a própria lei dos direitos autorais. Ou
seja, é uma série de questões da comunicação que estão sendo aprovadas
sem nenhuma ligação entre elas. É preciso que exista uma consolidação,
uma coerência entre as normas. Não dá para ter um marco civil da
internet que é bem avançado e uma norma de rádios comunitárias que é um
retrocesso feitos pelo mesmo governo. O governo tem que manter uma
coerência e tratar a questão da comunicação como algo único, essencial
para a consolidação da democracia no Brasil.
CARTA MAIOR - Fazendo um comparativo, qual a situação das rádios comunitárias em outros países?
As
rádios comunitárias, principalmente na América Latina, têm uma
realidade bem parecida com a do Brasil. Só que em alguns países têm
avançado, como por exemplo Equador, Uruguai e Argentina. Na Argentina,
com a lei dos meios, todas as comunicações foram divididas entre
estatais, ou seja, controladas pelo estado, independentemente se têm
finalidades públicas, culturais, educativas; as emissoras privadas com
fins lucrativos, que são o que a gente chama hoje de emissoras
comerciais, e as emissoras privadas sem fins lucrativos. E nesse último
segmento estão contempladas as rádios comunitárias, quilombolas e
livres.
É um enquadramento bem mais amplo do que a gente tem no
Brasil, que a constituição diz público, estatal e privado. Até a própria
discussão entre o que é público e privado acaba complicando o
enquadramento das rádios comunitárias. Por exemplo, rádios comunitárias
são privadas, mas são públicas, elas têm caráter público. Já as
emissoras, hoje as rádios e televisões que a gente chama de públicas,
elas são controladas pelo estado, estatais, mas têm finalidade pública
também. Então a definição do que é público é muito importante para isso.
A
gente luta, por exemplo, no marco regulatório, para que a definição do
que é público, estatal ou privado esteja contemplada nisso. Até para que
as rádios comunitárias que a gente entende que estão nesse campo
público da comunicação tenham a relevância merecida na lei.
CARTA MAIOR - E em outros lugares?
Você
tem uma realidade, por exemplo, de países que são muito pobres, onde a
comunicação privada não existe, como no Haiti e em alguns países da
África. Existe a comunicação pública, que também não tem muito
investimento. E a comunicação comunitária é muito forte. Por quê? Porque
ela recebe financiamento estrangeiro, de entidades, de outras
organizações não governamentais. O Haiti é um exemplo disso, onde as
rádios comunitárias têm mais audiência, mais importância, chegam ao país
todo com um transmissor com alcance para o país inteiro. E cumprem um
papel importante na conscientização da população.
Na própria
questão dos desastres naturais, como é o caso do Haiti, elas cumpriram
papel superimportante para conscientizar a população para encontrar
desaparecidos durante o terremoto daquele país. O que aconteceu aqui
também em Teresópolis e Nova Friburgo (RJ) com a Rádio Comunidade de
Friburgo, onde foi a rádio comunitária que conseguiu encontrar os
desaparecidos. Porque a rádio comercial não tem relações com a
comunidade, não é feita pela própria comunidade, é feita por
profissionais e tem a finalidade de lucro; e a rádio pública está muito
distante da cidade, ela está transmitindo do Rio de Janeiro, então não
tem laços tão firmes como uma rádio comunitária.
Isso mostra a
importância da rádio comunitária em países que não têm estrutura
nenhuma. A rádio comunitária cumpre esse papel essencial, como no caso
do Haiti e em países da África também.
CARTA MAIOR - Quais os objetivos da Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc)?
O
objetivo da Amarc mundialmente é a luta pela garantia do direito à
comunicação como direito humano fundamental. O ser humano é comunicativo
por natureza. Se expressa pelo olhar, pela fala, pelos gestos, mas
também por um jornal, um site, um blog, uma rádio e uma televisão. É
preciso que o poder público garanta isso através de políticas públicas.
A
Amarc atua com foco nas rádios comunitárias em parceria com os
movimentos locais de cada país. Ela se junta aos movimentos comunitários
locais para lutar para que políticas públicas sejam colocadas em
prática, ou sejam criadas para garantir esse direito à comunicação.
CARTA MAIOR - Voltando ao Brasil, é possível fazer uma estimativa de quantas rádios comunitárias existem?
Hoje
no Brasil a gente tem mais de quatro mil rádios comunitárias
legalizadas. Mas a nossa previsão é que existam, entre legalizadas e não
legalizadas, mais de 10 mil rádios operando.
CARTA MAIOR - Finalmente, para o cidadão que leu essa entrevista e gostou do tema. Como ele acessa as rádios comunitárias?
As
rádios comunitárias têm uma frequência apenas por município. Se você
está em determinado lugar, você só pode ouvir uma rádio comunitária,
porque a lei impõe isso, e elas têm uma separação de quatro quilômetros.
Então se você está em casa, ou no trabalho, você só vai conseguir ouvir
uma rádio comunitária.
E em cada município ela tem uma
frequência diferente. Aí tem que entrar no site da Anatel para verificar
qual a frequência específica do seu município. Ou pode entrar no site
da Amarc, www.amarcbrasil.org, ou no site da Abraço, www.abraconacional.org,
para verificar qual a rádio comunitária mais próxima. E também
participar, porque a rádio comunitária é aberta a participação de todos.
Não apenas ouvir, mas também fazer locução, ajudar no que puder dentro
da rádio comunitária.
Núcleo
Piratininga
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