Por NPC
Marcelino Buru fala sobre a história do grupo Kinguelê
Por Sheila Jacob
Natural de Araguari, Minas Gerais, Marcilino Moreira da Silva rodou o mundo e ficou conhecido no meio artístico e cultural como Marcelino Buru, nome que vem de Os Bruzundanga, romance de Lima Barreto. Após trabalhar com teatro no Brasil, morou seis anos em Paris, onde se dedicou à música e lançou, na década de 1970, o CD Sessão Cabidela, que fez grande sucesso na época. Buru explica que, com as dez músicas ali reunidas, ele quis mostrar que, apesar de estar em Paris, não tinha saído do Brasil. “Eu ainda estava totalmente ligado à vida social, cultural e política daqui. Na verdade, lá eu estava mais informado do que estava ocorrendo no Brasil, porque as notícias chegavam primeiro lá. Aqui tinha censura”, diz o artista sobre o CD, que pode ser encontrado na Livraria do NPC, a Livraria Antonio Gramsci.
O objetivo do artista é fazer um show de lançamento do CD aqui no Brasil, com as dez músicas que compunham o álbum original e outras composições suas e de artistas independentes. Em entrevista ao nosso Boletim, Marcelino Buru fala sobre sua infância, o trabalho com o teatro, a ida à Europa e o lançamento da carreira solo, tornando-se um dos principais representes da cultura brasileira na França. Ele também fala sobre os projetos em que está envolvido atualmente com o Centro de Difusão Cultural Kinguelê. Confira.
Conte um pouco sobre sua infância. Como foi que se descobriu um artista? Nasci em Araguari, Minas, e fui muito cedo para São Bernardo (SP). Sou de família humilde, e tive uma infância maravilhosa até perder minha mãe. A música entrou na minha vida desde muito cedo. Minha mãe, quando cuidava da casa, cantava. Cantava quando lavava louça, quando estava varrendo. Uma vez fui levar minhas irmãs mais novas ao circo. Neste dia eu ganhei a simpatia do palhaço, e recebi ingresso para voltar mais tarde e assistir ao show. Deixei as meninas em casa e fui. Levei uma surra do pai neste dia, porque não avisei nada. Este fato é importante porque mostra como desde cedo a arte está ligada à minha vida.
Depois que minha mãe morreu eu fui morar em São Paulo, na Vila Maria, com meu padrinho. Eu tinha uns 14 anos, e posso dizer que desde então “sou dono do meu nariz”. A família queria que eu fosse advogado, e meu primeiro emprego foi como office boy num escritório de advocacia para conhecer a cidade e a profissão. Depois fui trabalhar em escritório em uma fábrica têxtil, e acabei virando vendedor de livros nas horas vagas. Eu era representante da Delta Larousse, e nessa época conheci um “concorrente”, representante da Enciclopédia Barsa. Ele fazia teatro amador, e eu fui assistir a um ensaio do grupo dele, “Os Entusiastas”, para ver se conseguia vender livros. Isso foi mais ou menos em 1965.
E aí a voz do artista falou alto né? É, eles estavam ensaiando O pagador de promessas, do Dias Gomes. Eu vi três ensaios, e um dia um dos atores não apareceu. Eu acabei sendo chamado para substituí-lo no ensaio e na apresentação. O personagem que fiz era o Mestre Coca, e por causa disso comecei a frequentar aulas de capoeira, o que me aproximou mais da cultura brasileira. Além de atuar, eu acabei agindo na produção da peça. Quando vi estava envolvido até o pescoço com o teatro. Fui um dos sócios fundadores do Teatro Casarão, mais ou menos em 1967, 68. Era um casarão abandonado, que reformamos. Nossa montagem de sucesso foi “João, o curador”, na qual eu fiz o papel principal e também as músicas. No meu CD Sessão Cabidela tem uma faixa em homenagem a esta peça. Tudo o que é falado nessa música, a Cosi-cosa, foi extraído da peça.
E com foi ser artista nessa época, tempo de repressão da ditadura civil-militar? Nós fomos muito visados pela polícia, pois nosso grupo tinha uma preocupação política, um forte dom de denúncia social. Levávamos para o palco textos que falavam sobre o que estava acontecendo. Por exemplo: encenamos Vidas secas, Deus e o diabo na terra do sol, Vereda da salvação... Nosso lema era o teatro como um veículo de transformação. A perseguição foi tão grande que derrubaram literalmente, com trator, nosso teatro. Muitos fugiram e foram perseguidos. Em 1968, fui convidado para estrelar “A Moreninha”, já teatro profissional. Foi quando minha família quis me internar (risos), pois abandonei tudo para me dedicar à arte. A partir daí atuei em vários espetáculos e fui para a TV Record e TV Tupi.
