Entrevistas
Entrevista com o jornalista Caco Barcelos
Matéria publicada na Edição 14 - Março de 2009 - Interdisciplinaridade do Boletim Onda Jovem
Por Aydano André Motta
O gaúcho Caco Barcellos
é um exemplo de vitória pelo esforço. Nascido numa comunidade pobre de
Porto Alegre, 59 anos atrás, ele transformou-se num dos mais respeitados
jornalistas brasileiros, com uma trajetória marcada pela ética e
qualidade no trabalho. Repórter investigativo, forjado na ditadura civil-militar, foi correspondente internacional, e autor de livros como Rota
66, a história da polícia que mata, um impressionante levantamento
sobre a tropa de combate da polícia de São Paulo que o obrigou a sair do
país, sob ameaças de morte. Caco recebeu mais
de 20 prêmios jornalísticos, entre eles uma distinção especial das
Nações Unidas, como um dos cinco jornalistas que mais se destacaram, nos
últimos 30 anos, na defesa dos direitos humanos no Brasil. Hoje, toda
essa experiência orienta jovens profissionais, no programa jornalístico
“Profissão: repórter”, da TV Globo. Caco conversou com a revista, sobre suas experiências formadoras.
Onda Jovem: Em qual escola você cursou o Ensino Médio? Quais são suas principais recordações desse período? Caco Barcellos:
Estudei em escola pública a minha vida inteira e sou eternamente grato a
Leonel Brizola, porque me beneficiei de sua aposta na educação. Nasci
numa família simples de Porto Alegre, e só pude ir para o colégio aos 8
anos de idade. Aprendi a ler sozinho, por meio de placas, com a ajuda da
minha irmã. A escola, feita pelo Brizola, era de madeira, mas já no
conceito de período integral. Ganhei, assim, noções de cidadania,
alimentação de qualidade e material – lá recebi meu primeiro caderno. O
ensino médio foi cursado na Escola Júlio de Castilhos, o Julinho, no
centro da cidade. Tive professores interessantíssimos, que infelizmente
terminaram, muitos deles, cassados pela ditadura militar. Os últimos
dois anos foram péssimos, com professores ligados à ditadura,
informantes do regime, etc. Você teve algum professor, no Ensino Médio, que influenciou sua escolha profissional? Como se deu essa influência?
A
grande influência foi de Ruy Carlos Ostermann, comentarista esportivo
famoso no mundo inteiro e, na minha época de colégio, professor de
filosofia brilhante. Fiz cursinho pré-vestibular, e ele era um
professor-artista, com narrativa muito talentosa, eloquente. Ficava
fascinado, nas aulas que ele dava, com o raciocínio e a oratória dele. É
a referência mais forte que tenho. Por coincidência, no primeiro jornal
em que trabalhei, a “Folha da Manhã”, ele era diretor de redação. Foi
muito marcante, um ídolo que, para minha sorte, pude conhecer no dia a
dia do trabalho, à frente de um grupo interessante de jornalistas,
profissionais jovens e talentosos, que passaram por São Paulo e Rio.
Eles formaram uma equipe que tive a sorte de integrar. Que tipo de jovem você era no Ensino Médio: rebelde, estudioso, alheio...? Como você se relacionava com o restante da escola?
Tinha
sido mais estudioso antes, era muito cuidadoso com lições de casa,
adorava estudar. No antigo ginásio e no que se chama hoje Ensino Médio –
à minha época, científico –, eu trabalhava e estudava. Minha lembrança é
de um curso cansativo, feito à noite. Tinha virado rebelde, meus amigos
mais maduros haviam entrado na luta política, e fiquei com aquela
revolta comum aos jovens mais politizados, que quase viram as costas
para o sistema todo. Perdi o encanto, porque, por causa da repressão, a
escola virou referência de medo e indignação. Cheguei a ser preso na
escola, e passei uma noite na cadeia, após uma manifestação estudantil
em frente ao Julinho. Na verdade, o processo decisivo veio não de um
professor, mas de um colega, que sentava ao meu lado na sala. À época,
eu gostava de escrever crônicas, sem saber que aqueles textos tinham
esse nome. Saía com meu cachorro vira-latas pela rua e depois, botava no
papel meus pensamentos e impressões. Não tinha coragem de mostrar para
ninguém, mas um dia, esse colega leu. “Cara, como você esconde esse
negócio aqui? Você tem que ser escritor”. Foi a primeira referência que
tive de outra profissão. E olha que no dia anterior tinha tirado 2,5 em
português. Fiquei muito feliz e continuei escrevendo. Talvez tenha sido a
mais importante influência para, um dia, eu virar jornalista. Quais
foram os primeiros sinais de sua vocação? Eles apareceram ainda no
colégio? Você chegou a trabalhar em jornais estudantis?
Não.
Só na faculdade de Matemática, a primeira que fiz. Um dia, o centro
acadêmico quis fazer um jornal, convocou voluntários e fui o único da
Matemática que apareceu para escrever. Mais tarde, terminei por assumir o
jornal e chamei um grupo de fora da faculdade, hippies, para me ajudar.
Foi outra influência forte, porque virei hippie junto com eles.
A escola atendia suas necessidades como jovem?
