MÃdia
A serviço da treva: Big Brother é altamente representativo da cultura da classe média, velha e nova
Publicado em 01.02.2012 - Por Mino Carta, na edição 681 da Carta Capital
Âncora do Jornal Nacional da Globo, William Bonner espera ser assistido
por um cidadão o mais possível parecido com Homer Simpson, aquele
beócio americano. Arrisco-me a crer que Pedro Bial, âncora do Big
Brother , espere a audiência da classe média nativa. Ou por outra, ele
apostaria desabridamente no Brasil, ao contrário do colega do JN . Se
assim for, receio que não se engane.
É que a Globo procura. Achou Daniel, que tem o mérito de ser contra as
cotas. Houve nos últimos tempos progressos em termos de inclusão social
de sorte a sugerir aos sedentos por frases feitas o surgimento de uma
“nova classe média”. Não ouso aconselhar-me com meus carentes botões a
respeito da validade dos critérios pelos quais alguém saído da pobreza
se torna pequeno burguês. Tanto eles quanto eu sabemos que para atingir
certos níveis no Brasil de hoje basta alcançar uma renda familiar de
cerca de 3 mil reais, ou possuir celular e microcomputador.
Tampouco pergunto aos botões o que há de “médio” neste gênero de
situações econômicas entre quem ganha salário mínimo, e até menos, e,
digamos, os donos de apartamentos de mil metros quadrados de construção,
e mais ainda. Poupo-os e poupo-me. Que venha a inclusão, e que se
aprofunde, mas est modus in rebus. Se, de um lado, o desequilíbrio
social ainda é espantoso, do outro cabe discutir o que significa
exatamente figurar nesta ou naquela classe. Quer dizer, que implicações
acarreta, ou deveria acarretar.
Aí está uma das peculiaridades do País, a par do egoísmo feroz da
chamada elite, da ausência de um verdadeiro Estado de Bem-Estar Social
etc. etc. Insisto em um tema recorrente neste espaço, o fato de que os
efeitos da revolução burguesa de 1789 não transpuseram a barreira dos
Pireneus e não chegaram até nós. E não chegou à percepção de
consequências de outros momentos históricos também importantes. Por
exemplo. Alastrou-se a crença no irremediável fracasso do dito
socialismo real. Ocorre, porém, que a presença do império soviético
condicionou o mundo décadas a fio, fortaleceu a esquerda ocidental e
gerou mudanças profundas e benéficas, sublinho benéficas, em matéria de
inclusão social. No período, muitos anéis desprenderam-se de inúmeros
dedos graúdos.
A ampliação da nossa “classe média”, ou seja, a razoável multiplicação
dos consumidores, é benfazeja do ponto de vista estritamente econômico,
mas cultural não é, pelo menos por enquanto, ao contrário do que se deu
nos países europeus e nos Estados Unidos depois da Revolução Francesa.
De vários ângulos, ainda estacionamos na Idade Média e não nos faltam os
castelões e os servos da gleba, e quem se julga cidadão acredita nos
editoriais dos jornalões, nas invenções de Veja, no noticiário do Jornal
Nacional. Ah, sim, muitos assistem ao Big Brother.
Estes não sabem da sua própria terra e dos seus patrícios, neste país de
uma classe média que não está no meio e passivamente digere versões e
encenações midiáticas. Desde as colunas sociais há mais de um século
extintas pela imprensa do mundo contemporâneo até programas como
Mulheres Ricas, da TV Bandeirantes. Ali as damas protagonistas
substituíram a Coca e o Guaraná pelo champanhe Cristal. Quanto ao Big
Brother, é de fonte excelente a informação de que a produção queria um
“negro bem-sucedido”, crítico das cotas previstas pelas políticas de
ação afirmativa contra o racismo. Submetido no ar a uma veloz sabatina
no dia da estreia, Daniel Echaniz, o negro desejado, declarou-se
contrário às cotas e ganhou as palmas febris dos parceiros brancos e do
âncora Pedro Bial.
A Globo, em todas as suas manifestações, condena as cotas e não hesita
em estender sua oposição às telenovelas e até ao Big Brother. E não é
que este Daniel, talvez negro da alma branca, é expulso do programa do
nosso inefável Bial? Por não ter cumprido algum procedimento-padrão,
como a emissora comunica, de fato acusado de estuprar supostamente uma
colega de aventura global, como a concorrência divulga. Há quem se
preocupe com a legislação que no Brasil contempla o específico tema do
estupro. Convém, contudo, atentar também para outro aspecto.
A questão das cotas é coisa séria, e quem gostaria de saber mais a
respeito, inteire-se com proveito dos trabalhos da GEMAA, coordenados
pelo professor João Feres Jr., da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro: o site deste Grupo de Estudos oferece conteúdo sobre políticas
de ação afirmativa contra o racismo. Seria lamentável se Daniel tivesse
cometido o crime hediondo. Ainda assim, o programa é altamente
representativo do nível cultural da velha e da nova classe média, e nem
se fale dos nababos. Já a organização do nosso colega Roberto Marinho e
seu Grande Irmão não são menos representativos de uma mídia a serviço da
treva.
Núcleo
Piratininga
de Comunicação
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