Além dessas atividades, trabalhei no Sacre Coeur de Marie, de São Paulo, e com alunas da faixa dos 7 aos 12 anos montei três espetáculos infantis. Meus dias de folga, os domingos, eram dedicados ao grupo de teatro do Mobral, que ajudei a criar para ajudar no processo de alfabetização do alunos. Com esses alfabetizandos eu montei O Auto da Compadecida, que foi um grande sucesso na época. Além de se apresentarem nos teatros Anchieta Sesc e Artur de Azevedo, em São Paulo, eles foram convidados a se apresentar em Belém do Pará, e tiveram apoio da Secretaria de Educação de SP. Na época eu inscrevi a peça no Festival Nacional de Teatro, e o nosso espetáculo foi considerado um dos melhores. A outra peça que ganhou um dos primeiros lugares, a ópera samba O Rei Momo, de César Vieira, foi selecionada para se apresentar no Festival Internacional de Teatro na Polônia. Eu fui convidado pelo diretor para participar como ator, músico e auxiliar na direção deste espetáculo. Fui para a Europa, onde, além da Polônia, me apresentei na Iugoslávia, Itália etc.
Foi nessa época então que você morou na Europa? Isso. Eu fui com data de volta marcada, mas em Roma eles roubaram meu passaporte e todos os meus documentos. Faltavam apenas cinco dias para eu ir me apresentar em Paris para depois voltar para o Brasil. Meu passaporte só foi chegar quatro meses depois, então tive que ficar na Itália, onde trabalhei uns meses no Teatro Circo Spazio Zero. Segui para Paris e lá introduzi a música brasileira no Quartier Latin, em apresentações na rua. Lembro isso tudo em uma música: “Eu sou feliz / Já toquei em San Michel. Me dá licença/ lá passei o meu chapéu/ sem complicação. Eu sou feliz / eu conheço a torre Eiffel / vai tudo bem/ vou fazendo o meu papel/ de brasileirão. Eu sou feliz/ no jardim de Luxemburgo/ lá eu não falo/ mas eu posso tocar surdo”. Como mostra a música, nós também treinávamos no Jardim de Luxemburgo, e os ensaios começaram a atrair gente. Foi aí que entrei na música de verdade e assim surgiu o grupo Kinguelê, que tinha um repertório variado de música brasileira – samba-enredo, samba de roda, xote, baião...
Nós fomos ficando cada vez mais conhecidos. Chegamos a ter um contrato na boate Papagaio, a mais cara de Saint-Tropez. À noite tocávamos lá, e durante o dia em cidades vizinhas. Também nos apresentamos no Festival d’Avignon, famoso no continente europeu pelas apresentações teatrais e musicais. Além da França e outros países europeus, como Holanda, Dinamarca, Suíça e outros, chegamos a nos apresentar na Argélia, em um contrato de dois meses. Na Europa participamos de Festa da Anistia, de festas do Partido Comunista e chegamos a participar de eventos pela libertação de Angola, pois em Paris eu convivi com a “malta angolana” de exilados da colônia e me identifiquei com as discussões do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Mais ou menos nessa época voltei para o Brasil, e quase não consegui retornar para a Europa porque eu estava marcado e quase que a Polícia Federal não me deixa voltar. Foi quando voltei para a Europa que resolvi fazer carreira solo, e o Kinguelê se transformou em selo.
Foi aí que surgiu o Sessão Cabidela? Sim. O LP Sessão Cabidela surgiu aí. Em 1978 fiz dois shows de lançamento: um no Teatro Paris Nord, que ficou lotado. A abertura foi um belo trabalho solo do Naná Vasconcellos. O segundo show foi no M.J.C, em homenagem aos 90 anos da minha avó D. Lica – tem inclusive uma foto dela na parte de cima da capa do meu CD. A data coincidiu com o aniversário oficial da Abolição da Escravatura no Brasil, mas eu dediquei mesmo meu show à minha avó. Também foi um sucesso o show. Vários jornais divulgaram e os LPs, que foram lançados de forma independente com tiragem de cinco mil, logo esgotaram.
E o que você quis dizer com esse CD? Eu queria mostrar que, apesar de estar em Paris, não tinha saído do Brasil. Ainda estava totalmente ligado à vida social, cultural e política daqui. Na verdade, lá eu estava mais informado do que estava ocorrendo aqui, porque as notícias chegavam primeiro lá. Aqui tinha censura. A “Sou feliz”, que tá no CD, fiz em cima da Meu caro amigo, do Chico Buarque.
E o nome Buru, vem de onde? Vem desde a época do Casarão. Eu queria me desvincular do cantor e compositor Moreira da Silva e pensei em Buru, que vem do romance Os Bruzundangas, de Lima Barreto.
E quando voltou ao Brasil? Em que trabalhos está envolvido hoje? Voltei nos anos 1980, e participei da fundação do grupo de teatro O Bando. Dei aulas em São Paulo e no Rio. Criei o Centro de Difusão Cultural Kinguelê, uma ONG voltada para o intercâmbio cultural e a divulgação de artistas brasileiros que trabalham com cinema, música, artes cênicas, artes plásticas e dança. Agora resolvi fazer o show de lançamento do CD Sessão Cabidela aqui. Já consegui aprovação da Lei de Incentivo do Ministério da Cultura, e estou na fase de capacitação de recursos. Estamos pensando em um show em Praça Pública , que pode ser na Lapa, Cinelândia, Saens Peña ou outro lugar. A ideia é executar as dez músicas do CD, e outras de minha autoria e de artistas independentes. Outro projeto em que estou envolvido é a apresentação de uma peça sobre o poeta simbolista Cruz e Souza. O ano passado marcou os 150 anos de seu nascimento.
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