Entrevistas
Na contramão da história oficial, cineasta Sylvio Back revisita a revolta do Contestado
Publicado em 25.4.12 - por Vitor Nuzzi / Rede Brasil Atual
Quarenta anos depois, diretor de "A Guerra
dos Pelados" voltou ao local do conflito na divisa do Paraná com Santa
Catarina para filmar documentário. E lamenta que episódio esteja se tornando
"invisível"
A Guerra dos Pelados é um filme-referência na
cinematografia brasileira. Lançado em 1971, trata de um sangrento
conflito por posse de terras na divisa entre Paraná e Santa Catarina.
Durou quatro anos, de 1913 a 1916, mas mesmo assim é um episódio pouco
conhecido da história do país.
Quarenta anos depois, o diretor Sylvio Back voltou à região para uma
nova filmagem e dessa viagem resultou Contestado - Restos Mortais. Uma
espécie de antidocumentário, define seu autor, que além de estudiosos e
gente da terra recorreu a médius para recontar o episódio. O filme deve
ser lançado no segundo semestre. Back espera que o Contestado volte a
ser visível.
Arquivo Núcleo de combatentes
no conflito do Contestado, sangrenta luta por posse de terras no sul do
país
O
sr. diz que, apesar de inúmeros estudos, a Guerra do Contestado vem
sumindo. Por quê? O interesse histórico é evidente. A quem
interessa apagá-lo? A
Guerra do Contestado (1912-1916), às vésperas do seu centenário em
outubro próximo, continua uma espécie de "filho enjeitado"
da historiografia brasileira. Ainda que se constitua no maior e mais
sangrento conflito pela posse e pela usurpação da terra no século
20, a impressão que sempre retorna, seja como catarinense e
brasileiro, seja como cineasta que frequenta com sua obra a nossa
míope história recente e remota, é que o Contestado vem
desmilinguindo, está se tornando cada vez mais invisível. E essa
invisibilidade não é apenas nacional, ela é regional, cobre feito
uma enferrujada mortalha praticamente todo o Centro-Oeste de Santa
Catarina.
Ali, durante meses, pesquisei, entrevistei herdeiros da
memória bélica, recolhi preciosa e inédita iconografia, além de
revisitar os principais sítios do teatro de operações, um
território do tamanho do Estado de Alagoas. Inúmeras vezes fui
surpreendido pelo total desconhecimento da população sobre sua
própria biografia e o passado pisado pelos seus maiores.
Triste
constatação, sim. Há uma confluência de opiniões de
especialistas que creditam todo esse borramento histórico e
mediático do Contestado a um separatismo que começou a tomar corpo
entre os líderes dos fanáticos, uns inspirados no ideário
autonomista da República Piratini (1835-1845), outros, na Revolução
Federalista (1893-1895), a ponto de "inventarem",
literalmente, porque não saiu das conjeturas e de um polêmico
édito fundador, uma Monarquia Sul-brasileira, com imperador
coroado e até uma Constituição que previa liberdade de imprensa.
Claro, a petulância provocou a ira a repressão implacável da
neo-República, ainda traumatizada com o banho de sangue ocorrido em
Canudos (1896-1897). Assim, a palavra de ordem do general Setembrino
de Carvalho, comandante em chefe que liquidou com o Contestado,
repicava a evocação fúnebre do Senado romano (150 a.C.): Delenda
est Carthago! (Carthago deve ser destruída), referindo-se à
potência fenícia do norte da África (atual Tunísia) disputando a
hegemonia do Mediterrâneo com Roma.
Não nos esqueçamos que coube à
matreirice geopolítica-religiosa e à expertise armada de Portugal
manter este país-continente unido desde 1500, liquidando, de norte
ao sul, toda e qualquer tentativa separatista. O Contestado era uma
ameaça, uma "nação cabocla independente", e isso, a meu
ver, ainda que impensável hoje em dia, regurgita nos porões do
inconsciente coletivo nacional. Não nos esqueçamos do movimento "o
Sul é o meu país", que volta e meia ressuscita na ânsia de
emplacar sua "verdade" racista e segregacionista!
