Entrevistas
Geógrafo britânico David Harvey alerta para incapacidade do capital em resolver seus problemas
Por Maria Luisa Mendonça e Fábio Pitta - Brasil de Fato
O geógrafo
britânico David Harvey é um dos principais intelectuais marxistas hoje e está
entre os vinte cientistas sociais mais citados em todo o mundo. Atualmente é
professor na City University of New York e esteve no Brasil recentemente para o
lançamento de seu livro O
Enigma do Capital e as Crises do Capitalismo, publicado pela
Editora Boitempo. A análise de Harvey sobre a crise no modo de produção
capitalista tem sido sistemática nas últimas décadas, desde o livro clássico The Limits to Capital (Os Limites do
Capital) publicado originalmente em 1982. O autor resgata o
pensamento de Marx de forma complexa e ao mesmo tempo didática, para mostrar
criticamente as contradições inerentes ao capitalismo, com a intenção de
apontar possibilidades de superação deste modo de produção.
Brasil
de Fato – O senhor tem analisado o processo de crise há bastante tempo,
especialmente desde seu livro Os Limites do Capital. Como caracteriza estes
limites no contexto da atual crise? Seria possível dizer que existe um processo
simultâneo de crise e acumulação de capital?
David
Harvey – Inicialmente
é preciso entender que o capital nunca resolve seus problemas, apenas os
transfere para outro lugar. Há hoje um aumento na velocidade com que essa
transferência é feita, pois o movimento do capital é determinado de acordo com
o jogo de poder político, que protege uma pequena elite financeira. Nos Estados
Unidos, a grande maioria da população continuará a sofrer os efeitos da crise,
que parece ter chegado a um patamar político. Ou seja, eu vejo que a crise,
tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, é mais política do que econômica.
Por isso a crise se estende e aumenta, de acordo com os interesses de uma
pequena classe de capitalistas. Vemos uma crescente concentração de riqueza no
Brasil, na Índia, na China e, é claro, nos Estados Unidos.
Brasil
de Fato – Como
o senhor avalia as saídas tradicionais que têm sido utilizadas para lidar com a
crise, sejam neoliberais ou keynesianas? Quais os limites destas receitas? É
possível diferenciar estes dois campos ou o que vemos é transferência de
mais-valia social para o setor privado através do aparelho
estatal?
A expansão
da economia nos Estados Unidos nas últimas décadas se deve em grande parte ao
crescimento do mercado imobiliário – o que veio a causar a bolha financeira
neste setor. Isso mostra que não é possível sair da crise através das alternativas
tradicionais. Ao mesmo tempo, vemos que o mesmo processo de acumulação está
acontecendo na China, onde se desenvolvem grandes projetos imobiliários e de
infraestrutura. De certa forma, a China está implantando um projeto semelhante
ao que ocorreu nos Estados Unidos na década de 1950, com a expansão dos
subúrbios urbanos e a construção de rodovias, estimulada pela indústria
automobilística. Podemos identificar este tipo de saída keynesiana ocorrendo no
capitalismo global onde há crescimento, inclusive crescimento acelerado. Na
América Latina, vimos revoltas contra o velho estilo do neoliberalismo e hoje
há uma tendência keynesiana na economia. Já em países onde a receita neoliberal
tem sido aplicada, como Europa e Estados Unidos, a crise se agrava. Mas é claro
que isso não significa que o capitalismo global será salvo se todos se tornarem
keynesianos. Os limites do sistema keynesiano já estão aparecendo na China,
onde há uma superprodução de infraestrutura, uma bolha de ativos econômicos e
aumento da inflação. Creio que podemos observar o mesmo processo na Argentina e
no Brasil, o que revela os limites tradicionais do modelo keynesiano.
Brasil
de Fato – No
livro O
Enigma do Capital o senhor caracteriza a crise atual de forma
distinta das crises cíclicas, como na concepção de ciclos de Kondratieff, de
queda tendencial da taxa de lucro ou da ideia de que as crises são consequência
da queda do consumo ou do subconsumo. É possível dizer que a própria narrativa
do livro mostra este processo?
O pensamento
marxista tradicional imagina que exista uma única contradição através da qual
as crises se desenvolvem no capitalismo. Porém, se observamos particularmente o
segundo volume de O Capital,
vemos que o que existe é um processo com vários momentos e, em cada um destes
momentos, há a possibilidade de um bloqueio, o que gera a possibilidade de
crise. Por exemplo, pode haver um bloqueio por falta de financiamento, como nos
anos 1970 quando os economistas falavam em “depressão financeira”. Isso
levou ao processo de desregulamentação financeira, também caracterizado como
“liberação de capital”. Mas ninguém fala sobre isso hoje. Naquele período havia
uma classe trabalhadora mais organizada e o poder salarial era bem mais forte.
Hoje isso não ocorre e, portanto, é difícil justificar a crise jogando a culpa
nos sindicatos, como aconteceu anteriormente. No livro eu procuro mostrar que
não é possível entender a crise a partir de um único lugar, mas perceber que há
uma série de bloqueios, inclusive bloqueios em relação ao suprimento de energia
ou recursos naturais. Eu procuro juntar estes elementos e pergunto: onde este
processo está localizado hoje e para onde deverá ou poderá mover-se? Como o
capital poderá superar um determinado bloqueio? Ou seja, eu não concentro a
análise da crise em uma única explicação, como na diminuição do consumo ou na
queda da taxa de lucro. Minha análise parte de uma combinação de fatores, que
pode incluir todos estes elementos e por isso é preciso estudar concretamente.