Atendeu
muito bem, afinal, havia movimento estudantil forte, do qual foi
importante ter participado. Não atendeu, entretanto, em relação à
graduação, ao ensino propriamente dito. Mas tive oportunidade de
conhecer jovens de todas as classes, numa convivência transformadora,
que permitiu a descoberta da realidade longe do meu bairro. Foi muito
rico. E fora da escola? Que adultos influenciaram suas decisões em relação à profissão?
Sem
saber, tive influência da igreja progressista, que me deu ferramentas
fundamentais para minha sobrevivência, me ensinando uma meia dúzia de
ofícios, como datilografia, primeiros socorros, encadernação de livros. E
me apresentou livros essenciais, de filosofia, que me despertaram o
prazer da leitura. Autores como Nietzsche, Schopenhauer, Rosa
Luxemburgo, e temas como o materialismo dialético. Enfim, as ferramentas
básicas para interpretar a realidade. Lembro também do que um padre me
disse, em relação ao medo, quando eu era muito perseguido. “Por que
vocês correm?” perguntou ele, uma vez, em que fugíamos da polícia. “Não
faz sentido, eles são empregados de vocês. Como podem ter medo? Até
admito que, se eu for sozinho, vou ser maltratado. Mas experimentem
juntar o bairro todo para protestar”. Um dia, nos mobilizamos em grupo e
os policiais ficaram com medo. Daí, aprendi a usar a ferramenta da
informação para vencer o medo. Naquela época, não tinha a noção de que
delegacia de polícia era algo público. Até, hoje, sempre tento me
informar o mais que posso para vencer os medos. O que, na sua opinião, falta nas escolas em relação às necessidades dos jovens de hoje?
Não
sou especialista, mas desejo e sonho com escolas mais atentas à
realidade da vida do estudante. Uma escola mais aberta à integração com a
família, que participe mais da vida do bairro. O Rio, por exemplo, tem
jovens sendo exterminados de maneira muito cruel. O Brasil é o país onde
mais se mata no mundo e a escola não parece participar desse processo
de socorro a jovens em situação de risco. Precisa mais presença no
cotidiano, sem ficar presa somente à questão da formação cultural, que,
claro, também é importante. O jovem acaba não se identificando, acha que
estudar é só uma obrigação. Tenho filho adolescente, e outro dia fiquei
impressionado com um professor dele, chamado Baroni. Na aula, quando
jogavam bolas de papel pela janela, ele ia buscar e devolvia, para
continuarem jogando. Usava isso pedagogicamente. Quando foi demitido,
houve paralisação e manifestação dos alunos em protesto. Era uma
convivência produtiva com a rebeldia, e a escola não entendeu o
processo. Preferiu investir no professor que não conquista a adesão do
aluno na aventura do saber. Uma pena. Quando
você fez o Ensino Médio havia uma preocupação com a
interdisciplinaridade, com a conexão dos conteúdos entre si e com o
mundo? Ou vigorava aquela dúvida que acompanha os jovens: “por que estou
aprendendo isso”?
Eu
adorava matemática, mas me perguntava para que aquelas equações que
tomavam a lousa inteira. Foi o que me levou a abandonar a Engenharia,
que tentei por ser bom em matemática. Lembro em especial de um professor
que, toda aula, escrevia em silêncio uma imensa equação. Se você
falasse qualquer coisa em sala, ele ficava parado, congelado, até o
silêncio imperar novamente. Um dia, ele me chamou lá na frente; peguei o
giz e comecei a escrever como ele, em silêncio, e, quando alguém riu,
parei, exatamente como ele fazia. Fui expulso de sala, e decidi que não
via sentido naquilo. Fazer essas conexões com a vida lá fora é uma função da escola, na sua opinião?
Acho
que sim. A escola precisa se voltar para a formação profissional. É
fundamental. O processo dos adolescentes é sofrido, uma fase da vida em
que você está perdido e tem de tomar decisões importantes. Começo,
aliás, a questionar a importância da faculdade. Não vejo tanto sentido,
especialmente por causa das faculdades que vendem diploma, sem
preocupações acadêmicas, apenas pelo status da graduação. E a sociedade
impõe a necessidade radical de ter o diploma. Alguns países da Europa já
valorizam mais os cursos técnicos. É algo que precisamos debater. Hoje,
você é um professor também, que ajuda a formar profissionais, no
“Profissão: repórter”. Como você trabalha essa influência? Em que medida
ela deve acontecer? Não
acho que sei nada. Tenho, sim, experiência que tem importância. Mas
cada reportagem envolve uma história, não há fórmula para fazê-la. Uma
frase pode mudar tudo, tornar aquilo completamente novo. Quem sabe, no
fundo, é quem está ali, fazendo a reportagem. Procuro, assim, oferecer o
exemplo, não o discurso. Eu me envolvo em todas as reportagens do
programa, e deixo claro que ganha mais espaço quem estiver mais
empenhado em produzir uma matéria de qualidade. Se forem eles, e não eu,
eles ganham. Tenho consciência de que minha experiência é importante,
mas se eu parar no tempo, vou perder. O jornalismo é um ofício de
exercício permanente. A postura de empenho constante ajuda a democracia a
ficar mais bem posta e o espaço de líder não me habilita a garantir a
espaço por si só. O que vai decidir é o que eu trouxer da rua. Assim, o
sistema torna-se mais justo. A autoridade é um mérito que nasce do
cotidiano, e ajuda a nos manter vivos. Tenho uma certeza: se eu parar,
me estagnar, eu perco.
Núcleo
Piratininga
de Comunicação
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