Voltar
ao tema 40 anos depois foi como ver "um cadáver perdido no
mar". É possível comparar a perturbação causada nesse
contato e no primeiro, em 1970? O sr. diz que o filme de 1971 e o que
será lançado no segundo semestre parecem ter sido feitos por
cineastas opostos. Talvez eu seja, com este "O
Contestado - Restos Mortais", o primeiro cineasta brasileiro a
fazer um novo filme sobre o mesmo tema, com pegada paradocumental,
que intitulo de antidoc, e não ficção pura como "A Guerra dos
Pelados", para desfazer equívocos pessoais de um ideário
datado e, na outra ponta do pensamento, alumiando novos meandros
históricos sobre e em torno da Guerra do Contestado.
Tanto que
acabei me confrontando com as próprias convicções e certezas de
outrora, como consegui formatar um discurso cinemático único e
inimitável, o transe mediúnico como fio narrador do filme. E,
onde através dele, busco o âmago de uma saga esquecida que o Brasil
precisa homenagear com as devidas exéquias morais.
Isso só foi
possível sobrevoando e dando vôos rasantes não apenas,
literalmente de helicóptero, aos principais redutos da resistência
cabocla e da repressão militar (Taquaruçu, Caraguatá, Calmon, São
João dos Pobres (hoje, Mattos Costa), Perdizinhas, Santa Maria
etc.), mas tateando no imaginário que resta vivo e pulsante entre os
sobreviventes da tragédia, para atualizar e identificar sombras
diluídas e provectos balbúcios, reações esquivas, lembranças
cheias de odio e vingança, um imemorial, baço e evanescente. Mesmo
assim, quase sempre inapreensível aos olhos e ouvidos perscrustantes
do próprio cinema.
Quando retomei o Contestado, com o
propósito de me debruçar documental e míticamente sobre ele,
assoberbado pela releitura de uma centena de livros, tudo veio à
tona como um cadáver perdido no mar. Algo estranho e recorrente que
já vinha me acompanhando há décadas. De qualquer modo, o que
permanece é de uma rara nitidez, cuja comprovação se imbrica em
forma de fotogramas ora documentais, ora ficcionais: "A Guerra
dos Pelados" (escrito e rodado entre 1969/1970, estreando no ano
seguinte) e este antidoc, "O Contestado - Restos Mortais",
ambos mudamos a ponto de não nos reconhecermos mais!
Essa é a
descoberta mais fascinante de uma narrativa moral que mexe com a
história sem procurar atropelá-la, nem lhe impor viseiras
político-ideológicas e, muito menos, fundar uma verdade unívoca e
irretorquível sobre essa verdadeira guerra civil nos sertões
catarinenses.
De maneira geral, as pessoas parecem
desconhecer detalhes da história do Brasil. Isso
acontece pela forma como a História nos foi ensinada? Num
país refém de uma reiterada "história oficial", todos
cabemos nela, especialmente, quando nos colocamos na contramão de
suas "verdades" pétreas. Como é o caso explícito deste
docudrama (misto de documentário e ficção), "O Contestado - Restos
Mortais". Há de tudo e mais alguma coisa para ser exorcizada no
Contestado, já que, desde a educação de base à nossa academia e
seus acólitos fora e dentro dela, via de regra, serva voluntária de
vezos ideológicos, dedica-se a "formatar" uma outra
verdade, que fica tão chamuscada de mitos, tabus e utopias quanto a
história "chapa branca" que se quer desnudar.