A teoria de Marx sobre a crise fala sobre possibilidades de crises. Por isso
devemos procurar entender como essas possibilidades se transformam em
realidade. Através de quais processos sociais?
Brasil
de Fato – Em
nenhum momento do livro identificamos o objetivo de procurar resolver a crise. É
isso mesmo?
Claro, o
capital não pode resolver sua crise.
Brasil
de Fato – Como
o senhor vê a luta de classes hoje e os movimentos de protesto que falam em
transformação através da ideia de que somos “os 99%”?
Há dois tipos de
possibilidades sendo debatidas. Uma seria manter o capitalismo através de
mecanismos de retenção e regulação, o que poderia causar flutuações, mas não
grandes fraturas. Seria uma forma de reorquestrar o capitalismo para que não
causasse tantos danos como hoje, para promover mais igualdade, alguma
distribuição de riqueza e sustentabilidade ambiental, como muitos na esquerda
defendem. Outras pessoas dizem que não há saída no modo de produção capitalista
e que é necessário buscar outras alternativas, com mudanças estruturais
políticas e econômicas. É claro que as crises podem ocorrer em qualquer
sistema, já que não é possível imaginar uma sociedade onde tudo funcionaria
perfeitamente. Mas em um sistema não-capitalista as crises seriam de outro
tipo. Acho que estamos nessa encruzilhada histórica, onde não temos muita
segurança do que seria possível. Então surge o debate sobre reforma ou
revolução. Eu acredito que há reformas que levam à revolução. As economias se
tornaram tão interdependentes que uma proposta de revolução imediata poderia
gerar catástrofes com muitas mortes. Então a questão seria avaliar que tipo de
reformas teria um caráter revolucionário e levaria a outro sistema que abolisse
a relação de classe, já que a essência do capitalismo é a relação entre capital
e trabalho. Portanto, um projeto anticapitalista teria de erradicar a relação
de classe. Há diversos movimentos pensando nessa direção como, por exemplo, as
cooperativas de trabalhadores que recuperaram fábricas, mas alguns acabam
reproduzindo um sistema de exploração capitalista, no qual os trabalhadores são
seus próprios patrões. Portanto, não é suficiente pensarmos em termos de
microeconomia, é necessário repensar a macroeconomia.
Brasil
de Fato – Como
o senhor vê o processo que descreveu como “acumulação por espoliação” na
atualidade? Devemos analisá-lo como uma característica dos limites do capital
ou como uma forma que o capitalismo encontra para, digamos, se reciclar?
Na medida em
que o capital apresenta maior dificuldade para se sustentar, principalmente nos
últimos 30 anos, aumenta a espoliação. Vemos hoje um enorme processo de
expropriação e destruição de ativos e bens em várias partes do mundo, como no
caso do mercado imobiliário, das poupanças e do roubo de direitos sociais, como
no caso da saúde pública. Isso representa um enorme processo de acumulação por
espoliação. Ao mesmo tempo, desde 2007, vemos uma enorme grilagem de terras por
agentes particulares, empresas e governos em várias partes do mundo. A China,
por exemplo, tem participado ativamente deste processo. Mas também vemos
resistência política contra a espoliação. Estes movimentos de resistência podem
se converter na base para uma transição anticapitalista. Além dos operários,
todos os trabalhadores que produzem e reproduzem os centros urbanos e as
organizações de luta pela terra podem se converter em um movimento massivo de
construção de uma sociedade não-capitalista.
Brasil
de Fato – Como
o senhor analisa a possibilidade de uma nova guerra nesse momento de crise,
dado o poderio bélico estadunidense armazenado?
Na verdade o
que existe é uma guerra permanente em toda a história do capitalismo. Hoje os
Estados Unidos estão envolvidos em duas guerras. Seria viável pensar em uma
terceira frente de guerra? Eu não saberia responder. A questão é analisar qual
o papel econômico da guerra, não apenas o aspecto geopolítico das guerras. Nos
Estados Unidos há setores financeiros poderosos mesclados com a indústria
bélica, que defendem a necessidade de desenvolver melhores tecnologias
militares e com isso procuram justificar uma nova guerra. Por outro lado, seria
possível resolver o problema da dívida nos Estados Unidos simplesmente cortando
o orçamento militar, que representa o dobro de todos os gastos militares em
nível mundial. Existem propostas nesse sentido, mas uma forma de evitar esses
cortes seria iniciar outra guerra para justificar os gastos militares e, por
isso, existe a possibilidade de uma ação contra o Irã. Ao invés de cortes nos
gastos militares o que tem ocorrido são cortes nos programas sociais. Se
analisarmos a relação entre a corrida armamentista e a dívida nos Estados
Unidos, vemos que aumentou muito durante a Guerra Fria e o governo de Reagan, e
seguiu aumentando nos governos de Bush.
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Piratininga
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