Nosso
pretérito, aquele ensinado à rapaziada nas escolas e universidades,
ainda hoje, e isso soa inacreditável, é mais um discurso vetusto,
digamos, de corte "estatal", papagaiado na sala de aula do
que restaurada em toda a sua dimensão e extensão éticas e
ontológicas. Quando não, vemos todos os fatos e personagens
controvertidos transformados em sagas, heróis e/ou santos, uma
alegre e impune, porém, indigesta, miscelânea mítico-hagiográfica,
onde se mantém estrategicamente ao largo eventos tão fundamentais
para explicar os contornos anímicos do Brasil, como a Guerra do
Contestado, sem coincidência alguma!
Ainda recentemente, nos debates
após a exibição de "O Contestado - Restos Mortais" no
Festival de Gramado, grande parte do público, jornalistas,
críticos, se declarou surpresa com a efervescência e a brutalidade
institucional, política, sociológica e bélica dos acontecimentos
que se sucedem na tela, reconhecendo que jamais tinham ouvido falar
no Contestado! O susto maior, inclusive, acabou reservado para a
amperagem terrorista que presidiu os embates armados entre rebeldes,
tropas do Exército, milícias de jagunços do coronelato da região
e a polícias militares de Santa Catarina e do Paraná, algo nunca
visto no Brasil nem antes nem depois.
O filme parece
propor novas luzes sobre o conflito. De que forma isso se realiza na
tela? Ainda
na fase das pesquisas, falando com o historiador Euclides Philippi,
em Curitibanos (SC, um dos epicentros históricos do Contestado),
expus que pretendia investir em médiuns para "ouvir" a
história oculta, subterrânea, não-presencial de caboclos e
soldados envolvidos na Guerra do Contestado, ele próprio espírita,
lascou à queima roupa e em tom solene: "O senhor é espírita?"
Mesmo pego de surpresa, consegui responder na lata: "Sou
cineasta!"
Com seus 90 anos, abriu um lindo sorriso que, aliás,
pode ser visto no filme em várias cenas, contando suas incursões à
galáxia da mediunidade imperante entre as "meninas-virgens"
que lideravam os fanáticos do Contestado. O transe, como uma
insondável camada do inconsciente coletivo e da história do
homem, por isso mesmo matéria prima de altas indagações no campo
da física quântica (a matéria pereceria, mas a consciência
jamais!), para mim, é a mais pura e límpida poesia. Não sou
espírita, nem cientista, sou poeta. cineasta.
Nada no transe é real
ali, tudo imaginação e imaginário, um salto no escuro na eteridade
de fatos e feitos primevos, eu diria, como se prestidigitação fora
rumo ao mais denso dos mistérios da alma humana! Em “O Contestado
- Restos Mortais” a aposta é nessa direção, imiscuir-se,
resgatando através da palavra, pela sua verbalização cifrada e
entrecortada pela fluidez do tempo e do espaço, no que foi esquecido
e no que é preciso lembrar.
Carrego a primazia, nessa hora em que
tanto espiritismo militante explode nas telas, de ter sido o primeiro
cineasta brasileiro (quiçá, do mundo, ora direis!) de haver
incorporado o transe mediúnico à linguagem cinematográfica como
recurso da narrativa de um filme. Cinema é linguagem, sabemos.
Um
mergulho primevo no transe ocorreu há exatamente 28 anos no
documentário "O Auto-Retrato de Bakun" (1984), quando
pincei de um passado aparentemente "apagado", se a
expressão couber, capturando pela manifestação mediúnica do
pintor paranaense que se suicidou em 1963, toda a drama existencial
dos seus últimos dias entre nós. Pensei que, pelo inaudito do
procedimento, fruto de minha percepção de que, sendo Bakun um
místico, portanto, um homem afeito a incursões ao universo
espírita, jamais retornaria a esse procedimento num filme.
Que
pensa da tentativa de alguns de comparar Contestado a Canudos? Não
raro, a Guerra do Contestado é confundida com Canudos. Há mesmo
quem se refira a ela como o "Canudos do Sul", justamente,
quando eclodiu à época, em 1912, a revolta baiana ainda fumegava,
havia forte eco na mídia, e suas feridas e cicatrizes estavam sendo,
lentamente, absorvidas pela nova República.
Canudos resistiu a oito
meses de assédio (entre 1896 e 1897), no Contestado foram precisos quatro anos para
destruir seus mais de trinta redutos (cidadelas caboclas, que
chegaram a reunir 20 mil pessoas, espalhadas ao longo do rio do
Peixe, Centro-Oeste de Santa Catarina, entre o sul do Paraná e o
norte do Rio Grande do Sul), e onde até o avião estreou no Brasil
como arma de guerra.
Sim, é possível encontrar similitudes entre os
dois movimentos. O mais significativo seria o milenarismo (a volta de
um Messias salvador) que fundeava as convicções dos fanáticos, na
Bahia, de Antonio Conselheiro, no Contestado, entre os monges João e
José Maria. E, claro, a inaudita violência e implacabiblidade com
que o Exército brasileiro arrasou e exterminou ambos.
Fora disso, o
Contestado era um caldeirão político-ideológico e religioso que
contemplava desde a luta pela terra e pelo poder, de uma xenofobia
ativa contra imigrantes europeus, ao antiimperialismo contra
multinacionais da região, que ali construíram gigantesca estrada de
ferro (do magnata Percival Farqhuar) e a maior serraria da América
Latina, implantando um regime de terror na expulsão dos caboclos sem
título de propriedade; de um separatismo, romântico, porém, astuto
e, ironicamente, o Contestado chegava à contemporaneidade
protagonizando o que seria o próprio nascimento do capitalismo no
Brasil.
Tivemos
no Contestado uma luta da "desordem" (revoltosos) contra a
"desordem institucional"? Por
um instinto de sobrevivência da caboclada espoliada, ao primeiro
chamamento para se reunirem em torno de mitos, não demorou a
surgirem na região magotes ensandecidos, desafiando a "desordem"
institucional existente! Esse choque de "desordem" contra
"desordem" frutificou uma inédita sangria de milhares de
homens, mulheres e crianças, cujas "almas sofridas e perdidas"
vieram pedir socorro ao nosso filme!
Com
tudo isso em ebulição, dá para fabular que, para que houvesse um
estopim, bastava que a fronteira contestada entre Santa Catarina e
Paraná, úbere em erva mate e madeira, fosse rompida por alguém. E
em 1912, um monge de nome José Maria, vendendo terras devolutas do
Paraná (Irani) para duas dezenas de caboclos catarinenses,
instalou-se em cima do fio da navalha.
Nem será preciso contabilizar
quantos soldados e fanáticos ficaram sem sepultura após uma
horrenda refrega que conflagrou não só Curitiba e
Florianópolis, mas o próprio presidente, marechal Hermes da
Fonseca, e, logicamente, o Exército, que logo enxergou ali um novo
Canudos. Tanto é que a repressão militar não tardou a se mobilizar
e se fazer sentir com metralhadoras e canhões.
Na mesma intensidade
que dentro das incontáveis de cidadelas, os sertanejos, antes
simples crentes e pacíficos, para não morrer de fome passaram a
praticar apropriações de alimentos e animália, que diziam
"débitas", de comerciantes e fazendeiros da região. Ao
mesmo tempo, constrangidos por chefetes fanatizados, como o famoso
"comandante" Adeodato (que, entre o exército teve o seu
equivalente no capitão Potiguar, uma versão sulina do famoso
coronel Moreira César, de Canudos), instalou-se um regime de terror
inédito no Brasil.
Um terrorismo, por sua vez, igualmente agenciado
pelos chamados "vaqueanos", asseclas do coronelato e tropa
assalariada pelo Exército, que não só ameaçava os seguidores que
fraquejassem, como espalhou um espectro fantasmagórico sobre seu
poder de persuasão e violência que pulsa ameaçador até hoje, com
os contornos tão assustadores e inimagináveis que tivessem ocorrido
entre nós.
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